Captação de recursos

Autor da ideia de SAs simplificadas, Warde enxerga momento econômico ímpar

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9 de junho de 2021, 19h42

De tempos em tempos surgem na advocacia pessoas que reinventam o ofício. Em geral, pessoas de grande capacidade de articulação e que têm em comum a característica de não se limitar às fronteiras do escritório. Eles interagem com o Executivo, com o Legislativo, com a Sociedade e com Judiciário, muito além das causas que patrocinam.

Warde, um dos inovadores da profissão, teve a boa ideia de propor um regime jurídico para as empresas brasileiras, o das sociedades anônimas simplificadas — que acaba de virar realidade. O presidente Jair Bolsonaro sancionou na semana passada a Lei Complementar 182, que trata principalmente do estímulo ao surgimento e manutenção de startups — a chave do futuro no que toca à inovação.

ConJur — Como nasceu a ideia de criar esse regime jurídico no Brasil?
Walfrido Warde — Em 2012, eu e o advogado Rodrigo Monteiro de Castro concluímos que o Brasil não tinha o que a doutrina chama de sociedade hibrida, ou seja, uma forma societária que ostente as características das sociedades de capitais e, ao mesmo tempo, das sociedades contratuais, marcadas pela pessoalidade entre sócios. Uma sociedade que seja capaz de organizar uma atividade empresarial entre pessoas que se conhecem, que têm uma química pessoal e, ao mesmo tempo, captar dinheiro no mercado de capitais. Alguns países têm essa forma societária desde os anos 1970. E no Brasil precisávamos disso.

Começamos a pensar no anteprojeto de lei. Procuramos o deputado Laercio Oliveira (PP-SE), que se convenceu a apresentar o Projeto de Lei 4303/2012, que levava ao Congresso Nacional uma proposta de regime jurídico para aquilo que nós chamamos de sociedade anônima simplificada, que nada mais é que um regime jurídico específico dentro da Lei da Sociedade Anônima.

ConJur — O senhor inclusive publicou um livro a esse respeito…
Warde — Isso. Apresentamos o nosso anteprojeto na internet para que as pessoas opinassem sobre ele. Quase como uma consulta pública. Fizemos artigos em jornais como o Valor Econômico e escrevemos o livro "Regime Especial da Sociedade Anônima Simplificada", publicado pela Saraiva, com prefácio do Dr. Guilherme Afif Domingos, que na época era ministro da presidente Dilma Rousseff (Secretaria de Micro e Pequena Empresa) e que continua muito influente sobre a equipe econômica do ministro Paulo Guedes (Economia). Afif foi, junto com Laércio Oliveira, um dos principais padrinhos políticos dessa conquista para o Brasil.

ConJur — Pelo que o senhor já nos explicou, esse novo regime vai permitir que empresas de pequenos portes possam capitar recursos na Bolsa. Ou seja, vão entrar no mercado de ações. Eu pergunto: os escritórios de advocacia, um açougue, um jornal, vão poder abrir o capital na Bolsa?
Warde — O que esse regime desde logo faz: simplifica o manejo da sociedade anônima. Por quê? Porque você precisa construir uma sociedade anônima para ir ao mercado de capitais. E Brasil isso era caro demais e complicado demais para as pequenas e médias empresas. Uma sociedade limitada era mais fácil de manejar. O pequeno e médio negócio para constituir uma sociedade anônima tinha que publicar no jornal, precisava ter vários diretores… O manejo era difícil, complexo e caro.

Então o que que faz um regime da sociedade anônima simplificada? Primeiro lugar: permite que funcione com apenas um diretor. Que os documentos obrigatórios que a lei manda publicar sejam publicados em meio eletrônico. Permite uma coisa que é importante nas empresas pequenas e médias: a distribuição desigual de dividendos.

Então imaginemos que você, Márcio Chaer, busque o Walfrido Warde para empreender. O Walfrido tem uma capacidade em uma determinada área, mas não tem dinheiro. O Walfrido tem 10% das ações e o Márcio, 90%. Todavia, você reconhece que o trabalho do Walfrido merece acesso a lucros na ordem de 30%. Então o Márcio tem 90%, mas ganha 70% dos lucros. E o Walfrido tem 10%, mas ganha 30% dos lucros. Isso é fundamental para empresas em que o trabalho se conjuga ao capital, por conta dessa pessoalidade à qual me referia.

Além disso, o que faz a lei complementar 182, no seu artigo 16, quando encampa o regime jurídico da sociedade anônima simplificada? Permite, agora, que a CVM [Comissão de Valores Mobiliários], com esse novo arcabouço legal, possa regular a criação do mercado de acesso. A CVM desde o começo aplaudiu o nosso projeto de lei, mas estava de mãos atadas. Sem lei, ela não podia fazer a regulamentação do mercado de acesso. E o que é o mercado de acesso? É basicamente aquele segmento de mercado onde empresas de pequeno e médio portes poderão de ações ou de títulos de dívida para o público anônimo.

