Opinião

Crianças e adolescentes possuem o direito autônomo de se vacinarem

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11 de julho de 2021, 7h13

A vacinação dá origem ao debate sobre: é obrigatório o consentimento parental para a vacinação de crianças e adolescentes? Ou, ainda, crianças e adolescentes têm direito próprio à vacinação, ainda que seus pais e/ou mães se oponham?

Em relação à Covid-19, esse debate ainda não surgiu porque a quantidade de vacinas disponíveis mundialmente ainda não atende a todas as pessoas, mas, com a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para aplicação da vacina Pfizer a partir dos 12 anos de idade, e a iminência da decisão europeia de investigação para autorizar ou não a Moderna entre os 12 e 17 anos de idade, o tema poderá ser levantado.

O ponto central para o debate sobre a escolha de adolescentes e crianças em temas de saúde está na proteção integral. Esse princípio foi incluído no artigo 227 da Constituição da República e sua conceituação costuma ser feita referindo-se à condição da criança ou do adolescente como pessoa em desenvolvimento e titular de direitos (sujeito de direitos) a serem assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado. Em complemento a ele, o princípio do melhor interesse determina que as decisões que envolvam interesses de crianças e adolescentes devem ser orientados pelos seus melhores interesses.

Esse conceito, repetido à exaustão na doutrina e jurisprudência brasileiras, não consegue, contudo, esclarecer como ocorre a efetivação desses princípios, verificando-se que a proteção e o melhor interesse são definidos ou determinados pela visão da pessoa adulta que irá tomar a decisão. No caso de pais e/ou mães, porque se pressupõem que eles e/ou elas sabem o que melhor para seus filhos e filhas, ou, no caso do Poder Judiciário ou de órgãos da rede de assistência infanto-juvenil, porque estão mais capacitados para essa finalidade.

Infelizmente no país ainda é baixa a compreensão e aplicação do artigo 12 da Convenção sobre Direitos da Criança, que exige que os Estados-partes criem instrumentos que assegurem "à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança".

A escuta ou oitiva a que se refere o artigo 12 da Convenção e que se relaciona com o artigo 227 da Constituição e com o artigo 3° do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não significa uma oitiva desorganizada nem desimportante. Ela é um procedimento de incentiva o acolhimento da criança e do adolescente e a sua inclusão em processos decisórios sobre si, em que as pessoas adultas têm o dever de ouvir e de entender os medos, ansiedades e escolhas manifestadas pela criança ou adolescente e tomarem a decisão levando essas informações em consideração.

Ao lado do direito de escuta da criança e do adolescente, há também que desmistificar a extensão da autoridade parental, que não torna corpos de crianças como propriedade de seus pais e/ou mães. Veja, se a transformação do pátrio poder em poder familiar e, em seguida, autoridade parental, não fez com se desenvolvesse uma teoria crítica sobre a extensão do poder-dever de pais. Apesar de a transformação ter ocorrido uma funcionalização desse encargo para atender aos interesses da criança, a doutrina, tanto em Direito Civil como em infância, não perceberem que crianças não podem ser consideradas nem posse nem propriedade dos pais e/ou mães, de modo que a possibilidade jurídica de interferência de pais ou responsáveis sobre o corpo, a autonomia existencial e, também, sobre aspectos de saúde dos filhos e filhas é, hoje, limitada.

Dito de outra forma, a autoridade parental permaneceu vinculada ao papel tutelar e protetivo, enquanto o paradigma constitucional passou a reconhecer que crianças e adolescentes são, simultaneamente, titulares de direito e destinatários de proteção.

O debate entre o exercício de liberdades civis por adolescente e a autoridade parental já foi objeto de debate na Inglaterra e no País de Gales e criou um importante precedente que pode nos servir para responder à proposta desse artigo. O caso foi julgado em 1986 e é conhecido como a "competência Gillick", um termo usado na legislação médica para decidir se uma criança pode consentir com seu próprio tratamento médico, sem a necessidade de autorização ou conhecimento dos pais e/ou responsáveis.

No caso, Victoria Gillick ajuizou ação questionando orientação do departamento de saúde que autorizava a prescrição de métodos contraceptivos para pessoas com menos de 16 anos de idade sem a autorização dos pais. O recurso foi decidido pela House of Lords, que tomou uma decisão a partir da capacidade da criança ou adolescente fornecer consentimento, o que pressupõe a sua escuta. O consentimento da criança ou do adolescente irá prevalecer sobre a decisão dos pais e/ou mães, quando se verificar que a criança ou o adolescente apresenta maturidade e capacidade mental; entende as vantagens, desvantagens e potencial de impactos no longo prazo; entende os riscos, implicações e consequências que podem surgir com a decisão; a forma como a criança ou adolescente entende as informações e aconselhamento oferecidos, bem como as alternativas existentes; a sua capacidade de explicar racionalmente sua decisão.

O Conselho Regional de Medicina (CRM) orienta-se nesse sentido, reconhecendo o direito ao atendimento de adolescentes entre 12 e 18 anos de idade, aqui chamados de "adolescentes maduros". Assim como o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), ambos reconhecendo a prevalência da decisão do adolescente.

Como conclusão, retorno à pergunta inicial já para respondê-la: sim, crianças e adolescentes têm o direito de se vacinarem, se essa for a sua decisão, e ainda que não seja o desejo de seus pais e/ou mães, e quando essa decisão for possível de ser realizada pelas diretrizes das autoridades em vigilância sanitária. Cuida-se de efetivação da proteção integral e do direito de escuta, temas que estão exigindo uma reformulação teórica para que se reconheça a real posição jurídica de adolescentes enquanto sujeitos de direito.

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