Opinião

O uso do velho argumento da 'não intervenção do Estado'

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21 de maio de 2021, 13h31

"(…)
Será, será, que será
Que será, que será?
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir por mais zil anos?

(…)"
(
"Podres Poderes", Caetano Veloso)

Falar de intervenção do Estado no Direito do Trabalho é falar a respeito dos limites do direito de propriedade. Não há como simplesmente fugir desse debate. Porém, falar desse tema é, acima de tudo, um ato de resistência, especialmente no Brasil, onde essa questão ou é, geralmente, ocultada, ou simplesmente resolvida a partir de preconcepções indiscutíveis. Cegamente, quando se fala em Direito do Trabalho e proteção da propriedade, vem à tona um discurso, de matriz aparentemente liberal, de que toda intervenção do Estado necessariamente viola a propriedade.

Não é nossa intenção, neste momento, apontar para o erro desse argumento, que, aliás, é algo que já se tornou desgastante, já que insistentemente é preciso explicar a uma parte de nossos próprios profissionais do Direito, em pleno século 21, o "beabá" da lógica e necessidade de aplicação do princípio da função social da propriedade e da empresa em um Estado democrático de Direito [1].

Pretendemos aqui, apenas, lembrar de uma história que exemplifica o absurdo da insistência em não colocar o dedo na ferida do direito da propriedade em matéria de envolvimento das leis nas relações de trabalho.

O que pretendemos lembrar aqui, e que é um fato que muitos não sabem, é que a abolição da escravatura foi resistida pelo mesmo argumento utilizado contra o projeto de Código do Trabalho e a inserção de leis do trabalho em separado ao Código Civil, no início do século 20 no Brasil: o argumento da não intervenção do Estado nas relações sociais (e de trabalho).

É o que demonstra um importante artigo de Evaristo de Moraes, denominado "Ainda a propósito do Código do Trabalho: Os positivistas da Câmara de acordo com os escravocratas" [2], publicado originalmente em O Imparcial de 8/10/1918.

Nesse artigo, aponta Evaristo que, em defesa das leis trabalhistas, um positivista, Teixeira Mendes, apontando a necessidade de políticas em benefício do operariado, fez referência à abolição da escravidão africana, lembrando em seu discurso que esta foi conseguida com a intervenção direta do poder público, o que também deveria ocorrer em relação à emancipação dos trabalhadores então formalmente livres, por meio de um código do trabalho.

Destaca, porém, Evaristo, que tais palavras, assim como as dos demais apoiadores de um Código do Trabalho (restrita ao trabalho propriamente operário), contrapunham-se a um outro grupo de positivistas que discursava na Câmara contra esse projeto; positivistas estes que, interpretando a seu modo as palavras de Augusto Comte, resistiam à emancipação do salariado moderno utilizando-se dos mesmos argumentos dos escravocratas que resistiam à chamada Lei do Ventre Livre, cujo projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados em 12/5/1871, a fim de possibilitar que os filhos de mães escravizadas, nascidos a partir da sua data de aprovação, fossem libertos.

Segundo Evaristo de Moraes, o retorno ao argumento escravocrata da não intervenção do poder público nas relações de trabalho seria a prova cabal de que as condições de trabalho em relação ao trabalho escravo no século 19 não deixaram de ser semelhantes ao trabalho considerado livre no início do século 20 [3]:

"A quase identidade de condições do escravo e do salariado moderno resulta ainda mais evidente, quando se nota que contra a emancipação do segundo é reproduzida, 'embora em nome de princípios diferentes', a mesma argumentação que foi, outrora, empregada contra a emancipação do primeiro. Aos versados na nossa história parlamentar não é estranha a oposição movida, em 1871, por José de Alencar, deputado, contra o projeto de que nasceu a chamada 'lei do ventre livre' (…)" [4].

