Opinião

O banimento de Trump das redes sociais e o impacto na liberdade de expressão

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30 de janeiro de 2021, 6h04

No dia 6 de janeiro, a invasão ao Capitólio americano durante a sessão de confirmação da votação presidencial dos Estados Unidos foi um episódio que causou questionamentos em diferentes níveis intelectuais. Além de algumas pessoas terem ficado feridas e quatro terem sido mortas em decorrência do confronto entre extremistas da direita e a polícia na casa do Congresso americano, questões acerca da democracia e da liberdade de expressão vieram à tona nas redes sociais e voltaram a ser centro dos debates no mundo todo.

A incitação não tão velada do então presidente estadunidense, Donald Trump, a atos violentos em protesto a uma suposta fraude nas eleições nacionais, culminou, após a cena no Capitólio, em seu banimento do Twitter e na suspensão da sua conta no Facebook, pelo menos até o final de seu mandato, além da exclusão dos aplicativos utilizados como meio de comunicação entre os manifestantes por Apple, Google e Amazon.

A decisão das empresas foi alvo de muita discussão acerca do atual momento político e das possíveis consequências que podem advir à transição do governo americano e à força política de Trump.

Basicamente, duas foram as opiniões que dividiram os debates acerca do tema: parte da sociedade enxergou a atitude das empresas privadas, tomadas de forma unilateral, como um meio de salvaguardar a segurança dos demais usuários e evitar a incitação de violência, enquanto outra observou que a medida jamais tinha sido tomada pelas empresas, mesmo em cenários extremamente semelhantes ao gerado no último dia 6, destacando, contudo, a forma e a discricionariedade dessas empresas sobre suas tomadas de decisões.

Todavia, é tão íntima a relação que o banimento do presidente americano guarda com a nova concepção acerca do direito à liberdade de expressão que as questões levantadas pelo episódio merecem ser discutidas no âmbito jurídico e sociológico.

O crescimento exponencial das inovações tecnológicas nas décadas passadas modificou profundamente os conceitos acerca da grande maioria dos direitos individuais e coletivos. Entretanto, é fato que uma das liberdades mais afetadas pelo advento da internet como principal meio de comunicação global foi a de expressão.

O uso das redes sociais se tornou um hábito tão assíduo que hoje destacam-se os que não as utilizam recorrentemente. O número de usuários ativos no Facebook, que em 2020 ultrapassou os 2,7 bilhões [1], demonstra que as redes sociais se tornaram parte da comunicação diária entre os indivíduos em nível global.

Junto a tão drástica modificação dos meios de comunicação, a mudança atingiu também a maneira de expressão das pessoas. As redes sociais passaram a ser um dos principais, se não o principal meio de difusão de ideias e expressão de pensamentos, tanto voltado ao aspecto profissional quanto ao intelectual. Desde a conversa de bar até o comício eleitoral, praticamente qualquer tipo de exposição de ideais pode ser realizado por meio de um canal direto e acessível por quase qualquer pessoa.

Com a ascensão das redes sociais à qualidade de principal meio eletrônico de troca de informações e com o número de usuários atingindo a casa dos bilhões, surge uma questão de relevância ímpar no âmbito jurídico e social: até que ponto privar o indivíduo de utilizar e gerenciar o conteúdo de suas contas implica em uma interferência na sua liberdade de expressão?

São inerentes ao indivíduo garantias como sua liberdade, privacidade, imagem e honra, ainda mais quando se trata de uma relação virtual em que, por óbvio, nenhuma dessas perdem sua prevalência, de modo que, apesar da falsa sensação de que na internet as relações são menos agressivas, é nela que o cuidado necessita ser redobrado, observada a fácil disseminação de informações, verídicas ou não.

Considerando que estudos da GlobalWebIndex [2] apontam que o brasileiro médio costuma gastar quase quatro horas diárias navegando nas redes sociais, há de se reconhecer que nos últimos anos o conceito de liberdade de expressão migrou do apego à verbalidade para passar a abranger também a disseminação de conteúdo na internet.

Assim, um argumento favorável à posição de que limitar o acesso às redes sociais, pode ser comparado, com a limitação de liberdade de expressão, o indivíduo ficaria impedido de exteriorizar seus pensamentos se privado de fazê-lo em suas contas pessoais.

Por outro lado, o posicionamento contrário poderia adotar a linha de pensamento de que as redes sociais, apesar de terem se tornado parte do convívio social, são um serviço de caráter privado, e, além de caber às sociedades empresárias que as mantêm regular o conteúdo que nelas é postado, as empresas são também dotadas de discricionariedade para deliberar sobre seus usuários, de modo que a partir do momento em que não cumprirem com as condições determinadas, estarão sujeitos a penalidades.

