Opinião

O dilema penal das gestoras de criptoativos

Autor

  • Felipe Américo Moraes

    é advogado no escritório Beno Brandão Advogados Associados mestre em Direito pela Universidade Curitiba especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial e autor do livro "Bitcoin e Lavagem de Dinheiro".

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9 de julho de 2021, 6h03

Na manhã de segunda-feira (5/7), foi deflagrada pela Polícia Federal de Curitiba a "operação Daemon", a qual investiga empresa que teria captado dinheiro de investidores para aplicar no mercado criptoativos.

Segundo informações da autoridade policial [1], a empresa nunca investiu os valores captados. O "investimento em bitcoins" foi apenas um pretexto, muito semelhante ao que antes já fora feito com fazendas de bois ou avestruzes: um meio para induzir as vítimas a erro. Nesse contexto, os crimes relacionados podem ser tanto de pirâmide financeira (artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/51) quanto de estelionato (artigo 171, CP).

Diante desse cenário, é natural que as vítimas esperassem que a empresa tivesse realizado os investimentos prometidos. Isso é, que os valores captados tivessem sido utilizados para adquirir bitcoins (ou outros criptoativos). Todavia — e por mais paradoxal que possa parecer —, segundo o atual entendimento do STJ, caso a empresa tivesse realizado o investimento, seus administradores teriam praticado crime ainda mais grave. Isso porque poderia configurar delito contra o Sistema Financeiro Nacional, especificamente "fazer operar instituição financeira sem autorização legal" (artigo 16 da Lei nº 7.492/86) e "emitir e comercializar títulos de valores mobiliários" (artigo 7º da Lei nº 7.492/86).

Sabe-se que criptoativos não são considerados moeda ou valor mobiliário (CC nº 161.123/SP), de forma que não é aplicável a regulamentação do Banco Central (Bacen) ou da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Consequentemente, supõe-se que aquele que opera com tais ativos não deveria ser considerado "instituição financeira" para fins penais. Isso porque esse conceito exige que haja "(…) captação, intermediação ou aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, ou a custódia, emissão, distribuição, negociação, intermediação ou administração de valores mobiliários" (artigo 1º da Lei nº 7.492/86).

Todavia, ainda que os criptoativos não sejam considerados moeda ou valor mobiliário, o mesmo não pode ser dito quanto à conduta de captar recursos do público para investir nesse mercado. Para o STJ, por inteligência do artigo 2º, IX, da Lei nº 6.385/76, o fato é considerado um Contrato de Investimento Coletivo (CIC), uma espécie de valor mobiliário (HC nº 530.563/RS).

É nesse ponto que se instaura um paradoxo. Caso o indivíduo engane o público, dizendo que irá realizar o investimento em criptoativos, mas somente se aproprie dos valores, o fato configura crime de estelionato — cuja pena oscila de um a cinco anos. Entretanto, caso seja executada a estratégia de investimento, ele incorrerá — em concurso formal — nos mencionados delitos contra o sistema financeiro nacional. Com isso, a pena, se somada, poderia alcançar 12 anos.

Nesse contexto, é pertinente reavaliar se a conduta de oferecer publicamente investimento no mercado de criptoativos configura crime contra o sistema financeiro nacional, sobretudo sob o prisma da tipicidade material. Isso é, verificar se a conduta coloca em perigo o bem jurídico tutelado por esses delitos. 

Sabe-se que conceito de bem jurídico não permite afirmar somente quais condutas devem ser punidas pelo Estado, mas também aquelas que, devido à falta de lesão (ou colocação em perigo), não devem. É dizer que a teoria do bem jurídico tem, também, a capacidade de limitar a tipicidade penal [2]. Isso ocorre principalmente nos casos cujas ações individuais não causam turbação à convivência livre e pacífica dos cidadãos, o que permite limitar a atuação do Estado nos casos cujas condutas lesionem (ou coloquem em perigo) exclusivamente o autor. Em outras palavras, exclui-se proteções de cunho moralista ou paternalista [3].

