Opinião

A advocacia criminal e as habilidades do defensor

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27 de janeiro de 2021, 8h06

A afirmação de que o advogado deve ser habilidoso no exercício do seu múnus público é praticamente um truísmo. Entretanto, precisar quais são as habilidades ideais do defensor é algo bem mais complexo.

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Curiosamente, a doutrina pátria não vem se interessando por esse tema, que é relevante para variegadas finalidades: (i) reformulação do método de ensino universitário da prática jurídica penal; (ii) criação de standards para a aferição judicial casuística da efetividade da defesa do acusado; (iii) aperfeiçoamento do modelo de assistência jurídica gratuita a acusados hipossuficientes etc.

Quanto à avaliação das habilidades do causídico, ora viceja heurística da disponibilidade: a mente humana, para responder às questões complexas, tende a privilegiar fontes informativas facilmente disponíveis, em vez de realizar custosa e demorada investigação de dados confiáveis. [1]

Assim, a aferição das habilidades dos advogados tende a ser baseada em critério único: a avaliação da Faculdade de Direito onde o profissional se formou.

Não obstante, esse critério é reducionista, não servindo como parâmetro adequado para examinar habilidades advocatícias. Isso porque os conhecimentos dogmáticos penais e processuais penais ministrados pelas Faculdades de Direito representam pequena fração das habilidades cognitivas e socioemocionais necessárias para o exercício da advocacia.

Vale dizer: bons defensores são capazes de desenvolver conjunto diversificado de habilidades que dificilmente são ensinadas, avaliadas, ou mesmo debatidas durante os cursos de Bacharelado em Direito.

O sobredito conjunto consiste no somatório de habilidades cognitivas, motivação, persistência, personalidade, habilidades socioemocionais (v.g. autocontrole, empatia, maturidade, segurança etc.), qualidade da formação acadêmica e tempo dedicado ao desenvolvimento dessas habilidades na prática forense. [2]

Pesquisa de Marjorie Schultz e Sheldon Zedeck revela supervalorização das habilidades cognitivas exigidas pelos exames nacionais de admissão nas Faculdades de Direito norte-americanas, que são inadequadas para predizer sucesso na advocacia. [3]

Sua pesquisa empírica revelou 26 fatores determinantes do sucesso advocatício: (i) cognição: análise e raciocínio, criatividade e inovação, solução de problemas e julgamento prático; (ii) pesquisa e investigação: jurídica, fática e inquirição; (iii) comunicação: persuasão, escrita, oratória e escuta; (iv) planejamento e organização: planejamento estratégico, organização e gestão do próprio trabalho e do trabalho de terceiros; (v) resolução de conflitos: negociação e alteridade; (vi) empreendedorismo: networking e desenvolvimento de negócios, aconselhamento e relacionamento com clientes; (vii) trabalho coletivo: cultivo de relações interpessoais no meio jurídico, avaliação, desenvolvimento e mentoria; (viii) caráter: determinação, diligência, integridade, autocontrole, prestação de serviços comunitários e crescimento pessoal.

Douglas Linder e Nancy Levit listam as qualidades essenciais dos bons causídicos: empatia, coragem, força de vontade, valorização dos demais integrantes da comunidade jurídica, uso da intuição e do raciocínio deliberativo, capacidade de reflexão realista sobre o futuro, atendimento aos verdadeiros interesses dos clientes, busca da justiça com integridade e capacidade de persuasão. [4]

Alguns Advogados tendem ao viés egocêntrico (egocentric bias) e à heurística do excesso de confiança, (overconfidence), considerando suas habilidades como fatores determinantes das suas vitórias, e fatores externos como determinantes das suas derrotas processuais.

Nada obstante, é difícil obter e mensurar dados objetivos sobre as habilidades de cada defensor. Ao contrário de jogadores profissionais de futebol etc., inexistem dados estatísticos sobre a performance individual de cada causídico nos tribunais. Com efeito, dados pessoais (v.g. idade, experiência, instituição de formação etc.) do advogado não são susceptíveis à correlação com suas habilidades.

Ademais disso, é problemático determinar empiricamente se o resultado processual é atribuível às habilidades do defensor, ou decorre de variáveis independentes (v.g. natureza e quantidade de imputações; robustez das provas incriminadoras; antecedentes criminais do acusado etc.).

Isso porque, como acusado e advogado se escolhem, há viés de seleção que torna praticamente impossível isolar e mensurar o efeito processual das habilidades do defensor.

Com efeito, a relação entre causídico e cliente decorre da convergência entre os interesses do cliente em contratar o melhor advogado que ele consegue custear, e do defensor em assumir causas que propiciem chances de vitória. Tais incentivos podem induzir clientes com casos mais facilmente defensáveis a procurar causídicos com melhores habilidades.

