Segunda Leitura

O que o Judiciário aprendeu com a pandemia e o que ficará de bom (parte 2)

Autor

  • Leonardo Resende Martins

    é juiz federal no Ceará professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia na Itália e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

17 de janeiro de 2021, 8h03

Na coluna anterior, lancei algumas reflexões iniciais sobre o que de positivo o Poder Judiciário brasileiro poderia extrair das experiências de que lançou mão para contornar as dificuldades causadas pela pandemia de Covid-19. Cuidei, primeiramente, da prática do teletrabalho, de suas vantagens e dos desafios que traz. Prossigo aqui abordando outras questões.

A principal delas é o aprendizado sobre como lidar com o excesso de demandas judiciais, problema antigo do nosso Judiciário, mas com potencial de ser superlativamente agravado nesta segunda onda da pandemia. Com a média de óbitos em decorrência da Covid-19 voltando a superar a marca de mil por dia e com os integrantes do Poder Executivo batendo cabeça acerca da vacinação, tudo indica que vivenciaremos um primeiro semestre de 2021 ainda dramático. A crise da falta de oxigênio nos hospitais de Manaus, matando por asfixia pessoas que poderiam ter sido salvas, é um retrato cruel do que ainda está por vir.

Soma-se a isso o fim do pagamento do auxílio emergencial e das medidas voltadas para salvaguardar as empresas e manter empregos, a agravar a vulnerabilidade econômica e social de milhões de brasileiras e brasileiros e, por consequência, a gerar conflitos que, mais cedo ou mais tarde, baterão às portas dos juízes e juízas. Não há setor do mundo jurídico imune a esse impacto. Aumento no número de demissões, de fechamentos de empresas, de inadimplementos de dívidas, de descumprimentos de contratos em geral, de divórcios, de episódios de violência familiar, de requerimentos de benefícios previdenciários e assistenciais, de pedidos de tratamento de saúde, tudo isso acarretará uma imensa carga de trabalho adicional a um sistema de Justiça já bastante sobrecarregado.

Além de mortes, a pandemia provoca enorme frustração de expectativas. E essas frustrações acabam sendo redirecionadas ao Judiciário, transformando-se em milhares de ações. É preciso saber gerenciar esse massivo volume de novos casos, sob pena de, em vez de esperança, o Judiciário se converter em mais uma instância de frustração do cidadão.

A saída para esse grave problema estrutural passa pelo tripé inteligência-inovação-tecnologia.

Nas conclusões do relatório da pesquisa intitulada "Demandas repetitivas e a morosidade na Justiça cível brasileira", de julho de 2011, o Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontou que "o Judiciário não pode agir mais reativamente ao aumento sistemático da litigância processual". O diagnóstico indicou a necessidade de "ações de caráter proativo, capitaneadas pelo Poder Judiciário, incluindo o CNJ", que envolvessem o aperfeiçoamento da gestão judicial, a legitimação dos mecanismos alternativos de resolução de conflito, a elaboração de políticas de redução e filtro das demandas judiciais e a cooperação interinstitucional com órgãos da Administração Pública e com instituições privadas ligadas ao maior número de litígios [1]. O próprio CNJ sinalizava que o princípio da inércia da jurisdição haveria de ceder espaço para uma atuação mais inteligente dos tribunais, cabendo-lhes se anteciparem à enxurrada de ações.

Em sintonia com essa orientação, veio da Justiça Federal no Rio Grande do Norte uma ideia que acabou ganhando o país inteiro. Em 2015, os juízes federais da seccional potiguar criaram a Comissão de Prevenção de Demandas, que se tornaria o embrião do primeiro centro de inteligência do Judiciário brasileiro. O objetivo era identificar precocemente demandas com potencial repetitivo e atuar preventivamente, mediante articulação interinstitucional com as entidades envolvidas no conflito, para resolvê-lo na origem, por meio do diálogo, antes que petições iniciais se multiplicassem nos protocolos da Justiça.

