Opinião

A Covid-19, o empregador e o empregado

Autor

  • Jorge Batalha Leite

    é juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região tendo atuado previamente como magistrado na 15ª Região e como assessor de desembargador do Trabalho de 2009 até o seu ingresso na magistratura.

25 de janeiro de 2021, 7h14

A Covid-19 é a doença causada pelo novo coronavírus, o SARSCOV-12, responsável pela pandemia que traz o desafio de se encontrarem soluções para manter a sociedade em funcionamento, com o prioritário resguardo da saúde sem colapsar a economia.

Os dados [1] do último dia 5 registram em âmbito mundial um total de mais de 85 milhões de contágios confirmados, com quase dois milhões de óbitos. No Brasil, já são mais de oito milhões de contaminados e 200 mil mortes. No curto prazo e até que haja imunização em massa, há uma tendência de que os números continuem em linha crescente. Dentro desse universo, invariavelmente há casos de trabalhadores que acabaram ou, infelizmente, acabarão por sucumbir à mácula e potencialmente se questionará a existência de responsabilidade do empregador, ou não, pelo infortúnio.

O tema demanda estudo pelo fato de que a classificação da Covid-19 como doença ocupacional garante acesso ao auxílio por incapacidade temporária acidentário (antigo auxílio doença acidentário — nomenclatura alterada pela EC 103/2019), o qual suplanta o período de carência e possui valor superior ao do auxílio por incapacidade temporária previdenciário, além de abrir o flanco para o período de 12 meses de garantia provisória no trabalho (artigo 118 da Lei 8.213/91), manutenção dos depósitos de FGTS durante o afastamento (§5º do artigo 15 da Lei 8.036/90) e as pretensões voltadas à responsabilidade civil.

A normatização da responsabilidade civil tem suas principais bases nos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil [2], sendo que na órbita trabalhista a Constituição Federal dispôs que a responsabilidade civil do empregador, ao menos, será caracterizada quando incorrer em dolo ou culpa, ou seja, haverá como regra a responsabilidade do tipo subjetiva. É a base que está no inciso XXVIII do artigo 7º da CF [3].

Trata-se de um piso normativo, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal (RE 828040, com repercussão geral [4]), de modo que a legislação infraconstitucional pode trazer regras que garantam maior resguardo, como ocorre para as atividades de risco (parágrafo único do artigo 927 do Código Civil [5]).

Retomemos o foco na Covid-19.

O primeiro ponto que é necessário aferir é a existência de algum dano. O simples contágio pelo coronavírus, sem consequências (assintomáticos ou com leve desconforto), não gera repercussões nessa órbita jurídica. A lesão é um pressuposto da indenização.

Os casos que possivelmente devem vir ao Poder Judiciário serão aqueles em que o laborista veio a óbito, padeceu em grau significativo até o convalescimento ou ficou acometido de sequelas, de modo que a discussão estará jungida a existência de nexo causal e de culpa (nos casos de responsabilidade subjetiva), já que a caracterização do primeiro elemento (dano) é evidente.

Há dois significativos pontos de atrito. O primeiro é definir o local em que houve o contágio e como consequência uma relação de causalidade. O segundo é a quem cabe essa prova — ao empregado (ou seus descendentes, em caso de óbito) ou ao empregador.

O planeta se encontra em estado pandêmico desde 11/3/2020. A Organização Mundial da Saúde caracteriza pandemia como a disseminação em âmbito global de uma nova doença, utilizando-se essa denominação quando uma epidemia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa.

Em um primeiro momento, o Poder Executivo buscou transferir o ônus de comprovar o local da contaminação para o trabalhador de maneira categórica, através do artigo 29 da Medida Provisória 927/2020. O Supremo Tribunal Federal suspendeu a sua eficácia (ADI 6342), tendo posteriormente a MP caducado, ou seja, não foi convertida em lei.

O Ministério da Saúde, em 28 de agosto, por sua vez, editou a Portaria Nº 2.309 [6] com a finalidade de atualizar a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT). Houve inúmeros comentários em veículos de comunicação e redes sociais no sentido de que o Executivo estava reconhecendo a Covid-19 como uma doença relacionada ao trabalho. Em verdade, leitura atenta da portaria faz ver que ela apenas permitia o enquadramento como doença dessa estirpe se a exposição fosse decorrente da atividade laboral. Não se tratava de um enquadramento determinante e por si só.

Merece menção que o mesmo ocorre com inúmeras outras doenças, como amebíase e tuberculose, sem que ninguém possa afirmar que toda amebíase ou tuberculose será sempre considerada doença do trabalho. Poderá ser, poderá não ser, a depender sempre do caso concreto. De qualquer forma, a portaria em epígrafe foi suspensa pouco após pela Portaria de nº 2.345 de 2 de setembro.

Não há na legislação brasileira uma norma específica atribuindo no caso particular da contaminação pelo SARSCOV-2 e desenvolvimento da Covid-19 o dever de comprovação do local de contágio a um dos polos da relação de emprego, de modo que deve se buscar junto à legislação previdenciária a regra que disciplina o tratamento para situações de endemia, bem como as regras de ônus da prova consagradas na CLT pela Lei da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17) e que espelham o Código de Processo Civil de 2015 (artigos 818 e 373 respectivamente).

O artigo 20, §1º, "d", da Lei 8.213/91, cuja aplicação no âmbito trabalhista é autorizada pelo artigo 8º da CLT, dispõe que não é considerada doença do trabalho "a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho".

Doença endêmica é aquela que se apresenta frequente em região específica, como a malária na Região Norte ou a dengue em algumas cidades. Nessa linha de raciocínio, mostra-se razoável concluir que uma doença pandêmica adquirida pelo trabalhador, isto é, aquela que está em todos os lugares, por padrão, não é ocupacional, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.

