Opinião

Dever e responsabilidade do intermediário nos contratos de underwriting

Autor

  • Vitor Rafo Leites

    é advogado (OAB/RS 117.865) do escritório Galvão & Petter Advogados e da Contato Seguro e especialista em Advocacia Corporativa pela Fundação Escola Superior do Ministério Público.

24 de junho de 2021, 6h05

As instituições intermediárias (underwriters) são as responsáveis por possibilitar (ou facilitar) a realização da abertura de capital com a consequente distribuição de ações de forma pública, ou seja, com a aquisição de ações pelo público em geral. Por meio dessa relação jurídica, a companhia ofertante alcança a captação de recursos pretendida e as instituições obtêm a sua remuneração para desempenho da função de distribuição.

O direito e o dever de informação são objeto de extrema atenção regulatória no âmbito do mercado de valores mobiliários, assim como são frequentemente abordados e trabalhados pela doutrina especializada, considerados mecanismos de segurança e confiança do mercado [1].

De igual forma, a noção de informação e do seu acesso sofreu modificações ao longo do tempo, permitindo discussões que variam da sua forma ao tempo de apresentação. Não basta, portanto, o lançamento de informações descoordenadas e desorientadas para o mercado, exigindo-se a observância de forma, de acessibilidade (inclusive linguística), de tempestividade, de local de divulgação, entre outras variáveis que tornem essa informação efetiva, útil para a tomada de decisão.

Ao se analisar o contrato de underwriting e a participação das instituições intermediárias na abertura de capital das companhias, é possível observar uma posição de relevância destas instituições no que diz respeito à obtenção e divulgação de informações, inclusive pelo amplo acesso e o momento de ocorrência (pré-oferta).

Liliam Sanchez Carrete, em sua obra "Mercado Financeiro Brasileiro" [2], expõe que as instituições financeiras intermediárias possuem um amplo acesso à informação, que inclusive antecede a própria contratação para desempenho da atividade. A professora indica que há um período anterior à formação da relação jurídica, que chama de "pré-mandato", oportunidade em que caberia à instituição financeira intermediária a reunião de uma equipe especializada para iniciar "uma abordagem junto ao mercado investidor para conhecer a credibilidade do cliente no mercado e prever a demanda, volume e taxas de juros da emissão" [3]. Nesse período pré-mandato, portanto, já haveria de ser realizada uma pesquisa prévia, um primeiro momento de busca por informações técnicas que, posteriormente, servirão de suporte para prosseguimento do procedimento de oferta.

Após esse momento inicial de buscar por informações, a instituição financeira vencedora da proposta de intermediação começa a aprofundar no negócio da ofertante, a auxiliar na "estruturação e preparação da empresa" [4] para a realização da oferta pública. Nessa etapa, a instituição auxiliará na elaboração do prospecto, documento que conterá informações que dizem respeito tanto a viabilidade do negócio da ofertante quanto à viabilidade do próprio processo de abertura de capital.

Note-se que, a partir desse momento, a instituição intermediária passa a ter acesso aos números, ao relatório de bens, às obrigações assumidas e a outros dados técnicos que lhes são apresentados para elaboração da proposta de oferta pública de ações ao investidor.

Márcia Regina Machado Melaré entende que compete ao underwriter "analisar o relatório econômico-financeiro da empresa, avaliando a capacidade de pagamento, qualidade de garantis, situação financeira, entre outros itens, que vão estar no bojo do prospecto de apresentação da operação". Destaca que há uma função de checagem e validação de informações, tendo em vista que "ao confirmar as informações prestadas pela companhia ao mercado investidor, assume para si a responsabilidade pela veracidade e precisão das informações, devendo, consequentemente, reparar os prejudicados, caso essas, ao final, não correspondam fidedignamente à verdade econômica-financeira e patrimonial da empresa emissora dos títulos, que fez gerar uma condição de oferta".

Esse entendimento encontra amparo nas instruções da Comissão de Valores Mobiliários, como é possível observar do que consta nos artigos 37 e 56 da Instrução CVM nº 400, de 29 de dezembro de 2003.

Não há dúvidas de que a instituição possui acesso prévio e privilegiado das informações da companhia ofertante, tendo a oportunidade de, sem se expor ao risco, como ocorrerá aos investidores na hipótese da oferta pública de ações ser realizada, validar a documentação apresentada pela sociedade empresária. Essa validação, como bem destacado na Instrução CVM nº 400/2003, dever ser executada por meio de "elevados padrões de diligência" [5].

Não se nega que as informações sejam prestadas pela companhia ofertante e que esta também seja responsável por esta prestação. Trata-se de reconhecer, em verdade, um dever recíproco para com o mercado, o reconhecimento de medidas protetivas para a segurança dos investidores.

