Inversão do ônus da prova é uma facilitação da defesa do consumidor
21 de julho de 2021, 14h06
O tema volta a ganhar relevância com a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.286.273 – SP [1], cuja controvérsia acena à interpretação sobre o direito básico à inversão do ônus da prova, previsto na segunda parte do artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor.
De fato, é a própria Constituição Federal, ao determinar ao Estado essa ação afirmativa para defesa do consumidor, que faz nascer o princípio da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, sendo que o CDC, com o artigo 4º, inciso I, estipula como princípio expresso o “reconhecimento” da vulnerabilidade, já existente e declarada constitucionalmente.
Nesse trilho, surgem direitos básicos do consumidor (inclusive textualmente previstos no CDC), em uma construção como uma teia interligada para efetivamente promover a defesa do consumidor, notadamente na função jurisdicional do Estado. É o caso do direito básico à facilitação da defesa do consumidor. Direito para todos os consumidores. Em algumas situações jurídico-processuais, esse direito de facilitação da defesa se revela, inclusive com o direito à inversão do ônus da prova.
De acordo com o texto legal, quando o consumidor for (além de vulnerável, condição presente em todos os consumidores) hipossuficiente, ou quando houver presença de verossimilhança em suas alegações, de acordo com critério do juiz, ocorrerá a inversão do ônus da prova.
Anote-se que, além da inversão do ônus a critério do juiz, o CDC estipula inversão ex vi lege. É o caso da defesa do fornecedor em ações de responsabilidade civil por acidente de consumo. O fornecedor somente deixará de ser responsabilizado quando demonstrar uma das hipóteses legais. Entre outras, o fato de que o acidente tenha ocorrido por conduta exclusiva do próprio consumidor.
Uma vez registradas as premissas iniciais, retorna-se à investigação do citado REsp 1.286.273-SP. O caso julgado resulta de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do estado de São Paulo contra seguradora em que se pleiteava, entre outros pedidos, indenização a consumidores por danos materiais e morais resultantes de recusa de cobertura de sinistro por “suspeita de fraude”. O STJ destacou a decisão de segundo grau em que houve declaração de que a inversão do ônus da prova seria regra de julgamento e não de instrução como decidido em segunda instância [2], com o que se concorda.
Abram-se parênteses para a presença, no REsp, de que a inversão do ônus em si seria faculdade do magistrado. Pondera-se que a discussão sobre a faculdade ou dever do magistrado na inversão do ônus da prova quando presente um dos requisitos deve observar o texto legal que disciplina o direito básico à inversão do ônus da prova, que assevera “quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente”. A expressão “a critério do juiz” se refere, a despeito de posicionamentos em sentido diverso, à presença dos requisitos. Assim, uma vez presente, ao menos, um dos requisitos, o juiz passa a ter o dever de promover a inversão do ônus, aplicando o direito básico do consumidor [3].
Em outro momento do julgamento do REsp, que é o campo da investigação aqui proposta, o voto assevera que “certamente, a inversão do ônus da prova como regra de procedimento ocorrerá quando forem verificados os requisitos cumulativos da verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência”.
A despeito da menção de que se tratariam de requisitos cumulativos, questiona-se se referida interpretação estaria em conformidade seja com o sistema protetivo do consumidor, seja com o novo Código de Processo Civil, seja com o comando constitucional de que o Estado (inclusive o Estado-juiz) deve agir afirmativamente para defender o consumidor.
Com efeito, o CDC expressamente dispõe que os requisitos são a hipossuficiência do consumidor “ou” a verossimilhança das alegações. Nota-se que o texto da lei disciplina os requisitos com a conjunção “ou” [4] que, em si, assevera se tratar de alternativa, de opção, em contraposição à partícula “e” que seria cumulativa. Na lei, tem-se a alternativa de requisitos e não a cumulação [5].
De toda forma, para além da interpretação do texto da norma, tem-se que a mesma está inserida em um direito básico de facilitação da defesa em favor da parte vulnerável. Assim, exigir que os requisitos sejam cumulativos contraria a facilitação da defesa do consumidor e, portanto, não se coaduna com a promoção da defesa do consumidor, na forma da lei, uma vez que a lei disciplina os requisitos com a conjunção alternativa “ou”.
