Opinião

Notas sobre a aplicação do tratado de dupla tributação Brasil-Emirados (Parte 2)

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5 de julho de 2021, 9h11

Continuação da Parte 1

A política brasileira de tratados internacionais vem trilhando novos rumos, cujo reflexo pode ser vislumbrado no Tratado de Dupla Tributação do Brasil com os Emirados Árabes Unidos (EAU), assinado em 2018 e promulgado oficialmente no EAU em 2019 e no Brasil em maio de 2021.

Esse novo tratado de dupla tributação (TDT) incorpora algumas mudanças recentes promovidas pela OCDE e pela Organização das Nações Unidas (ONU) na reedição dos respectivos modelos de TDT em 2017. O presente artigo enfoca alguns desses temas, abordando elementos fundamentais na aplicação do TDT Brasil-EAU e destacando particularidades das práticas tributárias atuais em relações transfronteiriças.

As inovações do TDT Brasil-EAU devem influenciar também a maneira como se interpretam os demais tratados da rede brasileira. Esta prática de se olhar para os "tratados paralelos" brasileiros em busca de diferenças de linguagem e sua influência no processo interpretativo, embora controversa, segue orientando decisões dos tribunais no Brasil e no mundo.

Pessoas visadas — novo artigo 1(2) e (3)
O TDT com os EAU será o primeiro tratado brasileiro a incorporar duas novas regras no artigo 1, com importantes esclarecimentos acerca das pessoas que podem pleitear benefícios do acordo e também com relação ao direito de cada país de aplicar suas próprias regras antielisivas na tributação dos seus residentes.

Esses dois novos elementos ao artigo 1 foram introduzidos nos modelos de TDT da OCDE e da ONU em virtude de recomendações concebidas no contexto do projeto BEPS. Há uma cláusula específica para disciplinar o uso do TDT por entidades consideradas transparentes (artigo 1(2)) [1] e uma cláusula para confirmar que os países têm o direito de tributar os seus residentes em relação a temas não cobertos pelo tratado (artigo 1(3)) [2].

Na prática brasileira, ambas as cláusulas foram condensadas em um único dispositivo que preserva o texto do artigo 1(2), mas elimina trechos importantes do artigo 1(3). Espera-se que essa redução de texto resulte inócua e não prejudique a aplicação correta desta cláusula de salvaguarda.

Um impacto importante da cláusula de salvaguarda consiste no reconhecimento explícito da possibilidade de um país, por exemplo o Brasil, tributar os seus residentes mediante a imposição de regras de tributação de lucros de empresas controladas no exterior (CFC). Num raciocínio singelo, pode-se afirmar que a aplicação das regras de CFC se tornará mais dificultosa em casos de países cujo TDT firmado com o Brasil não incorpore essa cláusula, pois faltaria a autorização expressa nesse sentido. Assim, a aplicação das regras brasileiras de CFC, que já despertam muitas outras controvérsias, deve enfrentar novos obstáculos em razão da incorporação dessa cláusula de salvaguarda.

Tributos visados
O TDT Brasil-EAU lista, na perspectiva brasileira, apenas o IRPJ e a CSLL como sendo tributos cobertos pelo tratado [3] e, com isso, perpetua a incômoda controvérsia quanto à potencial inclusão da Cide — a qual, historicamente e economicamente, onera pagamentos transfronteiriços de modo substancialmente similar a um imposto de renda retido na fonte.

Na perspectiva dos EAU, mencionam-se no TDT os impostos sobre a renda e sobre as sociedades [4]. Atualmente esses impostos têm um alcance bastante restrito nos EAU. Cabem aqui algumas observações sobre o sistema tributário emiradense.

Os EAU têm se destacado por seu admirável projeto de desenvolvimento da economia com vistas à criação de autonomia em relação à exploração do petróleo. Na área tributária, notam-se constantes mudanças legislativas voltadas à implementação de tributos típicos de países com economia diversificada. Até pouco tempo atrás, não havia, por exemplo, nenhum IVA, nem Imposto de Renda. Em 2018, introduziu-se a tributação pelo IVA, com alíquota de 5% e há expectativa de possíveis aumentos desta alíquota no futuro.

Nos EAU, não há tributação federal pelo Imposto de Renda e embora tenham sido anunciados planos para que esta tributação seja criada no futuro, não há, até o presente momento, contornos claros sobre tal projeto.

A legislação emiradense prevê a possibilidade de tributação pelo IR no nível subnacional de cada emirado. Nesse sentido, não há atualmente tributação de pessoas físicas pelo Imposto de Renda, ao passo que a tributação subnacional pelo Imposto de Renda de pessoas jurídicas alcança níveis de até 55%. Essa tributação, porém, limita-se a lucros decorrentes de atividades praticadas no território dos EAU e, na prática, somente tem sido implementada para empresas dos setores bancário (sujeitas a IR de 20%) e de extração de petróleo (sujeitos a alíquotas progressivas que chegam a 55%) [5]. Essa prática administrativa pode, entretanto, sofrer mudanças no futuro de modo que o IR possa atingir também as empresas que atuam em outros setores da economia.