Por exemplo: captações de R$ 30, R$ 40, R$ 50, R$ 100 milhões. Isso será acessível. Veja: pela lei complementar podem se encaixar no regime de sociedade anônima simplificada todas as SA que faturem até R$ 78 milhões. Mas podem participar do mercado de acesso todas as SA que tenham receita bruta até R$ 500 milhões. Ou seja, isso faz com que se crie um mundo novo. Faz com que essas pequenas e médias empresas não precisem ir a banco.

Temos um momento único na história do país porque o rentismo estava todo focado na renda fixa. Com a queda da taxa de juros, o investidor procurou o mercado de ações para obter maiores lucros, rendimentos. As empresas também vão ao mercado captar recurso para si. É um momento único e estavam fora as pequenas e médias. Agora podem estar inseridas. E como você mesmo disse: claro que pode ser um açougue. Acabamos de ter no mercado de capitais a emissão e oferta pública de uma empresa de depilação.

Obviamente o escritório de advocacia já é mais problemático. Há dúvidas de que seja empresa, e não pode se organizar sob a forma de sociedade anônima.

ConJur — Que impacto pode ter na economia?
Warde — Gigantesco. A gente vive criticando o governo, mas deve elogiar quando acerta. A economia acertou. Fez algo. E não é porque encampou um projeto nosso, não. Encampou um projeto em que acreditamos e que outras nações já haviam colocado em prática. É fundamental para permitir que as empresas tenham um caminho, que não seja a mortalidade.

Você imagina o seguinte. Uma S.A. gasta entre R$ 50 e R$ 100 mil em publicação de jornal, papel. Estamos falando de internet. Não faz mais sentido. Ninguém guarda, isso vai para o lixo no minuto seguinte. Ao mesmo tempo, se eu não sou sociedade anônima, não consigo emitir ações e ofertas no mercado acionário numa oferta pública. Então, se quisesse captar no mercado, precisava incorrer nesse custo.

Além disso, precisava ter três diretores, pagar salário de todos. Tinha uma estrutura cara. Não podia premiar o trabalho. Nas empresas de pequeno e médio porte isso é fundamental. A gente sabe muito bem. Estamos em outras iniciativas, montando escola virtual. Sabemos muito bem. Temos que premiar o sujeito que está fazendo o trabalho, que entende do assunto. Não é só o capital que tem que ser premiado senão você não incentiva as pessoas numa organização empresarial. Por isso a necessidade de distribuição desigual de dividendos. E, ao mesmo tempo, sem essa lei não tinha como a CVM regular o mercado de acesso.

O impacto disso vai ser brutal. Primeiro lugar: diminuição da mortalidade de pequenas e médias empresas. Segundo, diminuição do custo do dinheiro. Terceiro: facilidade do manejo das empresas. Quarto lugar: vamos ter diversidade empresarial, que é fundamental no regime produção capitalista. Lembro nos anos 1970, quando a gente entrava no supermercado no Brasil e via uma marca de suco, uma marca de margarina, uma marca de farinha de milho. Hoje tem mais diversidade de nas prateleiras. Naquela época você assistia a um filme dos Estados Unidos, via lá um supermercado completamente diferente. No Brasil, precisamos de diversidade empresarial, maior concorrência e menor preço ao consumidor. E isso reduz a concentração empresarial e o poder econômico nos mercados. E com menor poder econômico tem menor ingerência das grandes corporações sobre o Estado e sobre os governos, o que é bom pra todo mundo.

ConJur — Os Estados Unidos faliram em 1929. Uma das ferramentas para a revitalização da economia foi a simplificação da criação de empresas, uma iniciativa que nunca chegou ao Brasil. Abrir ou fechar uma empresa é uma dificuldade imensa. O senhor acha muito exagero fazer uma comparação entre essa iniciativa da década de 1920 com esse novo regime jurídico?
Warde — Não acho. Acho que pode se fazer em 2021 algumas coisas que deveriam ter sido feitas nos anos 1930, 1940. Outras estão evoluindo. De fato, os EUA sofreram com o crash da Bolsa de Nova York em 1929, cujo causa básica era a falta de regulação do mercado de capitais, que permitiu uma série de operações e de estruturas de mercado fraudulentos. Logo em seguida, o presidente [Franklin] Roosevelt reorganizou o mercado e puniu duramente as fraudes, mas também criou uma brutal simplificação na atividade empresarial junto com gigantescos investimentos públicos.

ConJur — O que falta regulamentar ainda pra que essa inovação entre em prática?
Warde — Falta a CVM e também a nossa Bolsa [B3], de modo coordenado, regularem a criação de um mercado de acesso para empresas aderentes ao regime de sociedade anônima simplificada. Para que possam fazer primeiro o registro de companhia aberta, ou seja, para que possam abrir o capital, e pedir uma autorização para realizar oferta pública, de uma maneira mais simplificada. Isso é necessário para, em seguida, criar o mercado secundário para que essas ações e títulos de dívidas  possam ser comercializadas entre investidores, que é fundamental para a liquidez dos papéis.

Confira abaixo a entrevista:

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