Acrescente-se que o CDC dialoga com outras fontes legislativas, sob orientação constitucional para promoção do direito fundamental envolvido. No caso em comento, há diálogo com o Código de Processo Civil. De acordo com esse diploma legal, tem-se a regra do artigo 357, III, pelo qual o juiz deverá, na decisão de saneamento, definir a distribuição do ônus da prova, reforçando a inversão como regra de instrução.
Já o artigo 373 do CPC dispõe sobre a possibilidade de inversão do ônus da prova para além dos casos previstos em lei. Nota-se uma abertura que faculta ao juiz, em decisão fundamentada, uma série de alternativas para atribuição do ônus da prova, dentre as quais a simples “maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário”.
De maneira que o rigor em exigir a cumulação de requisitos se afasta da regra estipulada pelo CPC, em reforço ao acima defendido, notadamente quando diante de desigualdade entre as partes [6]. Assim, nada obstante as respeitáveis posições em sentido outro, entende-se que os requisitos do CDC são alternativos. O que ratifica o direito básico de facilitação da defesa e o princípio do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, dando concretude à promoção pelo Estado-juiz da defesa do consumidor.
[1] https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=123368261&num_registro=201102360961&data=20210622&tipo=91&formato=PDF.
[2] Trechos do REsp: “Entretanto — e aqui reside o ponto nevrálgico da controvérsia — apesar da constatação operada pelo togado de primeira instância, em princípio amparada no vasto arcabouço probatório colacionado aos autos, verifica-se que o Tribunal paulista, quando do julgamento do recurso de apelação da seguradora, afirmou ter feito uso da inversão do ônus da prova enquanto regra de julgamento para amparar a manutenção da tese condenatória”; e “Reside a controvérsia recursal, portanto, no procedimento adotado na Corte local da aplicação ao caso da inversão do ônus da prova enquanto regra de julgamento frente a pacífica compreensão jurisprudencial segundo a qual a inversão probatória constitui regra de instrução, sendo a do ônus da prova regra de julgamento, em razão de estar estabelecida na lei de regência.”
[3] Seara em que Bruno Miragem assevera que o dispositivo legal “[…] ao fazer referência ao critério do juiz, estaria conferindo-lhe poder para promover o reconhecimento, no caso concreto, da presença de um dos requisitos que determinam a inversão. Uma vez identificada, no caso, a presença de hipossuficiência do consumidor ou da verossimilhança de suas alegações, a consequência necessária seria a inversão. Uma vez identificados, existiria de parte do juiz um dever de inverter o ônus da prova em favor do consumidor”. Curso de direito do consumidor. 3ª ed. São Paulo: RT, 2012. p. 186.
[4] A conjunção “ou” indica, em si, a alternância. Nesse sentido:
“1. Indica alternativa ou opcionalidade (ex.: ver um filme ou ler um livro)”.
“ou”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/ou [consultado em 15-07-2021]; e “Serve para ligar por coordenação palavras ou orações que indicam alternância ou exclusão: Ou ele fala ou come”. https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=ou [consultado em 15-07-2021].
[5] Sentido em que Claudia Lima Marques afirma é cabível a inversão do ônus da prova “quando apenas uma das duas hipóteses está presente no caso” uma vez “que a partícula ‘ou’ bem esclarece” referida alternância, em coerência com o espírito do CDC “justamente de facilitar a defesa dos direitos do consumidor e não o contrário”. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4ª ed. São Paulo: RT, 2013. p. 291-292.
[6] Nesse sentido, REICHELT, Luís Alberto e MOSMANN, Carolina Borges: “Em sendo verificada a condição de desigualdade das partes, deverá o julgador, com o fito de restabelecer um jogo paritário, afastar o regime geral do ônus probandi, adotando aquele que melhor atender às necessidades do caso. É em um tal cenário que se revela a utilidade da aplicação da chamada teoria da dinamização do ônus da prova, na forma do preceituado pelo art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil e da inversão do ônus da prova, a teor do art. 6º, VIII , do CDC” RDC VOL. 132 (NOVEMBRO – DEZEMBRO 2020). https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/periodical/92900151/v20200132/page/RJ-6.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!