Aponta Evaristo de Moraes que se reproduziu contra o Código do Trabalho em 1917 a ideia de resistência à intervenção do poder público. No caso dos escravocratas, como de José de Alencar, confiavam os opositores à Lei do Ventre Livre nos sentimentos morais e religiosos da família brasileira, que forçaria, naturalmente, a mudança de regime.

Segundo as palavras de Evaristo, "[José de Alencar], combatendo, àquela época, a humanitária iniciativa de Rio Branco, censurava a 'tendência escravocrata' do Estado na solução do problema do elemento servil. Qualificando de 'bárbara, anárquica, iníqua' a ideia principal do projeto em discussão [que deu origem à 'lei do ventre livre'], proclamava, ao mesmo tempo, sua desnecessidade, porque (dizia) 'os sentimentos generosos da família brasileira e a expansão natural das forças econômicas são suficientes para transformar o regime do trabalho'. Para este resultado, confiava, outrossim, na 'compreensão moral, por parte dos proprietários de escravos, dos seus deveres cristãos'" [5].

Ainda sobre José de Alencar, Evaristo de Moraes aponta que este autor também insistia na tese de que não cabia na função do Estado intrometer-se em assunto de caráter "meramente privado", ferindo uma propriedade que tinha a sanção indireta das leis e a direta dos costumes.

Destacam-se, ainda, outros atores escravocratas, como Andrade Figueira e Brandão Jr., que também rejeitavam qualquer proposta de abolição imediata e incondicional da escravidão, defendendo, em linhas muito gerais, essa transição lenta e gradual da mudança de regime, ou seja, uma mudança sem a intervenção direta do Estado. O argumento de Brandão Jr. era de base comteana, ou seja: nenhuma mudança de estágio da vida humana pode receber a intervenção do Estado, já que os três estados de que afirmava Comte (teológico, metafísico e positivo) eram consequências da autonomia da sociedade em toda sua evolução natural. Andrade Figueira, por sua vez, argumentava que não deveria existir a intervenção do poder público na solução de um assunto eminentemente social; um problema que não poderia receber a intervenção do poder público, já que era assunto que não competia ao Estado, mas à sociedade resolver.

Já no tempo da resistência contra o Código do Trabalho (época em que Evaristo escreve seu artigo), o argumento não mudou consubstancialmente em comparação ao argumento escravocrata. Dentro da Câmara, destacam-se os argumentos do deputado Carlos Penafiel, ao final de setembro de 1918, que discursou contra as propostas apresentadas no projeto do código operário, buscando no comtismo — em semelhança ao argumento de Brandão Jr. — a fundamentação teórica para a repugnância que expressava pela intervenção do Estado nas relações de trabalho. A esse respeito, voltemos a Evaristo:

"Fez-se legislativamente a Abolição. Proclamou-se revolucionariamente a República. Passaram-se muitos anos. Agora, quando se trata de emancipar a escravidão industrial os novos escravos, que são operários, acode o positivismo parlamentar contra a mesma objeção dos escravocratas, e pela boca do deputado Falafiel protesta contra a 'indébita intromissão do Estado em uma esfera de relações que lhe não pertence' (Diário do Congresso, do dia 27 de setembro, pág. 3.486, 2ª coluna). O vício do projeto — continua o orador — reside justamente na sua perigosa tendência, em querer (segunda uma expressão de Augusto Comte) 'regular pela legislação o que não comporta senão uma disciplina moral'. (…) É ou não é repetição do mesmo argumento de José de Alencar e de Andrade Figueira? Adota-se, ou não se adota, a respeito dos operários, o mesmo princípio, excessivamente individualístico, com que, de 1871 a 1888, se combateu a emancipação dos escravos?" [6].

Mas e hoje? O argumento mudou de forma consubstancial?

Entendemos que não. O embasamento teórico pode ser outro, mas na essência o discurso é semelhante. Se houve alguma mudança, foi somente em relação aos princípios e às teorias que embasam a grande tese, mas ainda é ela, a "não intervenção do Estado", que continua sendo utilizada para resistir às instituições do Direito do Trabalho no Brasil.