Nesse contexto, é preciso renovar a dúvida. Oferecer publicamente investimento no mercado de criptoativos é formalmente típico. Afinal, por se tratar de contrato de investimento coletivo (CIC), a conduta se enquadra nos tipos previstos no artigo 7º e 16 da Lei nº 4.595/64. Todavia, a conduta será materialmente típica? Isto é, a conduta é capaz de lesionar o bem jurídico tutelado por esses dispositivos?

Para avançar, necessário identificar o bem jurídico tutelado pelos mencionados delitos. Quanto a "operar instituição financeira sem autorização legal", a doutrina, por mais que oscile, objetiva a proteção em duas camadas: a) a forma organizacional do Estado, mediante garantia da credibilidade do sistema financeiro, zelando pela regularidade e a correção do seu funcionamento e da operacionalização das instituições financeiras do sistema financeiro nacional; e b) os indivíduos que buscam a realização de investimentos, objetivando evitar sobretudo a causação de dano ao seu patrimônio ou outros interesses econômico-financeiros [4].

Quanto a "emitir e comercializar títulos de valores mobiliários", também abarca a credibilidade do sistema financeiro, sobretudo a inviolabilidade e a credibilidade do mercado de capitais, bem como a regularidade das transações operadas em um dos relevantes segmentos do sistema financeiro nacional. Ademais, esse bem jurídico também engloba a proteção dos interesses dos investidores, sobretudo do patrimônio [5].

Diante disso, compreender a amplitude de proteção do patrimônio dos indivíduos é bastante tranquilo. Todavia, é necessário entender o que se entende por sistema financeiro nacional.

Pode-se dizer que se trata da forma como o Estado busca o desenvolvimento equilibrado do país, de modo a servir para toda a coletividade, por meio da higidez do seu conjunto de instituições [6]. O objetivo é controlar os riscos das crises sistêmicas na seara econômico-financeira. É o que ocorre em uma sociedade globalizada, cujos impactos financeiros em um país pode respingar nos demais — tal como fora a "crise do subprime", em 2007. Eventos como esse, de inimaginável ocorrência no período industrial, fomentam o reconhecimento de novos bens jurídicos cuja proteção penal deve ser destinada. Percebeu-se, diante de casos como esse, a necessidade de um "sistema financeiro" e uma "ordem econômica" de bom funcionamento. Consequentemente, também o dever de prevenir condutas que eventualmente possam impactá-las [7].

Nesse contexto, constata-se que essa lógica de proteção é o completo oposto do que preceitua o mercado de criptoativos. Esse ambiente é, ao revés de todo o sistema financeiro tradicional, o próprio do modelo de moeda livre, típica do liberalismo econômico da escola austríaca, o qual preconiza a completa ausência de interferência do Estado na economia. O bitcoin — precursor no mercado de ativos criptográficos —, enquanto direcionado à criação de uma moeda privada (o free banking), tem enraizada a premissa de que não somente não esperar do Estado qualquer proteção, mas, por ideologia, rechaçar qualquer tutela governamental para garantir a suposta "higidez do sistema". Em outras palavras, o mercado de criptoativos, por ser caso de livre mercado, recusa qualquer espécie de proteção do Estado.

Como consequência, qualquer indivíduo que ingresse no mercado, mediante a conversão de sua moeda estatal por criptoativos, opta por sair do manto de proteção do Estado para ir para uma zona livre (novamente, de livre mercado). É dizer que o surgimento do bitcoin trouxe consigo um campo inédito na economia mundial, apartado daquilo que se poderia se chamar de "ordem econômica" ou "sistema financeiro". O indivíduo que escolhe ingressar nesse novo campo opta pela abstenção da interferência do Estado e, consequentemente, está sujeito aos riscos desse ambiente.

Com isso, o agente que capta dinheiro de outros indivíduos para investimento exclusivo no mercado de criptoativos, mediante contrato de investimento coletivo (CIC), apesar de praticar a conduta formalmente típica dos artigo 7º e 16 da Lei nº 4.595/64, não coloca em perigo o sistema financeiro nacional. Isto porque os recursos captados acabarão por ser investidos fora dele — no mercado de ativos criptográficos. Isto é, em mercado cuja higidez do sistema está fora do manto de proteção do Estado.

