Opinião

O conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal

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26 de junho de 2021, 18h15

O instituto da recuperação judicial nasceu com o intuito de evitar que empresas que enfrentam dificuldades financeiras "fechem as portas". Instituída pela Lei 11.101/05, seu objetivo é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica", como se infere do enunciado no artigo 47 da referida lei.

Relativamente aos aspectos processuais, trata-se de um procedimento especial que exige a apresentação de um plano de estruturação e, uma vez aprovado pelos credores, é homologado pelo juízo competente ("universal"). A partir dessa chancela, cabe a esse juízo universal deliberar acerca de questões que versem sobre o patrimônio da empresa, de modo a promover a regeneração financeira da pessoa jurídica recuperanda.

Contudo, alguns credores que detêm mecanismos jurídicos específicos para satisfação de seus créditos permanecem adotando medidas constritivas contra empresas em recuperação. É o caso do Fisco — seja em âmbito federal, estadual ou municipal —, que dispõe das respectivas execuções fiscais enquanto ferramentas específicas para cobrança de dívidas tributárias em suas esferas correspondentes.

Com efeito, é comum empresas em recuperação judicial serem instadas, no âmbito de execuções fiscais, para pagamento imediato dos supostos débitos, ou garantia do juízo executivo, sob pena de bloqueio de bens — na maioria dos casos, penhora online de suas contas bancárias e ativos financeiros.

Nesses casos, as empresas opõem a chamada "exceção de pré-executividade", medida de caráter excepcional inaugurada pela doutrina e reconhecida como válida na jurisprudência, por meio da qual o executado promove a defesa de seus direitos e interesses independentemente da garantia do juízo, que seria exigida na hipótese de oposição de embargos à execução (regra comum). É o caso das pessoas jurídicas em recuperação judicial, tendo em vista que muitas vezes não possuem condições financeiras para garantir o juízo, de modo a permitir a oposição de embargos à execução fiscal.

Para tanto, a admissibilidade da exceção de pré-executividade, nos termos da Súmula 393, do Superior Tribunal de Justiça, pressupõe que a matéria discutida seja conhecível de ofício, bem como não demande dilação probatória, senão vejamos:

"Súmula 393 STJ:
A Exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória".

Ressalta-se, ainda nesse contexto, o entendimento disposto no artigo 64, §1º, do Código de Processo Civil, acerca do instituto da incompetência absoluta e sua perceptibilidade de ofício:

"§1º. A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício" (grifo do autor).

A exceção de pré-executividade constitui, destarte, meio hábil de defesa, que tem por finalidade obstar um ato de constrição de bens, em razão da extinção da obrigação ou da existência de vício no título executivo, como no caso das empresas em recuperação judicial. Logo, o executado promove a sua defesa, alegando falta de preenchimento dos pressupostos processuais e demais requisitos legais, como no caso, a competência (absoluta) do juízo.

No entanto, em que pese essa conjuntura, não raro o Judiciário rejeita as exceções de pré-executividade dos contribuintes em recuperação judicial, declarando a competência do juízo comum ao argumento de que o deferimento da recuperação não altera a competência do juízo, sequer permitindo o sobrestamento do executivo fiscal.

O fundamento que sustenta muitas dessas decisões é extraído do artigo 187 [1] do Código Tributário Nacional, que estabelece que a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, inventário ou arrolamento.

Ademais, a Lei das Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80), em seu artigo 5º, estabelece que:

"Artigo 5º — A competência para processar e julgar a execução da Dívida Ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro Juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário".

Diante desse cenário, coube às instâncias superiores, como de praxe, intervir a fim de dirimir tais conflitos, realizando a devida ponderação entre as arguições do Fisco e os fundamentos jurídicos suscitados pelos contribuintes que se encontram em recuperação judicial. O Superior Tribunal de Justiça, em recente precedente de março de 2021, reafirmou a jurisprudência da corte no sentido de que é cabível a exceção de pré-executividade.

Conforme se observa do Conflito de Competência nº 159.771/PE [2], a 2ª Seção definiu que compete ao juízo da recuperação judicial ordenar medidas constritivas do patrimônio de empresa sujeita ao procedimento da recuperação judicial, a despeito de haver execução fiscal em andamento, mesmo com procedimento executivo mantido, senão vejamos:

"Conflito de competência. Agravo interno. Execução fiscal. Recuperação judicial. Prática de atos executórios contra o patrimônio da recuperanda. Lei nº 13.043/2014. Manutenção do entendimento da segunda seção.
(…)
2. Contudo, conquanto o prosseguimento da execução fiscal e eventuais embargos, na forma do artigo 6º, § 7º, da Lei 11.101/2005, deva se dar perante o juízo federal competente – ao qual caberão todos os atos processuais, inclusive a ordem de citação e penhora -, o controle sobre atos constritivos contra o patrimônio da recuperanda é de competência do Juízo da recuperação judicial, tendo em vista o princípio basilar da preservação da empresa.
Precedentes.
3. Com efeito, a Segunda Seção possui firme o entendimento de que embora a execução fiscal não se suspenda, os atos de constrição e de alienação de bens voltados contra o patrimônio social das sociedades empresárias submetem-se ao juízo universal, em homenagem ao princípio da conservação da empresa" (grifos do autor).

A conclusão no sentido de manter a deliberação patrimonial concentra dano juízo universal da recuperação judicial e encontra, ainda, motivação de cunho prático: o juízo recuperacional é mais aparelhado para definir as necessidades da recuperanda — o poder de decidir acerca do destino dos bens pertencentes à empresa em recuperação como um todo, e não de um credor específico, em que pese a ordem legal de preferência.

Por derradeiro, é importante repisar que a própria finalidade da recuperação judicial é o soerguimento das empresas submetidas a esse procedimento, para que possam permanecer atuantes no mercado de trabalho e cumprir adequadamente o plano de recuperação. As intervenções patrimoniais que fujam do plano pré-estabelecido comprometem o sucesso do procedimento recuperacional e, consequentemente, a retomada da empresa, em total descompasso com a finalidade do instituto.

Portanto, cabe às instâncias inferiores assimilarem e aplicarem as determinações do STJ, que leva em consideração o regime jurídico aplicável ao tema e a construção lógica dos casos concretos.

 


[1] "Artigo 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento".

[2] STJ – CC nº 159.771/PE. Relator ministro Luis Felipe Salomão. 2ª Seção. Julg. 24.02.2021. Pub. 30/3/2021.

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