Opinião

Trump, plataformas digitais e censura

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29 de janeiro de 2021, 13h31

O início de 2021 foi marcado pela insurreição que se levantou no Capitólio americano por manifestantes favoráveis ao governo de Trump, marcada por ameaças e um simbólico ataque àquela que até então era tida como uma das democracias mais estáveis do Ocidente.

Como o jornalismo internacional já bem observou, tal evento representou apenas o ápice da campanha de desinformação empreendida por Trump nos últimos anos, mesmo antes de ter se sagrado vencedor no pleito eleitoral de 2016, aliada à incapacidade — ou indisposição, que beirava a conivência — das redes sociais com a instrumentalização das plataformas por aqueles que buscam veicular notícias fraudulentas [1].

As recentes circunstâncias, contudo, demonstraram uma viragem no espaço cibernético a respeito do panorama de combate à desinformação, em que diversas plataformas, secundando as medidas adotadas pelo Twitter, adotaram providências para restringir o alcance do conteúdo inverídico difundido por Donald Trump, com o banimento ou a suspensão temporária de seu perfil.

Não era inimaginável que uma série de discussões fosse entabulada devido à política assumida pelas plataformas contra o fenômeno desinformativo, em especial quando o presidente da (dita) maior democracia ocidental sofrera limitação em seu discurso, em meio a alegações de fraude eleitoral.

É que o regime legal de responsabilização de intermediários existente nos Estados Unidos é historicamente considerado um paradigma normativo que inspirou a legislação editada em outros ordenamentos jurídicos domésticos [2], sobretudo em razão da Seção 230 da Communications Decency Act (CDA), que confere imunidade às plataformas em relação aos conteúdos gerados por usuários. Em síntese, a disciplina existente em solo americano é (ou era) mundialmente reconhecida por ser dotada de uma índole profundamente protetiva da liberdade de expressão [3].

Essa ampla margem de manifestação sob o pálio da liberdade de expressão nos EUA, todavia, pode acarretar consequências adversas para a democracia — como bem reconheceu o ministro Luiz Fux no julgamento da ADI nº 2.566/DF —, considerando-se que, em vista do "prestígio que a liberdade de expressão tem no Direito Americano, (…) eles nem cogitam tirar de circulação uma notícia enganosa, uma fake news", e "porque não retiram de circulação, derreteram a candidatura adversa, porque as notícias eram, prima facie, muito falsas" (STF, ADI nº 2.566/DF, rel. min. Alexandre de Moraes, Plenário, j. 16/5/2018, DJe 23/10/2018, p. 54).

Não foi por outra razão que, assim como em outros países – vide a NetzDG, na Alemanha, e o PL das Fake News (PL nº 2.630/20), no Brasil —, o Senado estadunidense entendeu por bem passar a discutir propostas de alteração legislativa para impor obrigações de transparência às plataformas digitais no que diz respeito aos procedimentos de moderação de conteúdo, após a expedição de ordem executiva pelo presidente Donald Trump [4] — a Executive Order on Preventing Online Censorship — para relativizar a imunidade prevista na Seção 230 da Communications Decency Act em matéria de remoção de material online.

Nada obstante, por outro lado, há recente precedente do Tribunal de Apelações do Nono Circuito de São Francisco estabelecendo que determinada plataforma (YouTube), a despeito de sua ubiquidade, por não se consubstanciar em um fórum público, não se submete integralmente aos termos da 1ª Emenda, a qual proscreve a restrição da liberdade de expressão por agentes estatais. PragerU, uma organização de mídia digital independente, ajuizou uma demanda contra YouTube e Google, sob a alegação de que haveria ilegal censura de seus vídeos educacionais, em violação à liberdade de expressão, supostamente em razão da posição conservadora da entidade, através do ocultamento ("modo restrito") e da desmonetização de conteúdo. O Tribunal entendeu que, in casu consimili, no ano de 2019, a Suprema Corte decidiu que "a mera hospedagem de conteúdo de terceiros não é uma função pública tradicional e exclusiva e não transforma, por si só, entidades privadas em atores estatais sujeitos às restrições da Primeira Emenda" [5].

Tais considerações não discrepam dos apontamentos de Martin Eifert no que diz respeito à existência de um virtuelles Hausrecht, o "direito de controle de acesso a recinto virtual" que remonta a um poder inerente à propriedade, de livre decisão sobre quem pode adentrar e permanecer em determinado local físico, ou simplesmente "direito de acesso" — também conhecido como "direito doméstico" ou "direito da casa" (Hausrecht[6]

O renomado jurista alemão consigna, contudo, que, como é consabido, as regras impostas pelas plataformas — as quais ele designa como community standards — obviamente devem se coadunar com os direitos fundamentais e demais preceitos constitucionais e legais de cada ordenamento jurídico, afastando-se as possibilidades de tolhimento da liberdade de expressão, em especial.