Para não nos estender, basta lembrar que a reforma trabalhista do governo provisório de Temer teve por princípio — ou ao menos essa foi a fundamentação discursiva — reduzir a atuação do Estado nas relações de trabalho, o que se verificou, por exemplo, na motivação do discurso do relator do Projeto de Lei 6.787/16, Roberto Marinho, projeto que se tornou a conhecida Lei da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017). Remetendo seu discurso a uma falaciosa versão da história das leis trabalhistas (de que a lei trabalhista seria fruto de uma CLT inspirada no fascismo de Mussolini), o argumento utilizado para a existência da reforma foi o de que "não podemos mais insistir nas teses de que o Estado deve dizer o que é melhor para os brasileiros negando-os o seu direito de escolher".

Aliás, em defesa da uberização, em uma visada mais atual da questão, não faltam também discursos semelhantes, inclusive verificados em decisões judiciais que, afastando a competência da Justiça do Trabalho ou do vínculo de emprego, afirmam que o trabalhador uberizado, apesar de toda a subordinação que sabemos existir, é um autônomo, não sendo devida, de acordo com tal discurso, a intervenção do Estado na relação de trabalho dos motoristas de aplicativo e plataformas digitais.

Em geral, o senso comum, amparado hoje pelos ideais políticos neoliberais e por profissionais do Direito que ainda resistem às instituições e Direito do Trabalho, insiste que as leis trabalhistas representam uma excessiva intervenção do Estado na economia do trabalho. Em todo caso, mantém-se o argumento escravocrata de que "a evolução deve seguir o seu curso natural, sem a intervenção do Estado".

Se na época da escravidão o escravo deixaria de ser escravo naturalmente, atualmente é o uberizado, é o trabalhador precarizado ou superexplorado, que deixará sua situação de servidão a partir do movimento natural da economia, da livre concorrência, e de outras perspectivas idealistas que já conhecemos… E mesmo quando é sabido que essa evolução não ocorrerá (pois basta verificar a tendência da crise econômica mundial, de repercussões alarmantes no Brasil), o que não se admite é sempre a velha "intervenção do Estado".

Só faltou lembrar a tais idealistas que a evolução natural da sociedade, sem a intervenção do Estado, mantém a natureza da exploração humana: manteve o escravo como escravo e continuará mantendo o trabalhador mais explorado. Mas, infelizmente, essa lembrança que aqui trago ao leitor é constantemente apagada de nossa memória. Parece ser mesmo parte de um esforço de retórica estúpida, que terá que soar por mais "zil anos", como canta Caetano.

 


[1] A esse respeito, conferir o capítulo 3.2, "a propriedade obriga: a noção duguiniana de função social da propriedade", de minha dissertação de mestrado: MAGACHO FILHO, Murilo Riccioppo. Direito e Estado em Léon Duguit: a solidariedade social como fundamento do direito e a crítica da soberania. 2021. 105 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2021.

[2] MORAES, Evaristo de. Ainda a propósito do código do trabalho: os positivistas da Câmara de acordo com os escravocratas! In: MORAES FILHO, Evaristo de (Org.). O socialismo brasileiro. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 1981. p. 189.

[3] Nesse sentido é importante lembrar de Euclides da Cunha, que, em relação à exploração dos seringueiros, afirmava com cientificidade que "o seringueiro realiza uma tremenda anomalia: é o homem que trabalha para escravizar-se (…)" (Cunha, Euclides da. À margem da história. 3ª ed. Porto, 1922, p. 22).

[4] MORAES, Evaristo de. Op. cit.. p. 190.

[5] Ibidem.

[6] Ibidem.

Autores

  • é mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, graduado em Direito na mesma instituição, advogado em São Paulo e integrante dos Grupos de Estudos "Políticas Públicas como Instrumento de Efetivação da Cidadania", e "Estado e Direito no pensamento social brasileiro", ambos vinculados ao Mackenzie – CNPq.

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