Opinião

O motorista empregado da Uber e a manipulação da jurisprudência

Autor

  • Marcel Zangiácomo

    é sócio do escritório Galvão Villani Navarro Zangiácomo e Bardella Advogados e especialista em Direito Processual e Material do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

15 de maio de 2021, 17h20

Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15), que abrange cidades do interior do Estado de São Paulo, reconheceu o vínculo de emprego de um motorista de aplicativo Uber com a empresa, invalidando um acordo celebrado no processo entre a empresa e o motorista, protocolado 24 horas antes do julgamento do recurso do motorista.

Na decisão, o desembargador do TRT-15 entendeu que a empresa cometeu fraude trabalhista que é "propositadamente camuflada pela aparente uniformidade jurisprudencial, que disfarça a existência de dissidência de entendimento quanto à matéria, aparentando que a jurisprudência se unifica no sentido de admitir, a priori, que os fatos se configuram de modo uniforme em todos os processos (jurimetria)", já que apresentou minuta de acordo no processo pouco antes da sessão de julgamento do recurso do motorista, a fim de tentar evitar o julgamento e a criação de jurisprudência desfavorável.

Essa estratégia, assim, impediria "o fluxo natural da jurisprudência e a configuração da pluralidade de entendimentos para que, enfim, as instâncias competentes possam consumar o posicionamento definitivo sobre a matéria".

Por isso, a turma do TRT-15 considerou que a postura da Uber se configura como abuso de direito e viola o princípio da paridade de armas — já que, no exercício do contraditório o julgador pode entender que a jurisprudência seria uníssona.

Com relação ao mérito da ação trabalhista e propriamente o vínculo de emprego, os juízes também afirmaram que "a CLT equipara os efeitos jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados àquela empreendida por meios pessoais e diretos". Observaram, ainda, que "a liberdade quanto ao cumprimento da jornada de trabalho não é óbice ao reconhecimento do vínculo de emprego".

Certo é que há outros esparsos casos julgados desfavoravelmente à Uber no tocante ao vínculo de emprego, bem como idêntica postura no tocante à celebração de acordo prévio ao julgamento de recurso junto ao Tribunal Regional do Trabalho, como ocorrido na 11ª turma do TRT-MG.

Pois bem, um ponto importante que deve ser observado é que, diferentemente do declarado pelo TRT-15 e pelo TRT-MG, a natureza conciliatória é o princípio mais elementar da Justiça do Trabalho, insculpido no artigo 764, da CLT — "Os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão sempre sujeitos à conciliação".

No processo trabalhista, a conciliação ganha eficácia e produz efeitos jurídicos após a necessária homologação pelo juiz do Trabalho, contudo, logicamente que sendo o acordo entre as partes ausente de indícios de fraude ou manifestamente lesivo, não possuem os juízes do Trabalho competência funcional para não homologarem acordo realizado no processo, sob o pretexto da criação de jurisprudência, nesse caso em contexto, desfavorável à empresa Uber.

E é esse ponto que se faz necessário debruçar esforços intelectuais! 

Ora, pela simples leitura do acórdão, verifica-se que, a parte reclamante se tornou um "mal necessário" para permitir a criação de jurisprudência desfavorável a Uber, com clara parcialidade no julgamento do caso.

Não cabe ao magistrado suprir ou alterar a vontade das partes acordantes, devendo analisar apenas o preenchimento dos requisitos legais para a validade do negócio jurídico firmado entre as partes. 

Não há qualquer ilicitude jurídica na celebração de acordo, a fim de evitar o julgamento do recurso das partes. 

O que se discute, portanto, é a parcialidade no julgamento que, por óbvio, não permitiu a homologação do acordo sob o pretexto de formar jurisprudência positiva, no tocante ao vínculo de emprego do motorista com o aplicativo Uber, se assim não fosse, por qual motivo não haveria a homologação do acordo apresentado pelas partes e o julgamento do recurso.

Teria o magistrado o livre arbítrio funcional para não homologar um acordo lícito celebrado pelas partes, para tutelar a criação de jurisprudência desfavorável, no tocante ao reconhecimento do vínculo de emprego entre motorista e o aplicativo Uber? 

A questão ainda é muito mais ampla, principalmente na atual fase pandêmica que vivemos, já que referida conduta em sacrificar a parte reclamante em prol da possibilidade de criação de jurisprudência permitirá a distribuição de inúmeros e incansáveis processos judiciais, abarrotando ainda mais a já abarrotada Justiça do Trabalho, inclusive, com a possibilidade de descontinuação das atividades do aplicativo Uber no país e a perda de milhares de postos de trabalho!

Particularmente, data vênia, discordo dos argumentos e fundamentações trazidas em referido julgado, e entendo que não é dessa forma que se fará justiça social, tampouco, supostamente deixará de existir uma alegada precarização do trabalho. 

Há, por óbvio, a extrema necessidade de mudança, adequação legal e discussão técnica a respeito das novas modalidades de trabalho surgidas com a inovação tecnológica, mas, com absoluta certeza, não pode existir um "mal necessário" para que essa mudança venha a ocorrer; nos espelhemos naquela velha frase: "Mudar não é um mal necessário, mudar é uma atitude inteligente para a própria evolução".

Autores

  • é sócio do escritório Galvão Villani, Navarro e Zangiácomo Advogados, especialista em Direito Processual e Material do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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