Opinião

Sem a Lei de Alienação Parental, crianças e adolescentes ficarão desprotegidos

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22 de junho de 2021, 15h09

No ano de 2009, um caso muito triste — grotesco até — foi relatado no artigo "Como o Leão da Montanha…", ocorrido em uma das Promotorias de Infância da capital do Rio de Janeiro. Uma mãe havia levado a filha bem pequena, logo cedo pela manhã, até um órgão de revelação de abuso, acusando o pai da menina de tê-la estuprado, e exigindo que medidas fossem tomadas para manter a criança protegida.

A equipe que a atendeu, ao ver a menina, percebeu que havia indícios reais de abuso, já que a genitália da criança estava severamente machucada, e fez os encaminhamentos devidos junto a conselho tutelar, delegacia de polícia, IML e Promotoria de Infância. No dia agendado para que a mãe fosse atendida pela promotora de Justiça e a equipe ministerial, o fax contendo o laudo do IML foi recebido e, estranhamente, o perito afirmou que haviam sido encontrados na vagina da menina vestígios de cenoura e de pepino.

Intrigada com o fato — já que pais que abusam, em geral, usam instrumento próprio —, a promotora fez muitas perguntas à genitora da criança, buscando entender melhor o que havia realmente acontecido. A mãe da criança não resistiu às perguntas feitas e acabou nos contando, aos prantos, que havia sido ela própria quem havia introduzido aqueles legumes na vagina da filha, depois de dopá-la com tranquilizantes, para colocar a culpa em cima do pai da criança e, dessa forma, conseguir seu intento: tirar-lhe o direito de conviver com a filha.

No ano de 2014, outro caso foi descrito no livro "Perdas Irreparáveis: alienação parental e falsas acusações de abuso sexual" (2. ed. Rio de Janeiro: Publit, 2014), em que é relatado o ocaso da advogada K., de 30 anos, que à proporção que ascendia na carreira e se desenvolvia, tinha sua convivência impedida ou restringida pela avó materna e pelo pai do menino. A avó paterna humilhava o próprio filho, ressaltando sua inferioridade e fracasso em comparação ao sucesso da esposa. Sobreveio a separação do casal e foi realizado acordo amigável para que o filho residisse com o pai e avó paterna.

Após um tempo, conquistada a estabilidade financeira por K., esta se preparava para receber o filho para com ela residir quando foi surpreendida com as acusações de que teria abusado sexualmente do filho, pois teria passado a língua no órgão sexual da criança. As denúncias foram feitas à delegacia de polícia e ao conselho tutelar da cidade. Laudos psicológicos foram elaborados unilateralmente, desconsiderando a palavra da mãe. Em cada depoimento, o menino contava versões diferentes das anteriores, nunca contando espontaneamente o que havia acontecido, só confirmando o que era sugerido. O livro, escrito pela profissional de Psicologia que acompanhou a mãe da criança, revela que a jovem K. foi inocentada depois de dois anos de sofrimento intenso.

Em 2018, notícia publicada no portal "Migalhas" revelou a confirmação em segundo grau da sentença de condenação por danos morais, no valor de R$ 50 mil, de um casal que se divorciou em 2002 e, a partir de então, o homem tentou reatar o relacionamento com a ex-mulher. Entretanto, ao não obter êxito, ele teria passado a induzir a filha do casal para que ela desenvolvesse sentimentos negativos em relação à mãe. Por esse motivo, em 2014, a mulher ingressou na Justiça contra o ex-marido, alegando que a alienação parental gerou graves abalos psicológicos à filha, que continua a sofrer com crises emocionais decorrentes da indução. A autora afirmou que havia sido denunciada injustamente a autoridades policiais pelo ex-marido, que buscava denegrir sua imagem. Por isso, pleiteou indenização por danos morais. Em relação às acusações injustas feitas pelo ex-marido às autoridades policiais, a Justiça entendeu que a conduta do apelado demonstrava ser uma tentativa de atingir a ex-cônjuge, já que os motivos elencados pelo genitor em ir até a polícia com a criança eram torpes e incoerentes.

No ano de 2019, foi publicado o julgamento do Agravo de Instrumento nº 2123561-xx.xxxx.8.26.0000, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual foi apontado que o estudo social realizado sugeriu a manutenção da guarda provisória à tia paterna, registrando que fora necessário relembrar a criança quanto ao suposto abuso sexual, tendo ela dito, inclusive, "que a mãe foi quem mandou ele falar que o pai mexeu em seu peru". Realizado novo estudo psicológico sobre o caso, a criança negou qualquer violência sexual, afirmando que sua mãe foi quem o orientou a mentir.

2009, 2014, 2018, 2019. Uma progressão linear temporal que só mostra que, entrai ano, sai ano, a prática de atos de alienação parental continua sendo realidade no Brasil, causando intenso sofrimento aos filhos, incutindo-lhes prejuízo ao seu sadio desenvolvimento e, nos casos mais escabrosos narrados nas fontes acima, causando abuso físico e abuso sexual por parte dos alienadores nos próprios filhos que supunham "proteger".

Há um movimento de revogação da Lei de Alienação Parental, por se dizer que a lei permite que abusadores sexuais fiquem com a guarda de seus filhos. O movimento esquece, porém, que a violência contra crianças e adolescentes não é perpetrada apenas por quem seja pedófilo: a violência (inclusive sexual) pode ser perpetrada por quem aliena.

