Opinião

O cheque e a Lei do Superendividamento

Autores

  • Silas Silva Santos

    é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP professor nos cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste) coordenador do grupo de estudos "Acesso à justiça inovação e sustentabilidade" da Unoeste e juiz de Direito no estado de São Paulo.

  • Francislaine de Almeida Coimbra Strasser

    é doutoranda em Função Social no Direito Constitucional na Fadisp mestre em Direito Constitucional e Sistemas de Garantias e Inclusão Social pela ITE (Bauru-SP) professora nos cursos de graduação e de pós-graduação lato sensu da Unoeste integrante do grupo de estudos "Acesso à justiça inovação e sustentabilidade" da Unoeste e advogada.

  • João Paulo Angelo Vasconcelos

    é mestre em Direito pela Universidade do Norte do Paraná (UENP Jacarezinho-PR) professor no curso de graduação da Unoeste integrante do grupo de estudos "Acesso à justiça inovação e sustentabilidade" da Unoeste e advogado da União.

8 de julho de 2021, 6h35

A Lei 14.181, do último dia 1º, mais conhecida como a Lei do Superendividamento, introduziu modificações importantes no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto do Idoso, com o objetivo de preencher uma lacuna legislativa em matéria de expressiva dificuldade de adimplemento por parte do devedor pessoa natural. De fato, os esforços para a recuperação da saúde financeira de empresários já vinham contemplados na Lei 11.101/2005, mas faltava algo que preenchesse o quadro [1], de maneira que a nova legislação colmata a lacuna até então verificada.

Na esteira do que já apregoava a doutrina [2], entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial (artigo 54-A, §1º, do CDC, com a redação da Lei 14.181/2021). Para esses fins, compreendem-se as dívidas oriundas de quaisquer compromissos financeiros assumidos nas relações de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada (artigo 54-A, §2º, do CDC).

Conforme a sistematização de Bruno Miragem [3], o superendividamento pode ser ativo ou passivo; ativo, quando "causado pelo abuso de crédito, seja por má-fé, ou por desorganização ou má administração do orçamento familiar"; passivo, na hipótese de "um acidente da vida, aí compreendidas situações imprevistas que levam ao descontrole financeiro", como nos casos de "divórcio, morte, doença, redução de ganhos, nascimento de filhos etc.), cujo resultado é a impossibilidade de pagamento de dívidas atuais e futuras".

Na consideração de que o superendividamento, no mais das vezes, implica restrições severas à obtenção de crédito, a Lei 14.181/2021 busca preveni-lo e tratá-lo como forma de evitar a exclusão social do consumidor. Como se percebe, a nova legislação está de mãos dadas com a noção de dignidade da pessoa humana, porquanto o afastamento de pessoas vulneráveis do ambiente formal de consumo tende a incrementar o nível de vulnerabilidade, com sérios riscos à obtenção do mínimo existencial.

Apesar dos vários institutos que merecem atenção, este texto concentra-se na análise do artigo 54-F, §3º, inciso I, do CDC, com a redação da Lei 14.181/2021. O dispositivo está no contexto dos chamados contratos conexos, coligados ou interdependentes, no âmbito dos quais existe um contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e outro contrato acessório de crédito que garanta àquele o respectivo financiamento (artigo 54-F, caput). Nos termos da lei, a coligação de contratos que interessa para o contexto do superendividamento é aquela em que o fornecedor do crédito: a) recorre aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito; ou b) oferece o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado (incisos I e II do caput do artigo 54-F).

No primeiro caso, entre os partícipes dos contratos principal e acessório há uma cooperação logística, pois ambos recorrem à atividade do outro para concretizar o negócio global com o consumidor; já na segunda hipótese, verifica-se uma cooperação física, pois os contratos são firmados num determinado local em que aparecem, ao mesmo tempo, os dois fornecedores (do produto ou serviço e do crédito).

Se presentes esses pressupostos, o exercício do direito de arrependimento, pelo consumidor, seja em relação ao contrato principal, seja no referente ao contrato de crédito, implicará a resolução, de pleno direito, do contrato que lhe seja conexo (artigo 54-F, §1º, do CDC). Embora a legislação não utilize o termo resolução no seu sentido técnico, o certo é que a extinção de um dos contratos, por força do arrependimento do consumidor, nos casos e forma legais, gera o automático desfazimento do contrato conexo.

E mais, o texto da nova lei garante que, se houver inexecução de qualquer das obrigações e deveres do fornecedor de produto ou serviço (contrato principal), o consumidor poderá requerer a resolução do contrato não cumprido inclusive contra o fornecedor do crédito (artigo 54-F, §2º, do CDC).

Numa interpretação que empreste sentido ao texto da lei (artigo 54-F, §2º, do CDC), parece que a norma a se extrair do dispositivo citado é a seguinte: a inexecução do contrato principal permite que o consumidor obtenha também a resolução do contrato conexo, podendo demandar contra o fornecedor do crédito. Essa é a lógica do sistema construído a partir do caput e do §1º do artigo 54-F do CDC; em palavras diretas, os problemas ocorrentes na relação principal (fornecimento de produto ou serviço) contaminam o pacto acessório (fornecimento de crédito).

