Opinião

Platão e as decisões monocráticas

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7 de maio de 2021, 20h37

"Mas não estamos agora legislando para heróis e filhos de deuses"
(Platão, As Leis, 853c)

O pastoreio divino na 'República' e no 'Político'
No idealismo da "República", Platão apresenta uma comunidade política perfeita baseada em dois pilares: um rígido sistema educacional e uma organização social justa, fundamentos que levarão os cidadãos à virtude e, portanto, à felicidade. 

A condição para o êxito de tal ordem jurídico-política é a elevação dos filósofos ao governo. Iluminados pela revelação da verdade, os filósofos são os únicos pilotos habilitados a conduzir a polis. O sistema de educação do Estado teria como efeito tornar a legislação praticamente supérflua [1], pois cada cidadão assume o seu papel dentro do corpo social e cresce na excelência da virtude ao seguir o programa educacional perfeito dos filósofos.

Seguindo a mesma premissa, Platão expande essa visão em outro diálogo, o "Político". Num Estado ideal governado por um rei-filósofo, a lei seria dispensável diante da suprema sabedoria do governante em administrar a polis e julgar seus cidadãos:

"O melhor não é a vigência das leis, mas que seja governante o homem que é sábio e que possui natureza régia" ("Político", 294a).

Platão narra como os primeiros homens eram governados por deuses, e como nesse pastoreio divino a vida era feliz. Uma monarquia absoluta com um rei inspirado no pastoreio divino seria, pois, o melhor governo.

Mas já aqui há uma "mediação da política ideal com a realidade histórica" [2], pois Platão oferece uma alternativa caso esse governo ideal não seja factível: uma monarquia constitucional, com a estipulação de leis para conter o magistrado, que talvez não seja tão sábio quanto o pastor divino dos primeiros tempos das sociedades.

O pragmatismo nas 'Leis'
Porém, uma obra pouco conhecida de Platão, escrita já na sua maturidade, quase morte, revela um filósofo talvez desencantado com a possibilidade de um Estado ideal. Após a malfadadas tentativas de governo na Sicília, Platão escreveu um longo compêndio legal, provavelmente para orientar os discípulos da Academia que atuavam como legisladores das sempre nascentes colônias gregas [3].

"As Leis" constitui o último diálogo de Platão. Há nessa obra um interessante aspecto prático. Ciente das dificuldades de uma constituição revolucionária e idealista, Platão propugna aqui por alternativas institucionais. Sabe que a lei deve ter legitimidade social. Sabe, por exemplo, que fazer da polis uma família única de concidadãos, abolindo as famílias menores e a propriedade individual, medidas propostas na "República", são ideais que não estão no horizonte do possível.

Por isso, cabe legislar não para "heróis e filhos de deuses" ("As Leis", 853c), mas para uma comunidade humana, falha como todas as outras. Se na "República" era a educação o pilar do Estado, aqui é a perfeição e completude das leis. Entretanto, mesmo após descer às minúcias de uma legislação que regularia até o cortejo entre homens e mulheres, Platão admite a possibilidade de contendas sociais e crimes. Logo, um sistema de justiça é necessário.

No Estado ideal, o rei-filósofo seria o julgador pleno, pois reuniria em si toda a virtude e o conhecimento necessários para arbitrar contendas. Mas não estamos mais na era do pastoreio divino, como atesta a maturidade platônica.

A técnica decisória mais pragmática e justa seria a constituição de tribunais, com julgamentos colegiados e a possibilidade de apelação a cortes superiores. Resumidamente, o filósofo propõe três instâncias judiciais: 1) uma corte arbitral, formada por juízes escolhidos de comum acordo pelas partes; 2) uma corte local, instituindo-se uma corte para cada tribo; e 3) uma corte de apelação, formada pelos melhores magistrados e com o objetivo de unificar a jurisprudência em toda a cidade. Os magistrados, além disso, devem estudar o caso com cautela e proferir seus votos um a um ("As Leis", 765e).

Platão não abandona de todo o seu ideal de Estado, mas recua alguns passos em "As Leis" e, com visão mais prática, se debruça sobre um projeto imediatamente realizável. Por isso a necessidade de uma legislação que desce às minúcias e de um sistema de Justiça complexo. Não estamos legislando para deuses, nem sendo governados por um pastor divino. São necessários tribunais, instâncias e colégios de magistrados.

