Opinião

Sobre a importância do Julho das Pretas

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29 de julho de 2021, 13h48

No dia 25 de julho celebra-se o Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latino-Americana e Caribenha. No Brasil, o dia também homenageia Tereza de Benguela, líder quilombola que resistiu à escravidão por duas décadas.

Afinal de contas, qual a importância do Julho das Pretas? Dia da Mulher Negra? E o dia 8 de março? Para que mais uma celebração? Esses são alguns questionamentos e provocações que circulam a minha volta quando o tema é pautado. Assim, constato que o racismo não é apenas o desconforto com a presença do corpo negro nos espaços da sociedade, mas um sistema que normaliza, normatiza ou executa ações para de forma consciente ou inconsciente evitar discussões que aprofundam temáticas de um povo que representa mais da metade da população brasileira.

O Julho das Pretas, para além das celebrações de marcos históricos, é um convite para um mergulho nas águas profundas do despertar da consciência social. Para melhor compreensão, destaco três importantes objetivos: reflexão, denúncia e potencialidade.

Reflexão — Julho das Pretas é momento de verificação da história, não como um amontoado de dados sem significados, mas chamado para observar todas as questões que cercam a mulher negra no século 21. A desigualdade racial tem sido a marca da sociedade brasileira desde a origem na escravidão, e mesmo após a abolição tem sido alimentada pela invisibilidade da população negra ante a permanência perversa dos racismos estrutural e institucional.

Denúncia — Julho da Pretas é encarar que a pirâmide social brasileira é formada pelo homem branco, seguido da mulher branca, o homem negro e, na base, está a mulher negra. Esta última enfrenta seus dramas cotidianos em condições subalternas cercada de preconceitos como chefe de família em comunidades com carências profundas de políticas públicas e do mínimo existencial. Mulheres pretas que enfrentam a triste realidade da solidão da mulher negra, quantas vezes exaustas dos desafios da maternidade em um universo de violência patriarcal. Pensar no mês da mulher negra é confrontar um ambiente social perverso que vulgariza seu corpo, impõe um padrão de beleza à sua estética ancestral, demoniza a sua religiosidade e relativiza a inteireza da sua história.

Potencialidade  Julho das Pretas não se prende a data ou espaço específico. É universal. Movimento de base. Ruptura. É convocação para revelar que quem ainda não se sente responsável pela necessária virada de chave não acordou para uma real proposta de humanidade. A mulher negra é potente, se sente ainda mais bela na medida em que se liberta e vai à luta. Sustenta sua opinião e alardeia o seu brilho no mundo. Adentra com sua potência nos mais diversos espaços, penetra cada poro do tecido social, narra a sua própria história com o poder de falar de si e por si aos quatro ventos. Segue no combate. Não aceita nenhum preconceito que macule a diversidade. Sua existência é a memória de todas que já caminharam até aqui. Sua resistência revela que o respeito que a mulher negra é essencial para o equilíbrio do planeta, para a convivência com seres humanos de diversas origens culturais em busca de um efetivo bem viver.

Sou uma mulher negra. Segui meus primeiros passos anestesiada pelos efeitos do racismo. Mas, felizmente, despertei. Como procuradora do município do Salvador, cidade mais negra do nosso país, tenho a oportunidade de participar do Programa de Combate ao Racismo Institucional da Prefeitura de Salvador. Mergulhei nas competentes capacitações, vivências e ensinamentos e de igual modo aprendo no âmbito da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil Seção do Estado da Bahia (OAB-BA). Deixo aflorar a intuição, reconheço o valor da carreira da advocacia pública municipal como importante canal para a consecução de uma hermenêutica constitucional. Conviver com a gestão municipal me proporcionou um olhar mais profundo ao conhecer de perto as demandas sociais. Surgiu desse processo a grande experiência do tornar-me negra.

A autora baiana do livro "Torna-se negro" (1983), Neusa Santos Sousa, traz um ensinamento precioso: "Tornar-se negro é tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer tipo de exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada a priori. É um vir a ser" [1]. Compreender-se negro/a é um processo de conversão, de mudança de mentalidade ante uma sociedade que desestimula a descoberta e valorização de suas raízes ancestrais.

A advocacia pública municipal é indispensável na construção de uma cidade que absorva os valores de justiça racial. Não há sustentabilidade, discursos de inovações ou ares de modernidade sem que se enfrentem as mazelas do racismo institucional, sobretudo com olhar que examine os problemas de gênero e raça.

Nós, procuradores e procuradoras, nos deparamos com grandes desafios no cotidiano da nossa atuação profissional. Orientamos o gestor municipal na concretização de políticas públicas que garantam os direitos fundamentais. Aprofundar na complexidade dos desafios municipais é observar como se erradia o racismo estrutural. Para tanto faz-se necessária uma atuação comprometida, empática, sem universalismos falaciosos. Nesse contexto é essencial que a advocacia pública se aprofunde nos estudos e discussões quanto a temática para que possa contribuir na construção de práticas antirracistas.

O Estado, com todas as suas instituições, sobretudo na seara jurídica, tem sido o responsável por legitimar até aqui o racimo institucional na esfera pública. Ainda hoje lidamos com discursos de direitos fundamentais sem que se busque, por exemplo, a aplicação efetiva do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10) nas nossas cidades. No entanto, lembro com esperança a frase de Angela Davis que preconiza que "quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela".

Sigo no meu movimento. Encontro negros/as e não negros/as no caminho da busca pela igualdade racial. A Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM) compromete-se com as diretrizes da justiça racial. Surge a comissão antirracismo com objetivo de criar estratégias e fomentar conhecimento na sociedade. Idealiza-se um ciclo de debates sobre o tema. Inaugura-se o primeiro curso na carreira voltado para o tema antirracismo na advocacia pública. Assegura-se que, no futuro, no Congresso Brasileiro Virtual de Procuradores Municipais haverá um painel com o tema antirracismo.

A ANPM entra em campo e convida a todas as pessoas no Julho das Pretas a abraçar ideais humanitários. Vamos fomentar o antirracismo nas nossas cidades com reflexões e ações que garantam um modelo social, jurídico e institucional que não aceite práticas discriminatórias em todas as suas formas.

Por fim recordo a importante frase de Nelson Mandela: "Tudo parece impossível até que seja feito".

Viva o Julho das Pretas!

 

[1] SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1983, p.77.

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