Pedófilos e alienadores são dignos de toda a reprovação moral, social e toda a punição jurídica cabível. Combater a pedofilia não significa esquecer a alienação parental, e combater a alienação parental não significa esquecer a pedofilia.

Quem resume o debate da revogação da Lei de Alienação Parental ao fato de que "é uma lei que protege abusadores", das duas, uma: ou tem ignorância sobre toda a complexidade do fenômeno violento que é praticar alienação parental ou está mal-intencionado ao defender a retirada de um importante instrumento jurídico protetivo.

Para exemplificar, copio abaixo o parágrafo único do artigo 2º da Lei de Alienação Parental, que exemplifica tipos de atos de alienação parental. Eu tenho certeza que o leitor já foi testemunha de pelo menos um desse, ou na sua vida pessoal, ou na sua família, ou observando casos em seu círculo social/profissional.

Exemplifica a Lei nº 12.318/2010 como atos de alienação parental:

"Artigo2º (…).
Parágrafo único. (…).
I – realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade;
II – dificultar o exercício da autoridade parental;
III – dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV – dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V – omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI – apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII – mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós".

Justifica anular toda uma legislação, com sete exemplos de atos, por causa de um ato (inciso) que supostamente tem sido mal utilizado? Claro que não. É retrocesso na proteção integral e é deixar as crianças e os adolescentes à mercê dos alienadores, em suas demais formas de prática de alienação.

Se há quem pretenda usar indevidamente a Lei de Alienação Parental para esconder reais abusos, o problema não está na lei, mas nos profissionais e nas instituições do sistema de Justiça, pois toda e qualquer decisão precisa ser fundamentada em provas, depois do contraditório e da ampla defesa.

É o mesmo que pretender revogar a Lei Maria da Penha só porque algumas mulheres fizeram homens serem presos ou receberem medida protetivas injustamente.

Não é forçoso lembrar que, mesmo que a Lei de Alienação Parental seja revogada, continuará sendo crime: "Artigo 339  Dar causa à instauração de inquérito policial, de procedimento investigatório criminal, de processo judicial, de processo administrativo disciplinar, de inquérito civil ou de ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo de que o sabe inocente" (Código Penal). Ou seja: um suposto pedófilo também poderá invocar, em sua defesa, que está sendo vítima de "denunciação caluniosa".

Por que só a Lei de Alienação Parental está sendo cobrada para revogação, enquanto permanece válido o artigo do Código Penal? E o crime de denunciação caluniosa recebe a pena de reclusão, de dois a oito anos e multa, o que significa que quem fez a denúncia poderá ser preso — logo, ficará sem a guarda da criança/adolescente.

Fica a dúvida no ar: por que esse combate desarrazoado contra a Lei de Alienação Parental, se ela apenas repete, para o contexto familiar (e sem prever como crime) algo que é tipificado como crime num contexto mais amplo?

Não podemos permitir que a proteção dos filhos acabe. Sem a Lei de Alienação Parental, os filhos ficam à mercê dos alienadores, que podem ser homens, mulheres, pais, mães, avós, tios, madrastas, padrastos e outros. Alienação parental não é praticada exclusivamente por um gênero. Vide o caso descrito nas linhas iniciais deste artigo, sobre a mãe K., que foi severamente alienada por parte do ex-marido.

Lei de proteção se aperfeiçoa, não se revoga. Desde a sua promulgação, em 2006, a Lei Maria da Penha já foi modificada pelas Leis 13.505/2017, 13.641/2018, 13.772/2018, 13.827/2019, 13.871/2019, 13.880/2019, 13.882/2019, 13.894/2019 e 13.984/2020, pois é um movimento natural e até esperado do Direito que as leis sejam continuamente aperfeiçoadas.

Não se pode permitir o sucateamento da proteção integral. O Estatuto da Criança e do Adolescente existe, mas sozinho não é suficiente para proteger as crianças e adolescentes do mal da alienação parental.

A Lei nº 12.318/2010 trouxe o efeito pedagógico de proibir a prática desses atos, além de trazer a certeza da definição jurídica sobre o conceito desse mal, sua forma de prevenção e combate e quais medidas devem ser adotadas, assim como a Lei de Palmada o fez, assim como a Lei do Bullying o fez: todas, complementando a proteção já existente no ECA, são leis que deram um nome a um mal ainda invisibilizado e naturalizado na sociedade, prevendo formas específicas de combate para esclarecer família, Estado e sociedade de que esses problemas não serão mais tolerados.

O Congresso Nacional tem à sua frente a grande responsabilidade de não ser conivente com discursos sensacionalistas, comprando fake news e deixando de aprofundar os estudos sobre o tema. Caso contrário, para atender a meia dúzia de interesses, prejudicará a presente e as futuras gerações, que vão continuar sofrendo atos de alienação parental sem conseguir se proteger contra.

Precisamos de um debate racional, ético, democrático, respeitoso, científico, que coloque verdadeiramente o superior interesse das crianças e dos adolescentes como fiel da balança, e não o interesse adultocêntrico de extirpar uma ferramenta legal que há dez anos tem provado sua importância como limitador dos egos e das violências invisíveis no espaço da família.

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