Assim, os resultados processuais podem decorrer desse processo não aleatório de alinhamento (matching) entre advogado e cliente, e não das habilidades do defensor. [5]

Outra dificuldade é determinar qual é a medida correta do sucesso na advocacia (v.g. conhecimento jurídico, quantidade de clientes, causas ou vitórias processuais, faturamento, projeção midiática, respeito, realização pessoal etc.).

Outro ponto relevante é saber se as diferentes espécies de defensor possuem habilidades heterogêneas, que são capazes de influenciar o deslinde dos processos criminais.

Como é cediço, há três espécies de defensor criminal: público, dativo e constituído.

Em resumo, o primeiro é um servidor público integrante de instituição permanente e essencial à administração da justiça, cabendo-lhe a orientação jurídica e defesa dos direitos individuais dos acusados hipossuficientes, de forma integral e gratuita (artigos 5º, LXXIV e 134 da Constituição da República).

Já o defensor dativo é um advogado privado nomeado pelo Juiz quando inexiste órgão de execução da Defensoria Pública disponível para representar acusados sem defensores constituídos (artigos 261, 263, 362, parágrafo único e 396-A, § 2º do Código de Processo Penal), fazendo jus a honorários advocatícios arbitrados pelo magistrado.

Por derradeiro, o defensor constituído é um profissional liberal nomeado pelo acusado, auferindo honorários advocatícios pagos pelo cliente.

Hoje prevalece o entendimento doutrinário de que o direito à livre nomeação de advogado da confiança do acusado integra a estrutura normativa do direito à ampla defesa. [6]

Não obstante, é certo que a livre nomeação de defensor infelizmente é privilégio indisponível para a vasta maioria da clientela preferencial do sistema de administração da justiça criminal.

De toda sorte, é interessante mencionar algumas pesquisas empíricas feitas nos Estados Unidos da América.

David Champion entrevistou 166 Promotores Públicos dos Estados Federados do Kentucky, Tennessee e Virginia, examinando 28.315 casos em que eles atuaram entre 1981 e 1984. [7]

Sua pesquisa revelou que acusados representados por advogados constituídos tiveram resultados processuais mais favoráveis do que aqueles representados por defensores públicos. Por exemplo: (i) 48% dos casos de acusados com advogados foram arquivados, contra 11.3% dos casos de assistidos por defensores públicos; (ii) 36% dos casos de acusados com Advogados resultaram em acordos de aplicação da pena (plea bargains), contra 87.7% dos casos de acusados assistidos por Defensores Públicos; (iii) 8% dos acusados com advogados foram absolvidos, contra 0.1% dos assistidos por defensores públicos etc.

James Beck e Robert Shumsky, por sua vez, analisaram 606 julgamentos de casos susceptíveis à pena de morte na Georgia, entre 1973 e 1978. [8]

Sua conclusão foi no sentido de que a defesa dativa, se comparada à defesa constituída pelo acusado, aumenta o risco de aplicação da pena capital.

Já Morris Hoffman, Paul Rubin e Joanna Shepherd se debruçaram sobre 3.777 crimes graves julgados em Denver no ano de 2002. [9]

Os dados obtidos apontam que os assistidos por Defensores Públicos, na média, foram sentenciados a três anos a mais de pena corporal do que os clientes de advogados constituídos.

Talia Harmon e William Lofquist optaram por extrair da base de dados do Death Penalty Information Center amostragem composta por 97 casos de condenados à pena letal factualmente inocentes, dos quais 81 foram exonerados e 16 executados. [10]

Sua hipótese de trabalho era que o tipo de defensor influencia a probabilidade de rescisão da sentença condenatória, em vez de execução da pena de morte. A conclusão foi que a probabilidade de exoneração do condenado é nove vezes maior quando ele é representado por advogado constituído.

A seu turno, Richard Hartley, Holly Miller e Cassia Spohn, com base em amostragem constituída de 2.850 pessoas condenadas pela Cook County Circuit Court de Chicago, dissecaram os efeitos da atuação processual de defensores públicos em quatro aspectos da persecução penal: (i) liberdade do acusado no curso do processo; (ii) celebração de acordo de aplicação da pena; (iii) aplicação de pena corporal; (iv) duração da pena corporal. [11]

O resultado dessa pesquisa foi que, em linhas gerais, o tipo de defensor (público ou privado) não influencia, de forma estatisticamente significativa, os quatro precitados aspectos.

Já Jennifer Shinall apurou dados sobre 320 julgamentos de crimes graves em quatro jurisdições (Bronx, Los Angeles, Phoenix e o Distrito de Columbia), extraídos da base de dados do National Center for State Courts (NCSC). [12]

Para essa autora, a conclusão é que, ao contrário do que é alardeado pelo senso comum, as habilidades do defensor não têm impacto estatístico significativo no desfecho do processo criminal.