Tal observação foi objeto de análise no leading case americano Escott v. BarChris Construction Corporation (1976) ao tratar da veracidade das informações constantes no prospecto de oferta pública sob a ótica dos Securities Act:

"The underwriters say that the prospectus is the company's prospectus, not theirs. Doubtless this is the way they customarily regard it. But the Securities Act makes no such distinction. The underwriters are just as responsible as the company if the prospectus is false. And prospective investors rely upon the reputation of the underwriters in deciding whether to purchase the securities" [6].

De igual forma, a análise da diligência da instituição financeira intermediária já foi objeto de análise pela CVM, destacando o Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2015/10276, julgado em 2017, envolvendo a Petrobras e o Bradesco (líder do consórcio). Naquela oportunidade, por exemplo, foi analisado que o Bradesco buscou diligenciar para cumprir seu dever relativo à análise e validação do Prospecto, inclusive por meio da contratação de consultoria jurídica independente, resultando no afastamento da sua responsabilidade.

Merece atenção, de igual forma, o momentum de acesso às informações, já que é realizado em primeira mão, momento oportuno para analisar, validar e, ao fim, expor no prospecto a realidade da companhia ofertante ou, caso seja impedida, de remover-se do processo de abertura do capital. Este momento de acesso se enquadra no conceito apresentado por Carvalhosa e Ezrik, denominado de timely disclosure [7].

Trata-se de apresentar as informações em momento oportuno, de forma tempestiva, que permita a análise do público investidor antes da tomada de decisão. Seguindo essa lógica da tempestividade, observa-se que não haveria momento mais oportuno de exposição das informações, positivas e negativas, do que no prospecto da oferta pública.

Ocorre que a divulgação de informações negativas, que prejudiquem a oferta pública, não será de interesse da companhia ofertante, já que possuem potencial de prejudicar a captação de recursos almejada. Esse mesmo conflito de interesse pode ocorrer sob a perspectiva da instituição intermediária, pois, dependendo do modelo de underwriting, a sua remuneração possuirá relação direta com o sucesso da oferta pública.

A relevância da informação para a saúde do mercado de valores mobiliários e o conflito de interesses em potência existente por parte das companhias e intermediadores na divulgação das informações são as razões pelas quais o regime de informação obrigatória e a regulação específica devem existir. De igual forma, entende-se que seja a razão de existir da possibilidade de responsabilização civil — e não só administrativa por parte da Comissão de Valores Mobiliários [8] — das instituições intermediadoras.

A responsabilização das instituições pode ser sustentada pelo arcabouço jurídico já existente em nosso ordenamento, com aplicação do instituto da responsabilidade civil subjetiva.

Como bem se sabe, o instituto da responsabilidade civil subjetiva exige o preenchimento de pressupostos específicos para a sua aplicação, quais sejam: 1) ato ilícito (ação ou omissão) [9]; 2) dano; e 3) nexo causal. Tais pressupostos são extraídos dos artigos 186 e 927 do Código Civil Brasileiro. Além disso, exige-se a caracterização da culpa lato sensu (dolo ou culpa) [10].

Analisando a questão informacional no mercado de valores mobiliários é possível verificar a existência de um claro direito de ter acesso à informação (mercado e investidor) amparado, por sua outra face, em um dever de prestar informações (companhia e instituição intermediária).

André Grünspun Pitta sustenta que a "informação é uma necessidade básica do ser humano, consistindo em um pressuposto para o exercício de diversas atividades econômicas e direitos individuais" [11]. Seguindo a mesma linha, mas de forma ainda mais incisiva, Aloizio Ferreira afirma que a informação constitui-se em um "direito fundamentalíssimo, porquanto pressuposto de todos os demais", acrescentando que deter a informação "é questão de sobrevivência tanto individual (física, emocional e psíquica) quanto social e política" [12].

Para além do direito ao acesso à informação, a própria informação é considerada, por alguns juristas, um bem público, ou seja, cujo acesso deve ser fornecido a todos [13].

De um lado, portanto, há um direito ao acesso à informação, instrumento pelo qual, inclusive, é possível assegurar e garantir o alcance a outros direitos. Do outro, há um detentor da informação, possuidor dos meios para a sua análise, validação e distribuição.

A instituição intermediária ao ter acesso às informações apresentadas pela ofertante tem a obrigação de realizar a validação (imposição no âmbito administrativo) e, ao não realizar a validação ou deixar de divulgar conteúdo que possua relevância aos destinatários, acaba por incorrer na conduta tipificada no artigo 186 do Código Civil.

O preenchimento do pressuposto da culpa lato sensu ocorrerá justamente pela não observação do "elevado padrão de diligência", pelo agir não profissional, por não dispender todos os esforços para análise, interpretação e validação das informações que lhes foram fornecidas antes de disponibilizá-las ao seu destinatário final.

