Opinião

Nova Lei de Licitações justifica o entusiasmo de muitos

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6 de maio de 2021, 18h14

Em vigor desde 1º de abril, a Lei n° 14.133/21 é o novo marco legal dos procedimentos licitatórios e das contratações públicas, carregando consigo grandes e legítimas expectativas de efetivas mudanças em tais procedimentos no Brasil. Em dois anos, o novo diploma substituirá a Lei Geral das Licitações (Lei n° 8.666/93), assim como a Lei do Pregão, a Lei nº 10.520/02 e o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, Lei n° 12.462/11, sendo possível que até o final do biênio a Administração Pública opte por qual normativo licitará, indicando-o expressamente no instrumento convocatório, vedada a aplicação combinada, artigo 191.

A redação da nova Lei de Licitações, como já é popularmente conhecida a Lei n° 14.133/21, revela opção legislativa de integrar os institutos já existentes em legislação esparsa e positivar práticas já conhecidas, acrescentando-lhes inovações potencialmente revolucionárias, perseguindo a ambiciosa e necessária missão de conferir maior qualidade e eficiência nas contratações públicas no país, ao mesmo passo em que se tenta combater a corrupção crônica em tais procedimentos.

Entre os diversos destaques do novo marco legal, comenta-se inicialmente sobre significativas alterações nas modalidades de licitações, ao exemplo da extinção da carta-convite e da tomada de preços, afastando o critério de valor na determinação das modalidades. Especula-se que a extinção da carta convite funcionará como um desestímulo às fraudes frequentemente associadas à modalidade, enquanto a extinção da tomada de preços seria decorrência lógica da supressão exercida pela modalidade de concorrência, agora dotada de maior celeridade pela inversão de fases (como regra, o julgamento de propostas antecederá à fase de habilitação), importada do pregão (artigo 4º, Lei n° 10.520/02) e do RDC, (artigo 12, Lei n° 12.462/11).

Outra relevante mudança é o advento do diálogo competitivo, artigo 28, inciso IV, e artigo 32, nova modalidade de licitação dividida em duas fases: a primeira consiste no diálogo entre a Administração Pública e licitantes previamente selecionados por critérios objetivos, visando ao desenvolvimento de alternativas capazes de solucionar impasses e conferir eficiência na execução de contratações públicas complexas; com a apresentação das propostas finais, inicia-se a segunda fase, esta competitiva. O diálogo competitivo advém de literal tradução da língua inglesa (competitive dialogue) de procedimento previsto desde 2004 nas Diretivas de Contratações Públicas da União Europeia e prestigia a consensualidade no âmbito administrativo, aproximando pelo diálogo a Administração Pública da expertise dos particulares para temas complexos, normalmente relacionados a inovações tecnológicas. A nova modalidade é recebida com euforia, mas já se delineiam alguns pontos de atenção, como o estabelecimento de critérios objetivos para pré-seleção dos licitantes[1], artigo 32, §1º, incisos I e II, a confidencialidade dos documentos sensíveis dos particulares, o risco de cherry picking, entre outros receios que apenas o tempo responderá.

Mais um aspecto relevante é o forte estímulo provocado pela nova lei para a concretização de princípios constitucionais Sendo mantido o destaque para a necessária observância de princípios e regras jurídicas constitucionais, como igualdade, transparência, publicidade, moralidade, desenvolvimento sustentável e tantos outros, a Lei n° 14.133/021 vai além ao estabelecer ações afirmativas e verdadeiros métodos para efetivação desses princípios que transpassam o microssistema licitatório. Pensando nisso, podem ser destacadas algumas inovações legislativas diretamente relacionadas com as garantias constitucionais, a iniciar pelo artigo 25, §9º, em que o legislador oferece a possibilidade ao edital de exigir que o percentual mínimo da mão de obra seja constituído de "mulheres vítimas de violência doméstica", inciso I, e "oriundos do sistema prisional", inciso II. Em sentido semelhante, o artigo 60, inciso III, estabelece que o terceiro critério de desempate é o "desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho", ao passo que o quarto critério é o "desenvolvimento pelo licitante do programa de integridade", que significa, em resumo, a adoção de mecanismos para denúncia de irregularidades e aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta.

Assim, percebe-se que, ao estabelecer tais ações afirmativas, a Lei n° 14.133/21 privilegia a valoração do trabalho humano e a existência digna dos cidadãos, nos termos do artigo 170, VII e VIII, CF, mormente ao considerar que tais grupos, mulheres em situação de violência e ex-detentos, em regra, se encontram em posição de extrema vulnerabilidade econômica e social.