E assim conclui com uma relevantíssima consideração: "Os meios sociais devem ser obrigados de forma mais intensa a permitir todos aqueles conteúdos legais e lícitos, uma vez que esses meios estão cada vez mais apoiados em um enredamento abrangente e estimulam os usuários a compartilhar todos os tipos possíveis de conteúdo" [7]; o que, por óbvio, não milita, em nosso entendimento, contra as providências adotadas pelo Twitter e outras redes sociais, mas a seu favor, da perspectiva de que o conteúdo falacioso e atentatório à estabilidade das instituições democráticas certamente não aparenta ser compatível com a própria ordem constitucional norte-americana.

Enfim, o que se pode extrair do cenário a que fomos expostos é que, por um lado, há um debate candente sobre os limites do poder de moderação pelas plataformas privadas, enquanto, por outro, a atuação desses agentes privados é imperativa para assegurar a higidez do ecossistema informacional no espaço cibernético. O ponto de equilíbrio entre essas duas grandezas irretorquíveis certamente repousa sobre as obrigações de transparência das redes sociais, serviços de mensageria e afins, pois viabiliza à sociedade que exerça um legítimo controle sobre as decisões tomadas pelas companhias, a exemplo do que ocorre com o Poder Judiciário e seus provimentos por meio do princípio da publicidade.

Sumarizando: o que a sociedade não mais tolera é que as grandes empresas tecnológicas, cujos capitais financeiro e político sobejam o de diversos países, sejam arbitrárias na condução de temas que interessam à coletividade — local, nacional, global — segundo critérios nebulosos e através de procedimentos desconhecidos, turvos e ininteligíveis, inexplicáveis ou não explicados; a falta de transparência — conceito esse que, sim, bem representa todo o anseio da modernidade — não pode mais ser suportada pelos cidadãos digitais.

 


[1] “(…) the January 6 siege on the U.S. Capitol building illustrates just how powerful a networked conspiracy can be when it’s amplified through social media. The attack was the culmination of years of disinformation from President Trump, which ramped up after Biden was declared the president-elect — and largely the product of social media companies’ inability to control the weaponization of their products” (DONOVAN, Joan. How Social Media’s Obsession with Scale Supercharged Disinformation. Harvard Business Review, [s.l.], 13 Jan. 2021. Disponível em: https://hbr.org/2021/01/how-social-medias-obsession-with-scale-supercharged-disinformation. Acesso em: 17 jan. 2021).

[2] DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: The Moral Reading of the American Constitution. New York: Oxford University Press, 2005, p. 195.

[3] PÍRKOVÁ, Eliška; PALLERO, Javier. 26 Recommendations on Content Governance. [S.l.]: AccessNow, 2020, p. 22. Disponível em: https://www.accessnow.org/cms/assets/uploads/2020/03/Recommendations-On-Content-Governance-digital.pdf. Acesso em: 16 jan. 2021; MARANHÃO, Juliano; ABRUSIO, Juliana; CAMPOS, Ricardo. Atribuição de Responsabilidade das Plataformas no Combate às Fake News. ConJur, São Paulo, 16 jun. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-16/direito-digital-responsabilidade-plataformas-combate-fake-news. Acesso em: 16 jan. 2021.

[4] Aqui ressoa pertinente a observação exposta por Víctor J. Vázquez Alonso (cf. Twitter no es un foro público pero el perfil de Trump sí lo es. Sobre la censura privada de y en las plataformas digitales em los EE UU. Estudios de Deusto, v. 68, n. 1, p. 457-508, jan.-jun. 2020) em relação à ordem executiva expedida por Trump, porque, ainda que se possa questionar as raízes da medida – precipuamente advinda em reação às restrições impostas pelo Twitter em face do então Presidente dos EUA –, o dever de transparência das plataformas é, de fato, uma necessidade da sociedade moderna, daí porque invocável a máxima de Antônio Machado, na obra Juan de Mairena: “[a] verdade é a verdade, diga-a Agamenon ou seu porqueiro”.

[5] No original, em inglês: “merely hosting speech by others is not a traditional, exclusive public function and does not alone transform private entities into state actors subject to First Amendment constraints” (Manhattan Cmty. Access Corp. v. Halleck, 139 S. Ct. 1921, 1930 (2019)).

[6] EIFERT, Martin. A Lei Alemã para a Melhoria da Aplicação da Lei nas Redes sociais (NetzDG) a Regulação da Plataforma. In: ABBOUD, Georges; NERY JUNIOR, Nelson; CAMPOS, Ricardo. Fake News e Regulação. 2a ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, capítulo 6, item 10. E-book.

[7] Ibidem, loc. cit.

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