Entretanto, até que ponto seria relevante elevar o critério de julgamento das denominadas big techs para apurar infrações dentro de suas redes? Seria cabível, no caso de Trump, o direito de contestar a tomada de decisão sobre seu banimento?

Ambos os argumentos são válidos, e aqui não se pretende apresentar uma solução intocável. Todavia, de cada um dos posicionamentos levantados, são geradas novas questões, ainda sem respostas concretas — e que talvez assim permaneçam por um bom tempo.

Ocorre que, ao tratarmos essas empresas como base estrutural das relações virtuais, temos de certo modo, um monopólio de consumo que obriga a sociedade sobre seus termos de uso. Exemplificando: suponhamos que só existisse no mundo uma marca de automóveis e todos os indivíduos que possuíssem condições financeiras tivessem que comprar carros desta mesma marca. Adicione a isso que o transporte público se tornou obsoleto e de baixa qualidade. Caso essa marca de veículos, uma empresa privada, decidisse não vender nenhum de seus modelos a um determinado sujeito: haveria algum tipo de injustiça? Os indivíduos estariam privados de seu direito de locomoção em algum nível?

Considerando que hoje as grandes redes sociais são regidas por pouquíssimas companhias, há um paralelo quase simétrico a se traçar entre a realidade e essa suposição. O monopólio das big techs tornou-se tão presente no ramo das redes sociais que a Comissão Federal do Comércio americano, junto com outras 48 autoridades estaduais, ajuizou dois processos contra o Facebook por violação das leis antitruste estadunidenses, alegando que as práticas anticoncorrenciais da empresa resultam na exterminação dos competidores [3].

Ainda em decorrência do posicionamento libertário sobre a autonomia das empresas para restrição do acesso às plataformas, eleva-se a indagação: como garantir que as decisões de uma sociedade privada serão justas? Considerando a magnitude que podem ter as deliberações acerca de um indivíduo ter permissão ou não para exibir seus pensamentos em determinada rede social, e, ao mesmo tempo, levando em conta que um número inimaginável de fatores pode influenciar tais vereditos (questões econômicas, políticas, concorrenciais, estratégias de negócios, para citar algumas poucas), não há garantia de que haverá justiça no arbítrio, muito menos de que são elas as competentes para essa tomada de decisão.

A título de exemplo, no caso Trump, será que a atitude das redes demonstra uma evolução no quesito cautela com o conteúdo que figuras de relevância social e política postam em suas redes, e a forma que isso impacta na sociedade? Ou será que a decisão tenha sido uma jogada de marketing político em um momento seguro para as empresas, visto que o mandato do então presidente estava com os dias contados? Como garantir uma homogeneidade nas decisões que serão tomadas daqui para a frente em relação a casos análogos?

No âmbito penal, por exemplo, há a garantia de que um indivíduo somente pode ser condenado por um crime que tenha previsão legal, sendo de antemão sabidos os limites mínimos e máximos da pena que poderá ser eventualmente aplicada, assim como sua execução. Contudo, no âmbito das redes sociais, não há nitidez acerca de quais são as condutas dos usuários que podem acarretar punições e nem quais seriam as penalidades aplicáveis a cada caso, menos ainda quem teria competência para decidir e de que forma o faria.

Ademais, é possível arguir ainda que, em que pese ser de natureza privada o serviço prestado pelas big techs, a relevância pública e a perigosa influência que as redes sociais atingiram na vida social legitimariam uma atuação do poder público nesse tema, a fim de que parâmetros legais fossem observados nas deliberações das empresas acerca do conteúdo exposto e das eventuais consequências ao usuário.

Ao final de uma breve análise acerca dos pontos aqui debatidos, torna-se notória a existência de um interesse público acerca de uma normatização estatal da regulação de conteúdo nas redes sociais. Não obstante, nesse caso, considerando a natureza privada do serviço prestado pelas empresas proprietárias das plataformas, o poder público possuiria legitimidade para legislar sobre tais relações jurídicas? E, indo mais além, ainda que legítima a iniciativa legislativa no Estado, seria esta benéfica? Ou talvez o resultado seria meramente a judicialização de uma questão que deve derivar do bom senso mútuo e da aceitação de termos impostos pelas empresas, como um termo de adesão?

Em que pese as problemáticas levantadas ainda não serem fatos, não se objetiva no presente artigo apresentar respostas, mas, sim, trazer enfoque às atuais questões acerca da linha tênue entre liberdade de expressão como garantia da pessoa humana e o uso das redes sociais.

Em relação ao banimento de Donald Trump do Twitter e do Facebook, uma coisa é certa: esse episódio pode ser considerado uma abertura de significativa relevância acerca de uma possível regulamentação pública das redes sociais, gerando uma crescente preocupação da sociedade e podendo ser esse o início de um paradoxo moderno.

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