Dessa forma, a legislação federal também encontra guarida no artigo 5º da CF, que estabeleceu, no primeiro dos 78 incisos, a equidade entre homens e mulheres; no artigo 1º, III e IV, que traz a dignidade humana e os valores sociais do trabalho; bem como a concretização dos objetivos do país determinados pelo artigo 3º, que, entre outros, traz a promoção do bem sem discriminação e redução das desigualdades sociais. Deve ser ressaltado, entretanto, que há um valor a ser investido para a promoção dessas ações afirmativas e, caso não sejam bem aplicados e fiscalizados, pode se tornar uma medida sem qualquer proveito social e com desperdício de verbas públicas.

Sobre a perspectiva do cumprimento dos princípios básicos da Administração Pública, precipuamente no que tange a publicidade e eficiência, artigo 37, caput, e §1º, CF, a Lei n° 14.133/21 tem como um de seus principais propósitos a desburocratização. A contradição aparente causada por sua extensão e complexidade é logo justificada pelo tamanho descompasso entre as previsões normativas até então vigentes e a realidade informatizada em ascensão experimentada no plano social brasileiro  e global.

Exemplificativo do empenho da nova Lei de Licitações em modernizar e desburocratizar as licitações e contratações públicas é a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), artigo 174. Trata-se de site oficial que concentrará diversos atos procedimentais, assim como informações cadastrais e gerenciais, conferindo-lhes publicidade e promovendo a transparência e participação da sociedade civil, especialmente pelo sistema de gestão compartilhada de informações referentes à execução dos contratos. Indaga-se, entretanto, se esse padrão exigido pelo artigo 94 da nova lei respeita as particularidades de um país com regiões de acesso à internet desigual, o que acaba trazendo como solução as disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), aplicada à nova lei de licitações por intermédio do artigo 5º, para que sirvam como alternativa para adequar a realidade de cada região do país.

Além da desburocratização, o combate à corrupção tem sido umas das grandes bandeiras da sociedade brasileira nos últimos anos. Em resposta, a nova lei inseriu um novo capítulo ao Código Penal, que promove um claro enrijecimento das penalidades aplicadas: praticamente todos os tipos penais que já existiam passaram por uma elevação das penas. Além disso, novas condutas foram tipificadas, como é o caso dos crimes de frustação de caráter competitivo de licitação (artigo 337-F do CP), patrocínio de contração indevida (artigo 337-G), modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo (artigo 337-H), perturbação de processo licitatório (artigo 337-I), violação de sigilo de licitação (artigo 337-J), afastamento de licitante (artigo 337-K), fraude em licitação ou contrato administrativo (artigo 337-L), contratação inidônea (artigo 337-M), impedimento indevido (artigo 337-N) e omissão grave de dado ou de informação por projetista (artigo 337-O).

Similarmente, sanções cíveis também foram inseridas no corpo da nova lei. Entre essas medidas, destaca-se a desconsideração da personalidade jurídica, agora prevista no artigo 160 da nova Lei de Licitações, para os casos em que "…utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta lei ou para provocar confusão patrimonial". Tudo isso com o objetivo de efetivar os valores de moralidade prescritos no texto constitucional de 1988.

Portanto, considerando que o instrumento para contratação promovida pela Administração Pública deve ter como finalidade efetivar a Constituição da República nos processos licitatórios  pois, caso contrário, contradiria o próprio interesse público —, conclui-se que a Lei n° 14.133/21 persegue tal finalidade máxima, justificando o entusiasmo de muitos. É aconselhável, todavia, certa dose de ceticismo e cautela acerca da eficácia das inovações trazidas pela nova lei no Brasil, visto que os paradigmas que se pretendem alterar representam indubitavelmente um enorme desafio. Por fim, segundo ensinamentos de Carlos Ayres Britto, fica o convite:

"Busquemos, assim, na tela da Constituição as imagens que fazem da licitação um vívido instituto jurídico. É o mesmo que falar: pincemos diretamente do Magno Texto as regras que dão à licitação uma perfeita identidade jurídica, assim como os princípios que com ela mantêm uma relação de maior pertinência lógica" (BRITTO, Carlos Ayres. O Perfil Constitucional da Licitação. Curitiba: Znt Editora, 1997. página 13).


[1] No Direito europeu a Administração Pública exerce sua discricionariedade na pré-seleção dos licitantes do diálogo competitivo.

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