Por fim, o dano se caracterizará pelos prejuízos financeiros do destinatário da informação ao realizar a compra ou venda de participação acionária sem que o cenário lhe tivesse sido exposto. Não se abre mão, contudo, da efetiva comprovação dos prejuízos suportados.

Cabe ao Poder Judiciário em casos de ações indenizatórias que envolvam direito informacional uma avaliação, inclusive por meio de auxílio técnico, sobre a importância da informação que tenha sido omitida ou que não tenha sido analisada com a devida diligência na tomada de decisões dos investidores. Analisar se de fato o acesso adequado à referida informação seria suficiente para modificar a conduta dos investidores, considerando padrões racionais de tomada de decisão vinculados ao mercado acionário. Esse potencial para modificar a conduta estabelecerá o nexo causal entre a deficiência da informação e o dano provocado ao investidor.

Diante da análise realizada, resta evidenciada a possibilidade de responsabilização das instituições intermediárias (underwriters) pelos danos causados aos investidores que sejam decorrentes da falta de diligência no trato das informações obtidas para realização do processo de oferta pública de ações. Isso, contudo, não afasta a responsabilidade da companhia ofertante, que dividirá o espaço destinado aos réus em eventual ação indenizatória.

Ofertante e underwriter poderão ser responsabilizados, portanto, de forma conjunta pelos danos causados ao mercado, principalmente aos investidores, desde que comprovada a falta de diligência, nos padrões que lhe são exigidos, pela instituição intermediária.

 


[1] "O acesso à informação tem sido objeto de estudos em várias áreas do conhecimento humano, em especial por parte dos economistas. (…) Nesses e em outros estudos importantes sobre o tema, uma conclusão comum a que se chega é a de que a informação constitui um direito de acesso a bens e serviços por parte dos agentes econômicos, devendo o Estado, por meio de suas regras jurídicas e instituições, regular a melhor forma pela qual esse acesso deverá ocorrer. De forma praticamente uniforme em todo o mundo, os mercados de capitais possuem os seguintes princípios motores: eficiência valorativa do mercado; transparência e moralidade. Além disso, ter um mercado com disseminação eficiente de informações reflete no processo de formação de preços, dando maior previsibilidade na avaliação dos ativos investidos." (CAMARGO, André Antunes Soares de. Novo desafio da regulação do mercado de capitais brasileiro: a divulgação de informações. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 38/2007, p. 99 – 121, out/dez 2007)

[2] CARRETE, Liliam Sanchez. Mercado Financeiro Brasileiro. São Paulo: Grupo GEN, 2019. — versão digital.

[3] CARRETE. Ob. cit. p. 206/207.

[4] CARRETE. Ob. cit. p. 210.

[5] "O underwriter, no curso de uma distribuição pública de valores mobiliários, deve analisar as informações fornecidas pela companhia emissora, conferindo sua suficiência e qualidade. Para eximir-se da responsabilidade civil e administrativa decorrente da prestação de informações falsas ou inexatas, incumbe-lhe demonstrar que atendeu ao padrão de diligência. (…) Com efeito, presume-se que ele realiza uma análise profissional das informações prestadas pela companhia, daí considerando-se que seu dever de diligência deve atender aos padrões do banqueiro, não meramente do bom pai de família." (EIZIRIK, Nelson. Responsabilidade com ou sem culpa: Novo Código Civil e Código do Consumidor não se aplicam à atividade do underwriter. Revista Capital Aberto. set/2005.)

[6] Escott v. BarChris Construction Corporation, 283 F. Supp. 643 (S.D.N.Y. 1976). O acesso do julgamento pode ser realizado por meio do link: https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp/283/643/1906035/

[7] CARVALHOSA, Modesto. Modesto, e Nelson Eizirik Estudos de Direito Empresarial, 1ª edição. Editora Saraiva, 2010. p. 507

[8] CAMARGO, André Antunes Soares de. Novo desafio da regulação do mercado de capitais brasileiro: a divulgação de informações. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. vol. 38/2007, p. 99 – 121, out/dez 2007

[9] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. Grupo GEN, 2020. p. 35 — versão digital

[10] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. Grupo GEN, 2020. p. 40 — versão digital

[11] PITTA, André Grünspun. O Regima de Informação das Companhias Abertas. São Paulo: Quarter Latin, 2013. p. 69

[12] FERREIRA, Aloizio. Direito à Informação, Direito à Comunicação. São Paulo: Celso Bastos/BDC, 1997. p. 81.

[13] PITTA, André Grünspun. O Regima de Informação das Companhias Abertas. São Paulo: Quarter Latin, 2013. pp. 74 e 76.

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  • é advogado (OAB/RS 117.865) do escritório Galvão & Petter Advogados e da Contato Seguro e especialista em Advocacia Corporativa pela Fundação Escola Superior do Ministério Público.

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