Opinião

A interpretação da lei e o conceito de Direito

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1 de junho de 2021, 6h35

Em que pese a tradicional frase interpretação da lei,
o que se interpreta não é apenas a lei, mas um contexto
ou uma porção da ordem; e o que se aplica, no fundo,
não é bem a lei, mas o Direito, ao qual a lei serve como
instrumento de explicitação normativa
(Nelson Saldanha).

Afirmar-se que a interpretação da lei é algo que pertence ao Poder Judiciário constitui a repetição de uma ideia que tomou corpo doutrinário e prático há séculos, na experiência jurídica das sociedades ocidentais. No entanto, a reflexão mais rasa sobre este tema revelará que a atividade interpretativa não se acha restrita às instâncias judiciais e, pelo contrário, também pertence às instâncias administrativas. É comum se ouvir que em sede administrativa deve-se aplicar a lei como ela está escrita.

Este ponto tem a sua inegável relevância, embora se trate de matéria cujo revolvimento poderá parecer ocioso ou desnecessário, porquanto não se mostraria oportuno levantar discussão sobre um tema que se tem por pacífico. Mesmo se dando a essa posição intelectual o efeito de deixar as coisas como estão, deve-se pontuar que a atribuição de interpretação jurídica às instâncias administrativas e não apenas de aplicação da lei como soam as suas palavras contribuiria enormemente para evitar o surgimento de querelas ou fornecer valiosos subsídios àquelas que já se instalaram.

O que mais importa destacar quanto a esse assunto, porém, é que a interpretação jurídica tem sido entendida salvantes as clássicas exceções como interpretação da lei, quando é certo que o Direito não se resume à lei e nem esta seria, segundo alguns autorizados entendimentos, sequer a sua parte mais importante.

Como sublinhou o professor Nelson Saldanha, da Universidade Federal de Pernambuco, em que pese a tradicional frase interpretação da lei, o que se interpreta não é apenas a lei, mas um contexto ou uma porção da ordem; e o que se aplica, no fundo, não é bem a lei, mas o Direito, ao qual a lei serve como instrumento de explicitação normativa (O Poder Judiciário e a Interpretação do Direito. Revista da  Faculdade de Direito da UFMG, nº 31. Belo Horizonte: 1987, p. 47).

Na abalizada opinião do professor Luigi Ferrajoli, a questão da interpretação se comunica com o problema da verdade das disputas entre os interesses das pessoas, criando um nexo que também se conecta com a própria validade dos atos da jurisdição. Para ele, esse nexo entre verdade e validade dos atos jurisdicionais representa o primeiro fundamento teórico da separação dos poderes e da independência do poder judiciário no moderno Estado de Direito. Embora a atividade cognitiva inclua inevitavelmente opções, convenções, momentos decisórios, não pode em princípio ser submetida a imperativos que não sejam aqueles inerentes à procura da verdade (Jurisdição e Consenso. RBEC, nº 4. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 155).

O que se pode concluir dessas lições é que as questões jurídicas são sempre variadas, as pessoas são diferentes e as soluções também têm de ser ajustadas às hipóteses concretas. E isso somente se obtém com a interpretação das situações concretas, postas muitos além das leis, situações que não se repetem e não se equivalem. Como disse o ministro Athos Gusmão Carneiro (1925-2014), do STJ, situando o ponto candente da justiça, a melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças (REsp. 2.447-RS. RevSTJ 28, p. 312).

A regra legal, por ser abstrata e genérica, nunca dará justa conta da complexidade dos casos concretos e por essa razão tão simples e tão natural, tão óbvia e tão inegável, a sua interpretação judicial axiológica e não filológica se impõe como incontornável necessidade de justiça. Interpretar uma regra positiva é coisa muitíssimo distante de sua mera leitura, porque o processo interpretativo busca realizar, por meio daquela regra ou apesar daquela regra um elevado propósito de justiça. É essa a função do jurista na atividade judicante e também dos agentes executivos, na função de regular, segundo o Direito, as relações dos particulares com a Administração.

O professor Christiano José de Andrade disse o seguinte a respeito desse ponto: a vida humana, a realidade social, nas quais a norma deve incidir, são sempre particulares e concretas. Por conseguinte, para cumprir ou impor uma lei, é necessário um processo de conversão da norma geral em norma individualizada, do abstrato em concreto. Esse processo ou técnica de individualização é o que Luis Recaséns Siches denomina interpretação do Direito. E sem esse processo de conversão, já previsto por Aristóteles, como uma das funções da equidade, não pode funcionar nenhuma ordem jurídica (O Problema dos Métodos da Interpretação Jurídica. São Paulo: RT, 1992, p. 10).

Proclama-se, em resumo, que o Direito é muito mais extenso e muito mais complexo do que a lei, tanto que, no julgamento do MS 21.239-DF, o voto do eminente relator ministro Sepúlveda Pertence deixou claro que a função integrativa dos princípios constitucionais sempre deve ser reconhecida. Como afirmou esse ilustre e respeitado jurista do Brasil, pode-se constatar a força normativa da Constituição, parafraseando o título da conhecida obra do Professor Konrad Hesse, ao juiz é vedado o non liquet, enquanto o legislador não edita a disciplina normativa que lhe compete: quando a lei for omissa dita no art. 4º da Introdução ao Código Civil o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, o costume e os princípios gerais do direito. Cuidando-se de problemas de matriz constitucional, de solução dependente, porém, de disciplina legal complementar inexistente, os princípios a atender serão os que se logre inferir dos princípios e normas da constituição mesma, que vinculam o legislador e, na mora dela, o juiz não só negativamente, mas também positivamente, enquanto determinantes, posto que incompletas, da decisão concretizadora.

O filósofo francês Michel Foucault já pontuara objetivamente a necessária e inseparável relação entre a busca (da verdade) e à transgressão, que a ciência exige de quem desafia buscá-la. Foucault não defende uma ruptura total com o passado nem com o trabalho científico já construído; ele critica e observa de modo peculiar que não se precisa necessariamente estar atado a ele, como que numa devoção quase dogmática.

Diz o filósofo que assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos, relacionados a um único e mesmo princípio organizador, submetê-los ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptação e sua capacidade de inovação, a incessante correlação de seus diferentes elementos, seus sistemas de assimilação de trocas); descobrir já atuantes em cada começo um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados sempre atuantes (A Arqueologia do Saber, p. 26).

Ainda citando Foucault, quanto à atitude e à necessidade de transgredir para evoluir, é preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em uma irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondidos bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não e preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo da sua instância (op. cit., p. 31).

Todas essas lições doutrinárias se conservam na mais completa atualidade e é urgente que todos os juristas, sobretudo os julgadores e os que lidam com o Direito nas instâncias administrativas se convençam que o seu mister é realizar a justiça das coisas, nas relações sociais, o que pode, muito frequentemente, desafiar ou exigir a crítica contundente e criteriosa dos conteúdos das leis escritas.

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