O monocratismo dos tribunais superiores
Do Estado ideal da "República" ao pragmatismo de "As Leis" e daí ao Estado brasileiro — o que Platão teria a dizer sobre a nossa constituição?

Provavelmente o filósofo aprovaria os mecanismos de freios e contrapesos da Carta de 1988, pois, se outrora propugnava por uma aristocracia dos filósofos ou mesmo por uma monarquia absoluta de um rei-filósofo, passou depois a elogiar em "As Leis" o sistema espartano justamente por seu sistema misto, que embutia instrumentos dos vários tipos de governo e assim criava um equilíbrio institucional.

Mas há no âmbito do nosso Judiciário um fenômeno que talvez merecesse críticas e censuras do filósofo: a proliferação de decisões monocráticas nos tribunais superiores. Órgãos julgadores que deveriam ter na colegialidade sua essência têm, ao contrário, se notabilizado pela multiplicação de decisões monocráticas, muitas vezes contraditórias.

Chamam a atenção especialmente as liminares concedidas monocraticamente no âmbito de ADIs, fora do período de recesso, prática que não encontra respaldo na Lei nº 9.868/1999 e é inconstitucional porquanto viola o princípio da reserva de plenário (CF, artigo 97). Muitas dessas decisões individuais sequer são referendadas pelo pleno do STF, ensejando, segundo André Rufino, um "estado de coisas inconstitucional", porquanto a decisão sem base legal de apenas um magistrado invalida a expressão legislativa de vários órgãos da democracia representativa [4].

A concessão da cautelar, além de suspender a validade de uma norma aprovada pelo parlamento e sancionada pelo presidente, tem o efeito de repristinar a legislação anterior — por isso Lenio Streck afirma que um ministro do STF tem, sozinho, o poder de editar medidas provisórias, só que, ao contrário da espécie normativa do artigo 62 da Constituição, essa decisão judicial não tem prazo para ser votada e pode valer indefinidamente [5].

O resultado desse monocratismo dos tribunais superiores, dessa hiperindividualização do processo decisório, é que a Justiça passa a ser mais questão de sorte na distribuição do processo do que o efeito de um julgamento justo a partir da observância das instâncias e dos ditames do sistema judicial.

O Platão mais maduro sabe que não estamos sob um governo de pastores divinos, e que tampouco governamos deuses e filhos de deuses. Um olhar mais pragmático não pode dispensar um sistema legal e um sistema judicial, o que envolve órgãos julgadores colegiados e instâncias.

Mesmo o autor da "República" sabia que um julgador virtuoso e conhecedor do Bem não estava no horizonte imediato da Atenas antiga, por isso a proposta de um sistema de Justiça com instâncias distintas e órgãos colegiados. Quase dois mil anos depois, tampouco há vislumbres desse julgador no horizonte brasileiro. Diante da ausência dos pastores divinos em nosso meio, eis aí a validade e pertinência do pragmatismo das leis.

 

Referências bibliográficas
JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

PLATÃO. As Leis. Bauru: Edipro, 2010.

______. Político (ou da realeza). São Paulo: Edipro, 2015.

REALE, Giovanni. História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

STRECK, Lênio Luiz. A decisão de um ministro do STF pode valer como medida provisória? Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2014. Disponível em https://www.conjur.com.br/2014-dez-04/senso-incomum-decisao-ministro-stf-valer-medida-provisoria;

VALE, André Rufino do. Cautelares em ADI, decididas monocraticamente, violam Constituição. Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2015. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-jan-31/observatorio-constitucional-cautelares-adi-decididas-monocraticamente-violam-constituicao.

 


[1] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 1314

[2] REALE, Giovanni. História da filosofia grega e romana, vol. III: Platão. São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 275.

[3] Ibid., p. 281.

[4] VALE, André Rufino do. Cautelares em ADI, decididas monocraticamente, violam Constituição. Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2015.

[5] STRECK, Lênio Luiz. A decisão de um ministro do STF pode valer como medida provisória? Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2014.

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