Mesmo assim, resta confrontar a segunda parcela do bem jurídico: o patrimônio e o interesse econômico-financeiros dos investidores. É nesse ponto que tem significado um dos objetivos da teoria do bem jurídico, especificamente a exclusão da proteção penal do paternalismo [8]. Esse conceito permite extrair a atipicidade das "heterocolocações em perigo consentidas".

Adotando-se um posicionamento conservador, tem-se que uma conduta configurará uma "heterocolocação em perigo consentida", de modo a excluir a tipicidade, caso: 1) o bem jurídico seja individual; 2) exista a disponibilidade sobre o bem jurídico; 3) ocorra compreensão do consentido acerca da renúncia realizada, sobretudo do risco envolvido, para que possa concordar com a ação (domínio a respeito do fato); 4) o consentimento seja livre e espontâneo; 5) o consentimento seja realizado anteriormente à conduta lesiva [9] [10].

Confrontando esses requisitos com a conduta ora analisada, tem-se que, devido ao bem jurídico ser patrimonial, os requisitos de "ser individual" e "disponível" estão preenchidos. Quanto a "compreensão do consentido acerca da renúncia realizada", dependerá da constatação de que o investidor, quando optou por confiar a terceiro o investimento no mercado de criptoativos, conhecia a estratégia que seria adotada e todos os riscos que a envolvem. Se houver, o requisito estará presente. Quanto a "consentimento ser livre e espontâneo" também pode estar presente. Isto é, é verificável quando o agente optou e concordou, livremente, com a forma do negócio e a estratégia adotada. Por fim, quanto ao "consentimento ser realizado anteriormente à conduta lesiva", bastará a verificação se o investidor concordou com a estratégia a ser realizada pela empresa no mercado de criptoativos.

Dessa forma, é possível concluir que: 1) a conduta de um indivíduo, ciente da estratégia a ser adotada e dos riscos que envolvem o mercado de criptoativos, confiar a terceiro o investimento nesse mercado, não merece tutela do Estado; 2) o indivíduo pode dispor da proteção do Estado sobre seu patrimônio para escolher livremente o mercado onde deseja investir, sobretudo os que oferecem maior risco; 3) o comportamento praticado pela pessoa jurídica que oferece investimentos exclusivamente no mercado de criptoativos não coloca em perigo o sistema financeiro nacional, visto que todos os valores captados serão empregados em ambiente externo a ele.

Esse é nosso entendimento sobre o tema, o qual nunca foi objeto de avaliação pelos tribunais. Atualmente vigora a apreciação do STJ, o qual entendeu de que a conduta configura crime. Todavia, tal entendimento se limitou a avaliar a tipicidade formal da conduta, mas nunca prescrutou se há tipicidade material. Por isso, ao nosso juízo, o entendimento merece reparos.

 


[1] Dada em coletiva de imprensa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0npd6iVAz8c. Acesso em: 5 jul. 2021.

[2] HASSEMER, Winfried. Direito penal: Fundamentos, Estrutura. Política. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2008, p. 223.

[3] ROXIN, Claus; LEITE, Alaor. Novos estudos de direito penal. Marcial Pons, 2014. p. 49.

[4] PIMENTEL, Manoel Pedro. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. 2ª edição. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2020, p. 149.

[5] BREDA, Juliano. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional & Contra o Mercado de Capitais. 2ª edição. Rio de Janeiro: editora Lumen Iuris, 2011. p. 108).

[6] PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico — 7ª edição. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 181-182.

[7] BECK, Ulrich. Sociedade de Risco Mundial-em busca da segurança perdida. Leya, 2018, p. 47.

[8] ROXIN, Claus; LEITE, Alaor. Op. Cit. p. 49.

[9] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral, v. 1. São Paulo: Atlas, 2020, p 394-396.

[10] LUCCHESI, Guilherme Brenner. BACH, Marion. A contribuição do ofendido nos crimes imprudentes: exclusão da responsabilidade?

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