Opinião

A separação de poderes e o necessário equilíbrio nestes tempos

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15 de junho de 2021, 16h09

A questão da separação de poderes é um tema antigo entre as democracias mais experimentadas, mas foi a partir do surgimento do Estado moderno ocidental que se pôs de modo mais candente e importante. E isso decorreu, em sua maior parte, do fato histórico incontestável de que as estruturas estatais modernas  inicialmente imperiais, autoritárias, hereditárias e despóticas  sempre ou as mais das vezes revelaram a certa vocação ao centralismo e ao unitarismo político, com a concentração de funções nas mãos de um único governante ou colegiado.

Com efeito, a separação, a autonomia e a harmonia entre os poderes distintos do Estado voltou à linha de frente da reflexão política atual. O tema, com algumas variantes, apareceu no recentíssimo discurso de posse do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Também foi mencionado pelo senador da República Rodrigo Pacheco, quando candidato à presidência do Senado, e por deputados na disputa pelo comando da Câmara Federal. Efetivamente, a separação dos poderes está na base da democracia representativa. O contexto das citações aludidas pelas autoridades não difere: em tempos de crises acentuadas das mais diversas naturezas, a relação entre o Estado e os cidadãos é mais harmoniosa quanto maior a capacidade dos poderes independentes do Estado atuarem com equilíbrio recíproco, cada qual na sua função. É, aliás, um tema central nas análises sobre as relações entre governo e sociedade desde a antiguidade.

Segundo o professor Paulo Bonavides descreveu, "o insistente fenômeno histórico da centralização do poder remonta a esses primórdios", quando o dirigente político (o monarca, rei ou o imperador) reunia em si a soma magnífica das atribuições estatais mais relevantes, como a de legislar, administrar e julgar. Nessa fase histórica, está-se diante do Estado na sua versão monística e autoritária, que foi do maior agrado das monarquias europeias ocidentais absolutistas.

Na lição do saudoso mestre cearense professor Bonavides, essa forma intensamente concentrada dos poderes estatais foi estratégica na consolidação daquelas estruturas, que em geral assumiram o feitio unitário, explanando o mestre cearense que de sorte foi assim "(…) que se deu a aparição do Estado Moderno, cujo aspecto centralizador e tendência unitarista ressaltam desde logo em presença da vontade política soberana, que é a vontade do Estado, congraçando, fundindo ou subordinando os ordenamentos sociais concorrentes, doravante convertidos em ordenamentos inferiores e secundários. Corresponde esse momento centralizador à plena afirmação do Estado como organização do poder. Todo um sistema de autoridade manifestamente absoluta assinala essa fase inicial e preparatória, cujo unitarismo se define através de um centro de direção histórica, posto no poder da realeza absoluta, tendo por sustentáculo legitimador a doutrina corrente da soberania" (Ciência Política. Rio de Janeiro: FGV, 1967, p. 103).

Essa concentração era identificada com a matriz histórica das posturas eivadas de antagonismo com as liberdades e os direitos dos indivíduos, conforme Montesquieu sintetizou, ainda no século XVIII, dizendo que "quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleça leis tirânicas, para executá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor" (O Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasília: 1982, EdUnB, p. 187).

Foi só a partir desse quadro histórico que emergiram as chamadas revoluções liberais, que produziram as instituições do Estado Constitucional ou Estado de Direito, cujo principal pilar é a separação de funções, precisamente para evitar o sucesso das vocações despóticas que se manifestaram no sistema político precedente. No Estado de Direito é a Constituição escrita  e não a vontade dos agentes políticos  que rege as relações dos indivíduos com o Estado e, também, as relações entre os diversos órgãos de cada um dos seus poderes. No entanto, mesmo no ambiente constitucional podem ocorrer manifestações autoritárias, como quando a separação de poderes não consegue frear aquelas tais vocações absolutistas que, embora não unitarizantes, impedem o diálogo harmônico entre os poderes e, por consequência, comprometem o funcionamento eficiente do Estado. O detalhe é que a população costuma perceber e sofrer as consequências dessa assimetria.

É por esse motivo que essa técnica da separação harmônica de poderes deve ser priorizada e empreendida ao máximo, tanto no plano formal quanto no prático (material), de modo que as instituições de cada um dos poderes separados se controlem reciprocamente, valendo-se pelas vias desejáveis do diálogo franco e aberto, da representação legítima de interesses e com respeito recíproco. Não parece condizer com a limpidez dos canais de reciprocidade dos poderes o uso de agressões mútuas, mas, sim, no do que o Direito convencionou denominar de sistema de freios e contrapesos. Esse sistema se desenvolveu no constitucionalismo norte-americano contemporâneo, instrumentalizando-se a partir de ferramentas legais, jurídicas e até mesmo fundadas na diplomacia institucional. Fica claro que a prática institucional depende, obviamente, do espírito democrático dos ocupantes dos postos políticos, pois, sem essa característica dos dirigentes políticos, ficarão ao relento as disposições constitucionais que tendem a assegurar o modo de vida democrático.

O equilíbrio que se requer no funcionamento das instituições dos poderes estatais separados e harmônicos depende da atuação de um juiz supremo, que possa arbitrar as eventuais disputas, na qualidade de guardião da Constituição. Ao ver do constitucionalista mineiro professor Raul Machado Horta, essa questão pertence ao que chama de desestima constitucional. Na sua observação, "é de verificação corriqueira a afirmação de que o sentimento constitucional, exprimindo a adesão popular à Constituição, não é generalizado, nem constante". E frisa que o sentimento constitucional, "para assegurar a permanência da Constituição, não se resolve exclusivamente no mundo das normas jurídicas (…), mas decorre também da adesão à Constituição, que se espraia na alma coletiva da Nação, gerando formas difusas de obediência constitucional, assim se conjurando os colapsos paralisadores do acatamento ao texto fundamental" (Direito Constitucional. Belo Horizonte: DelRey, 1999, p. 99).

O jurista alemão professor Konrad Hesse explanou que o significado superior da Constituição normativa manifesta-se na quase ilimitada competência das Cortes Constitucionais, que estão autorizadas, com base em parâmetros jurídicos, a proferir a última palavra sobre os conflitos constitucionais, mesmo sobre questões fundamentais da vida do Estado (A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 28). O ponto sensível desse sistema de controle recíproco é o equilíbrio no funcionamento de cada poder, dentro de sua órbita própria, traçada superior e inviolavelmente pela Constituição.

Dessa forma, as questões que dizem respeito ao equilíbrio entre os três poderes do Estado podem  e devem  ser evitadas pelo comportamento equilibrado e respeitoso dos agentes das diversas instituições. Porém, nos casos em que esse mesmo comportamento desborda do âmbito constitucionalmente reservado, abre-se a necessidade de atuação daquele juiz supremo, capaz de fazer a atividade legislativa ou administrativa retornar à normalidade.

Parece fácil consolidar tais postulados na via formal de um artigo jurídico, no entanto, também não é inviável concluir que, para além das grandes técnicas constitucionais de governança, é certo que os concidadãos revestidos de poder (cidadãos como qualquer um de nós) hão de buscar, para além dos calores da política e dos debates acirrados, os caminhos seguros do diálogo, da temperança, do respeito e da urbanidade. Do contrário, entraves institucionais hão de se acumular e, pior, a população pode refletir tais embates em comportamentos coletivos igualmente acalorados e acirrados. É assim que se opera a afirmação da separação de poderes, pois, do contrário, as tensões se agravarão e poderão resultar em crises.

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