Além disso, existem incentivos fiscais específicos nos EAU, conferindo isenção de impostos para empresas que se instalem nas dezenas de zonas de livre comércio dispostas no território dos EAU. O TDT Brasil-EAU, porém, não formulou nenhuma exclusão para tais áreas na cláusula de definição do escopo territorial de abrangência do tratado [6], de modo que tais empresas estão também cobertas pelo tratado (caso atendam aos demais requisitos para acesso aos benefícios do tratado).

Tributação de serviços técnicos
O TDT Brasil-EAU visivelmente se inspirou no modelo de TDT da ONU e, coerentemente, trouxe um artigo específico voltado à tributação dos serviços técnicos [7].

Esse tratado, em conjunto com os outros três tratados de dupla tributação firmados pelo Brasil em 2018 (com Singapura, Suíça e Uruguai), inaugura uma nova fase da política tributária brasileira em matéria de tributação de serviços técnicos.

A antiga estratégia — adotada em alguns tratados brasileiros — de expandir o conceito de royalties, constante do artigo 12, mediante a inserção de previsões específicas nos protocolos, passa a ser substituída por esta nova prática de inclusão de um artigo especificamente desenhado para a tributação de serviços técnicos. Resta enquadrada no artigo 12 (royalties) apenas a atividade de assistência técnica, quando esta, de fato, envolver a transferência de uma tecnologia [8].

A respeito da aplicação deste novo artigo dos TDTs, convém pontuar inicialmente que há uma clara sobreposição de escopo entre os serviços técnicos abrangidos pelo artigo 12-A e os serviços pessoais independentes do artigo 14 do modelo da ONU. Tomando-se o exemplo do TDT Brasil-EAU, pode-se afirmar que o artigo 13 (serviços técnicos) se aplica sempre que os serviços técnicos forem prestados sem uma base fixa (pois esta levaria o enquadramento para o artigo 15(1)(a) da TDT Brasil-EAU) e durante os primeiros 183 dias de presença (em caso de serviços prestados mediante presença física local). Após o 184º dia, passa a ter prevalência o artigo 15 do TDT Brasil-EAU (serviços pessoais independentes).

Em relação a seu escopo, a bem da verdade, o artigo 12-A abrange um conjunto menor de atividades do que normalmente se alcançaria com a inserção do artigo 14(2)(c) nos moldes do modelo da ONU de 1980. Muitos tratados brasileiros adotaram esse artigo 14(2)(c), permitindo a tributação no Brasil sempre que houvesse aqui uma mera fonte de pagamento pelos serviços. Todavia, essa prática não tem se repetido nos tratados brasileiros, pois o artigo 14(2)(c) não frequenta os tratados mais recentes — e tampouco aparece no TDT Brasil-EAU. Dessa forma, o enquadramento de serviços técnicos nesse novo tratado deverá tomar o cuidado de repassar as exceções previstas no artigo 13(3)(a)(b) e (c).

Por fim, importa ressaltar que não estão cobertos pelo novel artigo 13 do TDT Brasil-EAU, os chamados serviços digitais, que incluem, por exemplo, os serviços de publicidade online, serviços de intermediação mediante plataforma online, serviços de mídia social, serviços de conteúdo digital, serviços de computação em nuvem, venda ou outra alienação de dados do usuário e serviços de ensino online padronizados [9]. Todos esses serviços devem ser enquadrados no artigo 7 do TDT Brasil-EAU, de modo que o pagamento correspondente deva ficar a salvo de tributação na fonte.

Se fosse a intenção das partes que tais serviços digitais fossem objeto de tributação na fonte, o TDT Brasil-EAU deveria fazer menção expressa a tais atividades. O tema não é novo e tampouco passou despercebido das autoridades fiscais brasileiras na negociação de um novo protocolo ao TDT Brasil-Argentina, quando se incluiu uma previsão específica para a tributação de serviços "automatizados" [10]. Não sendo esse o caso do TDT Brasil-EAU, não cabe cogitar da tributação de serviços digitais pelo Imposto de Renda na fonte.

 


[1] Esta é a chamada cláusula de entidade transparente (transparente entity provision).

[2] Esta é a chamada cláusula de salvaguarda (saving clause).

[3] Vide artigo 2(1)(a) do TDT Brasil-EAU.

[4] Vide artigo 2(1)(b) do TDT Brasil-EAU.

[6] Vide artigo 3(1)(b) do TDT Brasil-EAU.

[7] Vide artigo 13 do TDT Brasil-EAU, que reproduz a redação do artigo 12-A do modelo de TDT da ONU.

[8] Esta confirmação do escopo mais restrito do artigo 12 (royalties) para alcançar apenas atividades de assistência técnica foi retratada nos TDTs brasileiros com os EAU, Singapura, Suíça e no novo protocolo do TDT com a Argentina.

[9] Exemplos colhidos da proposta de comentários ao artigo 12-B, aprovada em abril/2021, na 22ª Sessão do Comitê Fiscal da Organização das Nações Unidas (ONU).

[10] Vide Protocolo ao TDT Brasil-Argentina, item 7(b), segundo o qual se considera "prestação de serviços técnicos e de assistência técnica […] resultante de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico."

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