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Sobre feminismo, poder e cárcere

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25 de janeiro de 2021, 19h42

"(…) Tolstói não se pergunta 'como punir?', mas antes 'como se explica que, depois de séculos de repressão, o mal não tenha ainda sido erradicado?'" [1]

Inobstante cor e classe, Direito também tem gênero, e não é o feminino.

O polo penal é a ferramenta de ordem mais enérgica e eficiente na prescrição de controle e opressão das relações econômicas, sociais e de poder — estrutura que chancela desigualdades —, provisão de guerra que se projeta sob o paradigma da subjetividade jurídica qual permeia interesses de classes, porquanto, malgrado esforços e lutas, normas limitam-se dispor garantias de paridade formal que, a despeito da realidade, desempenham muito bem seu papel no mundo das ideias.

Ora, se a alçada penal é mecanismo de reprodução de desigualdade e marginalização de minorias, qual proteção se espera dessa forma jurídica que resguarda e sedimenta o sexismo como operante de sua razão e estrutura?

Relegitimar o senso de punir, sob reduto de lutas feministas, emerge o aparato estatal a uma reprodução cíclica e sistemática de legalidades inoperantes frente às violências concretas. A bandeira do cárcere não apenas sonega disfunções sociais de gênero, como também afoga e destoa esforços do movimento, além de promover sua dispersão à medida que personifica uma estratégia inócua e excludente por natureza — a lógica penal algema, encarcera e pulveriza o debate de conflitos sociais.

Por sua vez, a juíza aposentada Maria Lucia Karam arrebata:

"(…) Os direitos das mulheres se inserem nos direitos fundamentais, e qualquer criminalização é sempre uma ameaça a esses direitos. Me parece absolutamente contraditório, paradoxal mesmo, pretender avançar por meio de um instrumento como o sistema penal, que, na sua própria natureza, fere direitos" [2].

E não se olvide, o fenômeno criminal trata-se de recurso imediatista que simplifica as complexas relações de dominação que circundam mulheres e demais minorias, criam-se impressões viciadas, ancoradas pela normatização/codificação de impasses históricos; desencadeando uma aparente superação de amarras opressivas, dissolvendo, reiteradamente, novas linguagens e leituras da realidade.

Posto promover e reproduzir preconceitos/estereótipos machistas fincados no tecido social — depreciando a autodeterminação da mulher e o seu reconhecimento como integrante do poderio coletivo —, a gênese penal, oportunamente, se posiciona num papel paternalista, porquanto endossa prognoses de inferiorização da mulher, lhe condenando às distintas técnicas de revitimizações e estigmas institucionais.

Não por acaso, a força simbólica do arquétipo penal coíbe pautas emancipatórias e potencializa desregramentos históricos. Ao mesmo tempo em que assume caráter promocional político, negligencia confrontos com o real, neutraliza crises, suspende o debate público, enaltece tecnologias de opressão [3] e controle de corpos (pretos e pobres). Por todos esses motivos, endurecimento penal como ferramenta de abate da violência de gênero é desajuste que inibe o desenvolvimento de alternativas, deveras, eficientes e transformadoras na solução de contendas sociais.

Assim, Alessandro Baratta sinaliza antinomias:

"O Estado, sob pretexto de cumprir o dever de prestar proteção, está, na verdade, de forma simbólica, sobrepondo à política criminal à política social, ou, em outras palavras, está criminalizando a política social" [4].

E, nessa toada, Fernando Anjos:

"O objetivo da pena e do Direito Penal para a visão simbólica é apenas a produção na opinião pública de uma impressão de tranquilidade gerada por um legislador diligente e supostamente consciente dos problemas gerados pela criminalidade" [5].

Nada obstante as disposições incriminantes de condutas e normatizadoras de direitos das mulheres, as inúmeras formas de violência contra elas proferidas não são derrogadas da ordem social. Dado que a lógica do ordenamento positivo, enquanto expressão institucional do poder masculino, construída e pensada por homens, é mecanismo de garantia também da supremacia de gênero.

Nessa acepção, a mulher, na qualidade de sujeito epistêmico do debate jurídico-penal, deve se ater às razões medulares do mecanismo de punição, esse empenho em salvaguardar o controle da sexualidade e autonomia feminina, produto do silogismo patriarcal e misógino — sustentáculos congênitos das estruturas operantes de poder.

Logo, vital questionar e provocar a conjuntura forense, marchar rumo à ressignificação do Direito no percurso que o discurso feminista atravessa. Posto que mulher, conquanto, vítima de condutas desviantes, também o é da violência institucional, que reverbera o signo incipiente de todo adensamento patriarcal penalista. Imperioso assegurar o protagonismo da ofendida como sujeito de direitos na arena processual; elucidar o hiato na acolhida interdisciplinar, a revitimização acometida sob arrimo de abusos institucionais e, nada obstante, julgamentos com esteio de morais públicas.

A política punitivista, além de atestar sua ineficiência na tutela dos direitos das mulheres, oculta seu total descompromisso com o movimento de grupos vulneráveis. O processo de criminalização — retórica de palanque/mercadoria de entretenimento na indústria midiática/comedimento de ultraje popular (populismo penal) — impregna espúria e fantasiosa crença de busca por segurança social, acolhida de vítimas, defesa de direitos fundamentais e intermediação do Estado no apaziguamento de conflitos sociais. O progresso, sustentado por pilares criminalizantes e de encarceramento, deve sempre ser observado sob desconfiança, posta a própria finitude de avanço um tanto teratológico da envergadura penal. Aqui, Silvio de Almeida é certeiro:

"Enquanto 'técnica social', o Direito não exclui a violência, mas 'organiza' seu uso, estabelecendo condições e reservando-a a certos indivíduos e circunstâncias" [6].

Cárcere não é cura, mas a própria enfermidade que sangra e atrofia o corpo social. Política criminal não é saída, é porteira da hegemonia e totalidade masculina, um erro de percurso que homologa as dinâmicas formas de domínio e exploração da mulher.  Sistema penal não é o caminho, o caminho passa pela superação do sistema penal. Pois, se a matriz penal não é feminina, que seja feminina a matriz da sua ruína.

 

[1] OST. François. Contar a lei — As fontes do imaginário jurídico. Tradução: Paulo Neves. 1ª ed. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2005.p. 374.

[2] Disponível em <https://theintercept.com/2019/12/18/entrevista-lei-maria-da-penha-e-lei-do-feminicidio-sao-retrocessos-diz-juiza-maria-lucia-karam/> Acesso em: 24 nov 2020.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução: Lígia M. Ponde Vassallo. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

[4] BARATTA, Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal: lineamento de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, SP, RT, ano 2, n. 5, 1992. p.12.

[5] ANJOS, Fernando Venice. Direito penal simbólico e a lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Boletim do IBCCRIM, São Paulo, n. 167, out. 2006. Disponível em <https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2014/02/Boletim-167_Anjos.pdf> Acesso em: 24 nov 2020.

[6] ALMEIDA, Silvio Luiz. Sartre: Direito e Política, Ontologia, liberdade e revolução. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 159.

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