Por outro flanco, as habilidades do acusador são capazes de afetar o sobredito deslinde. Essa conclusão, de certo modo, é intuitiva, considerando que o critério de distribuição do ônus da prova torna a atuação do acusador decisiva para o desenlace absolutório ou condenatório. Vale dizer: o acusador inábil aumenta a probabilidade da absolvição do acusado, independentemente da robustez das provas incriminadoras.

Outra pesquisa, de James Anderson e Paul Wheaton, comparou os resultados processuais de amostragem composta por 3.412 acusados de homicídio, assistidos por defensores dativos e públicos da Philadelphia, entre 1994 e 2005. Nessa cidade, um em cada cinco acusados hipossuficientes recebe aleatoriamente a nomeação de Defensor Público, sendo que os demais recebem defensores dativos. [13]

A conclusão obtida é que os defensores públicos, na média, reduzem o índice de condenações em 19%, a probabilidade de aplicação da pena de prisão perpétua em 62%, e o tempo de pena corporal a ser cumprida em 24%.

Por fim, Thomas Cohen analisou amostragem consistente em milhares de casos julgados pelos 75 Condados mais populosos dos Estados Unidos da América em 2004 e 2006, extraída da base de dados da State Court Processing Statistics (SCPS). [14]

A conclusão atingida foi que o índice de condenações entre acusados assistidos por defensores públicos (73%) e constituídos (72%) era praticamente idêntico, e ligeiramente superior para acusados assistidos por defensores dativos (78%). Por outro lado, os condenados assistidos por defensores constituídos tiveram menor taxa de imposição de pena corporal (65%), comparados aos assistidos por defensores públicos (74%) e dativos (78%).

Tais estudos sugerem a importância de pesquisa empírica semelhante no sistema de administração da justiça criminal pátrio, para avaliar se, na prática judiciária, o direito fundamental à ampla defesa é universal ou condicionado à maior capacidade socioeconômica do acusado.

Este texto, de cariz exploratório, não traz respostas definitivas aos problemas apontados, servindo mais para chamar a atenção da comunidade jurídica brasileira sobre a relevância da questão das habilidades do defensor.


[1] KAHNEMAN, Daniel. Thinking, fast and slow, pp. 129 e ss. New York, Macmillan, 2011.

[2] HENDERSON, William. Successful lawyer skills and behaviors, In: HASKINS, Paul (Org.). Essential qualities of the professional lawyer, pp. 59-68. Chicago: American Bar Association, 2013.

[3] SCHULTZ, Marjorie; ZEDECK, Sheldon. Identification, development, and validation of predictors for successful lawyering. Disponível em: https://www.law.berkeley.edu/files/LSACREPORTfinal-12.pdf

[4] LINDER, Douglas; LEVIT, Nancy. The good lawyer. New York: Oxford University Press, 2014.

[5] ABRAMS, David; YOON, Albert. The luck of the draw: Using random case assignment to investigate attorney ability, In: University of Chicago Law Review: v. 74, n. 04, pp. 1.145-1.177, 2007.

[6] MALAN, Diogo. Defesa técnica e seus consectários lógicos na Carta Política de 1988, In: PRADO, Geraldo, MALAN, Diogo (Orgs.). Processo penal e democracia: Estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988, pp. 143-186. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[7] CHAMPION, David. Private counsels and public defenders: A look at weak cases, pior records and leniency in plea bargaining, In: Journal of Criminal Justice, v. 17, pp. 253-263, 1989.

[8] BECK, James; SHUMSKY, Roberts. A comparison of retained and appointed counsel in cases of capital murder, In: Law and Human Behavior, v. 21, n. 05, pp. 525-538, 1997.

[9] HOFFMAN, Morris; RUBIN, Paul; SHEPHERD, Joanna. An empirical study of public defender effectiveness: Self-selection by the “marginally indigent'”, In: Ohio State Journal of Criminal Law, v. 03, n. 01, pp. 223-255, 2005.

[10] HARMON, Talia Rotberg; LOFQUIST, William. Too late for luck: A comparison of post-Furman exonerations and executions of the innocent, In: Crime & Deliquency, v. 51, n. 04, pp. 498-520, 2005.

[11] HARTLEY, Richard; MILLER, Holly; SPOHN, Cassia. Do you get what you paid for? Type of counsel and its effect on criminal court outcomes, In: Journal of Criminal Justice, n. 38, pp. 1.063-1.070, 2010.

[12] SHINALL, Jennifer Bennett. Slipping away from justice: The effect of attorney skill on trial outcomes, In: Vanderbilt Law Review, v. 63, n. 01, pp. 267-306, 2010.

[13] ANDERSON, James; WHEATON, Paul. How much difference does the lawyer make? The effect of defense counsel on murder case outcomes, In: Yale Law Review, v. 122, n. 01, pp. 154-217, 2012.

[14] COHEN, Thomas. Who is better at defending criminals? Does type of defense attorney matter in terms of producing favorable case outcomes, In: Criminal Justice Policy Review, v. 25, n. 01, pp. 29-58, 2012.

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