Segunda leitura

As "lembranças do mundo jurídico" por quem o conhece como ninguém

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

20 de junho de 2021, 8h00

Spacca
Poucas pessoas conhecem o mundo jurídico brasileiro e, entre estes poucos, mais difícil ainda será encontrar um que se disponha a transmitir toda a sua experiência à comunidade jurídica. Roberto Rosas, cuja biografia tomaria todos os caracteres que esta coluna permite, reúne todas as condições para falar a respeito.

Perseguindo a difícil arte de ser conciso, lembro que seu extenso currículo registra graduação em duas faculdades (Ciências Jurídicas pela Faculdade Nacional de Direito e Ciências Sociais pela UFRJ), mestrado e doutorado (UNB), ministro do Tribunal Superior Eleitoral, examinador em diversos concursos públicos, oito livros publicados, dezenas de artigos, centenas de palestras, membro de Academias e Institutos ligados ao Direito, Conselheiro Federal da OAB e, desde 1969, consagrado advogado em Brasília.

Mas todos estes relevante títulos e atividades de nada valeriam se não tivesse ele um profundo interesse pela vida. Fascinado com os tipos humanos, amante de uma boa prosa, portador de memória invejável e de um senso de humor que resiste às piores notícias, traz consigo na lembrança marcantes episódios da história do Poder Judiciário e das carreiras jurídicas, do Império ao presente.

E agora, em ato de solidariedade, compartilha conosco seus conhecimentos através da obra “Lembranças do Mundo Jurídico”, pela GZ Editora. Poderá o menos avisado pensar que se trata de uma obra de memórias de alguém saudoso de outros tempos ou de si mesmo em outros tempos. Não, absolutamente não. Cuida-se de livro que tem, sim, tempos passados, mas tem também o que vivemos.

E mais. A obra vai muito além do título. Não se limita a lembranças, mas traz também o pensamento do autor sobre aspectos relevantes, como o comportamento ideal do Judiciário e do Ministério Público, atuais, como a arbitragem e a mediação, e necessários, como os conselhos aos advogados e aos magistrados.

Feita esta breve introdução, vamos ao livro.

À parte a introdução, as devidas homenagens e a bibliografia, a obra pode ser dividida em três partes, não necessariamente em sequência. Ela tem informações históricas, a opinião do autor sobre temas diversos e finda com “Estórias do Judiciário e da advocacia”. Do aspecto histórico, que não chega a ser dos tempos de antanho, como diziam os antigos doutrinadores, vale lembrar o seguinte:

A evolução do Poder Judiciário. Entre outros registros, no tempo do Império a criação dos juizados de paz, as movimentações dos juízes por todo o território nacional e o envolvimento que tinham com funções políticas, o que cessou somente em 1871. O Judiciário após a República, com a criação do Supremo Tribunal Federal e da Justiça Federal, grandes vultos como Pedro Lessa, a criação de concursos de ingresso, o reconhecimento das necessárias prerrogativas a partir da Constituição de 1934.

A atuação do STF nos momentos críticos da República mereceu especial destaque. Poucos sabem que, por diversas vezes, a Corte interviu em atos do Poder Executivo e mostrou independência, desde a Proclamação da República até o período de regime militar. Neste, por decisões, como ao não admitir decreto-lei para a criação de tipo penal, ou através de atos, como a ousada presença do ministro Djaci Falcão, então presidente da Corte, no velório de Juscelino Kubitschek (1975), onde não havia sequer uma autoridade do Poder Executivo. Mais recentemente, o voto proferido pelo ministro Carlos Velloso, ao votar pela condenação criminal no julgamento do ex-Presidente da República Collor de Mello, que o havia indicado para a Corte.

Registra o autor (item 31) o pouco interesse pelo estudo do Poder Judiciário no Brasil, ao contrário do que sucede nos Estados Unidos, fazendo menção aos livros que considera mais relevantes.

Com respeito aos cursos de Direito, narra o autor como se deu sua criação em São Paulo e Olinda, que chama de berços do mundo jurídico, (1827) e, décadas depois, no Rio de Janeiro, após a proclamação da República (1891), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Importante também a referência à consolidação da advocacia, a começar pela criação do Instituto dos Advogados Brasileiros (1843), da Ordem dos Advogados do Brasil (1930), as disputadas eleições para a presidência (v.g., Mário Sérgio Duarte Garcia, que venceu com 1 voto de vantagem), as agruras, a resistência no período de governo militar, a inclusão da advocacia como essencial ao sistema de Justiça no art. 133 da Constituição de 1988, por iniciativa do então Deputado Michel Temer, e o Exame de Ordem como requisito para o exercício da profissão.