Essa ordem de ideias fica reforçada pela dicção do §4º do mesmo artigo 54-F, consoante a qual a invalidade ou ineficácia do contrato principal implicará, de pleno direito, a do contrato de crédito que lhe seja conexo, nos termos do caput deste artigo, ressalvado ao fornecedor do crédito o direito de obter do fornecedor do produto ou serviço a devolução dos valores entregues, inclusive relativamente a tributos.

Como se percebe, o legislador tratou dos vários fatores que levam à extinção do contrato principal: resilição unilateral (arrependimento do consumidor); resolução (inexecução por parte do fornecedor do produto ou serviço); invalidade ou ineficácia do contrato. Para todos os casos a lógica é a mesma: eficácia irradiante da extinção do contrato principal em relação ao contrato conexo ou coligado de fornecimento do crédito.

Aqui não se vislumbra propriamente uma novidade, pois o Superior Tribunal de Justiça já vinha decidindo assim:

"Em razão da força da conexão contratual e dos preceitos consumeristas incidentes na espécie  tanto na relação jurídica firmada com o fornecedor das cozinhas quanto no vínculo mantido com a casa bancária , o vício determinante do desfazimento da compra e venda atinge igualmente o financiamento, por se tratar de relações jurídicas trianguladas, cada uma estipulada com o fim precípuo de garantir a relação jurídica antecedente da qual é inteiramente dependente, motivo pelo qual possível a arguição da exceção de contrato não cumprido, uma vez que a posição jurídica ativa conferida ao consumidor de um produto financiado/parcelado relativamente à oponibilidade do inadimplemento do lojista perante o agente financiador constitui efeito não de um ou outro negócio isoladamente considerado, mas da vinculação jurídica entre a compra e venda e o mútuo/parcelamento" [4].

É nesse contexto amplo de interdependência entre os contratos principal e acessório que se insere a regra do artigo 54, §3º, inciso I, do CDC, conforme a qual a eficácia irradiante das vicissitudes do contrato principal incide também contra o portador de cheque pós-datado emitido para aquisição de produto ou serviço a prazo.

Imagine-se que o consumidor Antônio adquira um produto do lojista Bruno, mediante o pagamento parcelado do preço, em razão do que o consumidor emite cheques correspondentes ao número de parcelas, apondo-se datas futuras para compensação das cártulas (pós-datação). Na sequência, o comerciante Bruno transfere regularmente, por endosso, a titularidade do crédito estampado nos cheques ao seu fornecedor Carlos.

Em linha de princípio, sendo o cheque "um título de crédito cartular que contém uma ordem de pagamento necessariamente à vista" [5], aplicam-se a ele os chamados princípios do direito cambial cartular. Nesse aspecto, avulta a importância da abstração que rege os títulos de crédito, entendida como a desvinculação entre o título e o negócio jurídico que lhe deu origem, sempre que aquele seja posto em circulação por endosso.

"Enquanto não há a transferência da titularidade do crédito, o título não é abstrato em vista do negócio jurídico originário. Entre os participantes deste, o título de crédito continua vinculado à relação fundamental. Em outros termos, somente após ser transferido a terceiro de boa-fé, opera-se o desligamento da relação em que o título de crédito teve origem. A consequência disso é a impossibilidade de o devedor exonerar-se de suas obrigações cambiárias, perante terceiros de boa-fé, em razão de irregularidades, nulidades ou vícios de qualquer ordem que eventualmente contaminem a relação fundamental. E ele não se exonera exatamente porque o título perdeu seus vínculos com essa relação, 'abstraiu-se', ao ser posto em circulação" [6].

Sabe-se bem que o cheque constitui título executivo extrajudicial (artigo 784, inciso I, do Código de Processo Civil ou CPC), circunstância que torna adequada a via executiva para aquele que se diz credor da quantia estampada no título. É nesse âmbito que se verifica a projeção processual da característica da abstração, que vai desaguar no conhecido princípio da inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé.

Significa dizer que, uma vez executado pela dívida corporificada no cheque, o devedor não pode obter êxito com a alegação, frente ao terceiro de boa-fé, respeitante aos percalços da relação jurídica originária (artigo 25 da Lei do Cheque) [7]. No exemplo vislumbrado acima, o portador do cheque (Carlos) pode mover execução contra Antônio, mas este, nos seus embargos à execução, não poderá se valer das defesas que teria relativamente a Bruno (credor originário que transmitiu o crédito por endosso). Ou seja, as defesas ou exceções pessoais que vinculam Antônio e Bruno são inoponíveis a Carlos.