Dessa forma, para aqueles que trabalham com o contato direto em virtude da relação de emprego desenvolvida, como, por exemplo, os profissionais da área de saúde, haverá uma presunção de que a doença foi adquirida no ambiente de trabalho de modo que a conclusão que se chegará é pela existência de nexo de causalidade.

Por outro lado, para os demais, como os que atuem internamente em centrais de monitoramento, escritórios administrativos ou outros ambientes em que a exposição não é distintiva da que se sujeita a população em geral haverá, a princípio, uma presunção de que a mácula não foi contraída durante a atividade desenvolvida.

Assim, é a amplitude da exposição pela atividade que o empregador desenvolve que trará uma presunção ou não da natureza ocupacional da Covid-19. Presunção relativa, diga-se, que admite prova em sentido contrário.

Nesse momento surge o ponto de toque do ônus da prova.

A positivação está no artigo 818 da CLT, que traz a regra padrão (teoria da carga estática) no sentido de que sendo fato constitutivo, o ônus é de quem pleiteia, isto é, do autor. Ao revés, o réu tem o encargo de demonstrar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos.

O §1º do mesmo artigo dispõe que "nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído". Trata-se da teoria da carga dinâmica.

Diante de uma atividade ordinária, comum, se aplica a regra de ser o ônus a cargo do trabalhador (artigo 818, I da CLT), uma vez que é fato constitutivo de seu direito.

No sentido oposto, tratando-se de trabalhador que atua em exposição ao risco de contágio acima do nível médio da população o ônus de comprovar que o laborista a contraiu em local distinto caberá ao empregador. Observe-se que no caso da parte final do artigo 20, §1º, "d", da Lei 8.213/91 anteriormente referido, trata-se de uma inversão ope legis, ou seja, já é feita diretamente pela lei, sendo que aqui não haverá propriamente uma inversão, mas apenas uma exceção legal à regra padrão. Trata-se, assim, de uma regra de julgamento e não de instrução.

Para afastar a presunção poderá a parte passiva se socorrer de prova documental ou testemunhal, demonstrando que eram adotadas todas as medidas de prevenção de acordo com o estado da técnica em conjunto com ter o trabalhador se sujeitado a exposição em outros ambientes externos, como fotos em locais com aglomeração, depoimentos que comprovem transitar por aglomerações em momentos de lazer, entre outros.

Em algumas ocasiões, uma mesma situação poderá levar à comprovação tanto do nexo de causalidade como da conduta culposa do empregador.

Rememore-se que cabe ao ente patronal proporcionar um ambiente de trabalho seguro (artigo 157 da CLT). Nesse contexto, o disposto no §2º do artigo 21 da Lei 8.213/91 vaticina ser doença ocupacional a que resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente. Deve assim o empregador demonstrar que foram fornecidos equipamentos de proteção, como máscaras e álcool 70º, sob o risco de atrair para si o encargo de comprovar que a etiologia não é ocupacional.

O descuido com as medidas de proteção fará presente a conduta culposa por negligência. A mesma conclusão ocorrerá quando for provado que não foram cumpridos os decretos que restringiam o funcionamento. Para esse contexto, há de se considerar adequada a inversão do ônus probatório quanto ao contágio.

O ministro do STF Edson Fachin, ao proferir seu voto na ADI 6342, registrou que "se o constituinte de 1988 reconheceu a redução de riscos inerentes ao trabalho como um direito fundamental social do trabalhador brasileiro, obrigando que os empregadores cumpram normas de saúde, higiene e segurança no trabalho, certamente ele previu que o empregador deveria responsabilizar-se por doenças adquiridas no ambiente e/ou em virtude da atividade laboral. A previsão de responsabilidade subjetiva parece uma via adequada a justificar a responsabilização no caso das enfermidades decorrentes de infecção pelo novo coronavírus, de forma que se o empregador não cumprir as orientações, recomendações e medidas obrigatórias das autoridades brasileiras para enfrentar a pandemia pelo novo coronavírus, deverá ser responsabilizado. Assim, o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, não, do empregado (…)".

Enfim, as discussões afetas à responsabilidade civil são usualmente pautadas por fortes debates até a sua sedimentação. No caso da responsabilidade civil do empregador relacionada à Covid-19 não será diferente.

Bem distante de ser a pretensão de esgotar o tema neste artigo, algumas conclusões podem ser firmadas com bom lastro. O fato de um trabalhador contrair Covid-19, por si só, não significa que a doença é ocupacional. Ela poderá tão somente ter sido diagnosticada no trabalho, ou seja, constatada "no" trabalho, mas não "pelo" trabalho. Essa, inclusive, é a regra pelo momento de pandemia em que a transmissão é comunitária. A prova em sentido contrário caberá a quem a alegar.

Por outro lado, hão de existir casos em que a mácula será potencialmente ocupacional, como daqueles que atuam na linha de frente nos hospitais, e nesse contexto haverá presunção legal que deverá ser afastada pelo empregador. Por fim, temos situações que culminarão em inversão do ônus probatório, quando, e.g., o empregador não cumprir com as condutas de segurança pertinentes. A análise, portanto, deverá se dar caso a caso.

 


[1] Disponível em: < https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR%3Apt-419 >. Acesso em 05/01/2021, às 12:00.

[2] "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".

[3] São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.

[4] Tese: “O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

[5] Art. 927 (…) Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Autores

  • é juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região deste 2018, tendo atuado previamente como magistrado na 15ª Região desde 2016 e como assessor de desembargador do Trabalho de 2009 até o seu ingresso na magistratura.

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