Grandes advogados também foram lembrados, a começar por Sobral Pinto que, a uma simples alegação de insuficiência de recursos, abria mão dos honorários. Rui Barbosa, por óbvio, permeia as folhas do livro em diversos momentos, com sua presença. Pimenta Bueno no passado, José Carlos Barbosa Moreira mais recentemente, e outros tantos.

Grandes doutrinadores não foram esquecidos. A partir de Pontes de Miranda, fez-se a justiça da lembrança de Orosimbo Nonato, San Tiago Dantas, Carlos Maximiliano, que esteve nos três poderes, e Miguel Reale, que recusou o cargo de ministro do STF para bem cuidar dos netos que ficaram órfãos com pouca idade. Faz justiça ao mencionar Aliomar Baleeiro, cuja maestria tornava o árido Direito Tributário matéria encantadora e, também, a Hely Lopes Meirelles, cujo livro Direito Administrativo Brasileiro enfrentava, com clareza, os temas mais controvertidos.

História à parte, vale registrar a visão do autor a respeito de aspectos importantes — e por vezes polêmicos — no cenário atual. E aí vale o alerta: o autor, em que pese a cordialidade no trato, é observador sagaz dos fatos e das suas consequências, não se negando a criticá-los, muito embora com a elegância que o caracteriza.

Encerrando os comentários sobre o item 33, ao defender o respeito às instituições e à legalidade, chama a atenção para algo sobre o qual pouco se fala atualmente, ou seja, a necessidade de não apenas exigirmos nossos direitos, mas também de cumprirmos nossas obrigações “em nossas atividades, de advogado, de juiz, de promotor, de estudante, de professor”.

Profundo conhecedor da história do sistema de Justiça, não flutua em quiméricas postulações sobre a ampla defesa. Ao contrário, muito embora defensor ardoroso do estado de Direito, faz críticas pertinentes.

Assim, aponta algumas causas do atraso nos julgamentos (item 46). Por exemplo, o processo de execução, que “É outro processo, mais confuso que o processo de conhecimento”. O abuso no uso dos embargos de declaração, que muitas vezes servem a outros interesses, por exemplo “como instrumento de barganha para a obtenção de um acordo, ou uma possível vantagem que raramente ocorre”. Toca também no ponto nevrálgico da demora, ao mencionar a ampla possibilidade de recursos aos tribunais superiores, afirmando que “Para o STF/STJ, urge a adoção de medidas restritivas de acesso”.

De grande interesse, da mesma forma, as definições sobre precedente, súmula, jurisprudência e acórdão, muitas vezes confundidas (item 21); a importância dos advogados em preparar-se para a arbitragem e a mediação; a advertência (item 34) de que o professor de Direito, atualmente, vai além de ensinar, sendo um verdadeiro educador; a necessidade da segurança jurídica, chamando a atenção de ser ela objeto de destaque no Pacto de São José da Costa Rica, art. 8º (item 44).

A encerrar o livro, muitas histórias que se tornaram célebres, por vezes contadas como se tivessem ocorrido em mais de um local. Nem todos dão relevância aos aspectos jocosos, às fragilidades humanas, às reações absurdas, por vezes vindas de pessoas da mais alta expressão cultural e posição social. O autor, contudo, sabedor de que o ser humano necessita desta forma de escape para enfrentar as dificuldades que a vida lhe impõe, faz questão de registrá-las com destaque. Vejamos algumas:

“O professor de direito argui o aluno, e este nada, então o professor pede ao funcionário: ‘Traga capim’. E o aluno responde: ‘Para mim um cafezinho’.

“Paulo Brossard, então advogado, descia a Rua da Praia, em Porto Alegre, quando ouviu um grito: ‘Brossard! Brossard!’ Olhou, não era um amigo, muito menos íntimo. Aproxima-se o gritador e pergunta: ‘Brossard, quais são as novidades?’ Brossard responde: ‘Esta nossa intimidade!”

“Na audiência, o réu se apresentou sozinho, e o juiz perguntou: ‘Quem é seu advogado’? ‘É Deus’. ‘Não pode, não tem inscrição na OAB”.

“Uma senhora é apresentada a um senhor. Este diz: ‘Conheço, já dormimos juntos’. A senhora repudia: ‘Sou casada, pessoa séria’. Volta o senhor: ‘Não afirmei sobre este aspecto, já dormimos juntos numa conferência do Professor de Direito Arquimedes”.”

Finalizando, sempre é bom lembrar que o bom profissional do Direito vai muito além de saber qual é o prazo para o agravo de instrumento ou como se recolhem as custas do processo. Dele se exige cultura ampla, visão de mundo, conhecimento do ser humano e sabedoria para, com bom humor, enfrentar as vicissitudes do seu trabalho.

Em suma, o livro relata o mundo do Direito brasileiro, história, seus atores e instituições. Com esta obra, Roberto Rosas dá uma grande contribuição à classe jurídica nacional.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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