A relevância dessa noção é tamanha que Fábio Ulhoa Coelho anota o seguinte: "O que distingue o título de crédito de qualquer outro instrumento representativo de obrigação (…) é a inoponibilidade das exceções pessoais ao terceiro de boa-fé, na delimitação das matérias de defesa que o devedor pode suscitar, ao ser judicialmente impelido a fazer o pagamento" [8]. Tal característica incrementa a mobilização do crédito e, no limite, coopera com a dinamização da economia.

Porém, se o cheque tiver sido emitido no contexto de uma relação em que o consumidor seja pessoa natural [9], a circulação do cheque, por si só, não fará surgir a abstração que lhe é inerente.

Nessa perspectiva, havendo inexecução das obrigações pertinentes ao contrato de fornecimento do produto ou do serviço, o emitente do cheque (consumidor) poderá defender-se, perante o terceiro portador do título, com base nas vicissitudes do negócio originário. Essa é a conclusão que se obtém a partir da remissão feita pelo §3º do artigo 54-F do CDC ao seu próprio §2º.

Note-se bem que o portador do cheque pode estar na mais absoluta boa-fé; mesmo assim, o emitente da cártula poderá opor àquele as exceções pessoais que tiver contra o fornecedor do produto ou do serviço, isto é, o sujeito integrante da relação jurídica base que deu origem à emissão do cheque.

Antes mesmo da edição da Lei 14.181/2021, Fábio Ulhoa Coelho já sinalizava que, nas relações de consumo, deve-se "admitir a oposição de exceção pessoal ao exequente, malgrado a boa-fé desse. O consumidor é um sujeito vulnerável e, em razão da proteção que lhe assegura o CDC, não cabe atribuir-lhe o risco de 'primeiro pagar e depois repetir" [10].

Curioso que o §3º do artigo 54-F do CDC faz remissão apenas ao §2º do mesmo artigo, como se a ressalva à abstração das relações atinentes ao cheque fosse aplicável somente nos casos de inexecução das obrigações do contrato de fornecimento do produto ou serviço. Entretanto, para dar coerência ao sistema, imagina-se que a regra do artigo 54-F, §3º, inciso I, do CDC seja aplicável também nas hipóteses dos §§1º e 4º do mesmo artigo 54-F.

De tudo quanto exposto, evidencia-se que a recente Lei do Superendividamento interfere em pontos essenciais das características do cheque, afastando, em favor do consumidor pessoa natural, a abstração e a inoponibilidade das exceções pessoais ao portador de boa-fé. Então, a partir de agora, deve-se promover sempre uma leitura conjugada do artigo 25 da Lei do Cheque com o artigo 54-F, §3º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.

 


[1] MARQUES, Claudia Lima. Fundamento científico da prevenção e tratamento do superendividamento. In: MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa; BETONCELLO, Káren (coord.). Prevenção e tratamento do superendividamento. Brasil: Ministério da Justiça, Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, 2010, p.17-23.

[2] MIRAGEN, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8. ed., São Paulo: RT, 2019, p. 538-539.

[3] Curso de direito do consumidor. 8. ed., São Paulo: RT, 2019, p. 539.

[4] STJ, REsp 1.127.403/SP, 4ª T., Rel. p/ acórdão Min. Marco Buzzi, j. 04.02.2014, DJe 15.08.2014.

[5] ULHOA COELHO, Fábio. Títulos de crédito: uma nova abordagem. São Paulo: RT, 2021, p. 107.

[6] ULHOA COELHO, Fábio. Ob. cit., p. 99.

[7] Quem for demandado por obrigação resultante de cheque não pode opor ao portador exceções fundadas em relações pessoais com o emitente, ou com os portadores anteriores, salvo se o portador o adquiriu conscientemente em detrimento do devedor.

[8] Títulos de crédito: uma nova abordagem, cit., p. 32-33.

[9] Fala-se apenas no consumidor pessoa natural porque todo o contexto da Lei 14.181/2021 refere-se à pessoa física. Embora a jurisprudência do STJ admita a existência de relação de consumo entre pessoas jurídicas, parece correto dizer que o arcabouço normativo da Lei do Superendividamento limita-se a proteger o consumidor pessoa natural (artigo 54-A, caput, do CDC).

[10] Títulos de crédito: uma nova abordagem, cit., p. 35 – grifo do original.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP, professor nos cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), coordenador do grupo de estudos "Acesso à justiça, inovação e sustentabilidade", da Unoeste, e juiz de Direito no estado de São Paulo.

  • é doutoranda em Função Social no Direito Constitucional na Fadisp, mestre em Direito Constitucional e Sistemas de Garantias e Inclusão Social pela ITE (Bauru-SP), professora nos cursos de graduação e de pós-graduação lato sensu da Unoeste, integrante do grupo de estudos "Acesso à justiça, inovação e sustentabilidade", da Unoeste, e advogada.

  • é mestre em Direito pela Universidade do Norte do Paraná (UENP, Jacarezinho-PR), professor no curso de graduação da Unoeste, integrante do grupo de estudos "Acesso à justiça, inovação e sustentabilidade", da Unoeste, e advogado da União.

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