A iniciativa se espalhou pelas seções judiciárias e, posteriormente, acabou sendo abraçada pelo Conselho da Justiça Federal, que instituiu o Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal e os Centros Locais de Inteligência [2]. Desde então, foram editadas 30 notas técnicas pelo centro nacional sobre temas da mais alta relevância, além de tantas outras pelos centros locais, que atuam em rede no diagnóstico prévio e encaminhamento de soluções rápidas, para evitar o entupimento das vias judiciais por demandas desnecessárias, poupando recursos e promovendo segurança jurídica.

Dispor dessa rede de inteligência tem sido um diferencial para a Justiça Federal durante a pandemia. Os centros locais têm se reunido periodicamente para apresentar respostas ágeis aos problemas que afligem juízes e juízas e que afetam, sobretudo, os cidadãos mais vulneráveis. Entre os assuntos tratados, merecem destaque o tratamento de demandas envolvendo o auxílio emergencial, a regulação das teleaudiências e teleperícias e as medidas preventivas para proporcionar o retorno seguro das atividades presenciais [3].

A boa notícia é que o CNJ, em outubro do ano passado, decidiu instituir o Centro de Inteligência do Poder Judiciário (CIPJ), expandindo para os demais ramos da Justiça essa mentalidade mais estratégica de gerir conflitos [4]. A institucionalização dessa governança permitirá que os tribunais se articulem com os órgãos do Poder Executivo e com as grandes corporações litigantes para constituir protocolos e mecanismos que amorteçam os impactos jurídicos causados pela pandemia, negociando previamente soluções que atendam, com equilíbrio, os diversos interesses em disputa.

Diante de problemas de inédita complexidade, é preciso inovar! E é preciso inovar com profissionalismo. Marcado por uma cultura demasiadamente formalista e hierarquizada, o Judiciário nunca foi um ambiente muito amistoso à inovação. Felizmente esse cenário está mudando. E tal como ocorreu com os centros de inteligência, o protagonismo nesse quesito também partiu da magistratura de primeiro grau e, posteriormente, encontrou ressonância na cúpula.

Em 2017, foi criado o iJuspLab, o laboratório de inovação da Justiça Federal em São Paulo, o primeiro da Justiça brasileira. Trata-se de um espaço concebido para estimular a criatividade, mediante a utilização de metodologias, como o design thinking, produzidas para viabilizar o correto diagnóstico de problemas, o levantamento das informações necessárias para avaliação das alternativas de equalização da situação posta, o desenvolvimento de protótipos a serem submetidos a testes quanto à sua eficácia, chegando, enfim, à entrega da solução mais amoldada ao caso, tendo em mente, a todo instante, o foco no usuário e a perspectiva inovadora.

Nos anos seguintes houve uma célere expansão dos laboratórios de inovação no Judiciário, culminando com a instituição, pelo CNJ, do Laboratório de Inovação, Inteligência e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Liods) [5], um passo decisivo para tentar superar a imagem de uma Justiça pesada, morosa e desatualizada, posicionando-a favoravelmente para enfrentar os desafios que o futuro reserva.

Enfim, algumas palavras rápidas sobre tecnologia. Já falei um pouco sobre o assunto na coluna passada, ao abordar o teletrabalho. Mas os avanços vão muito além. O Judiciário vem investindo fortemente no desenvolvimento do processo eletrônico, na gestão de dados e, mais recentemente, em recursos de inteligência artificial. Há muitas incertezas ainda sobre aonde o uso dessas novas tecnologias nos levará. Uma coisa é certa, porém: a maneira como as organizações assimilarão essa revolução tecnológica definirá o seu sucesso ou a sua decadência.

E não será preciso esperar pelo longo prazo. A pandemia já mostrou a diferença de performance entre as instituições que vinham se preparando para um mundo cada vez informatizado e aquelas que ficaram presas na era analógica. O processo eletrônico, ainda que com muitos pontos a serem aprimorados, assegurou que não houvesse solução de continuidade na prestação dos serviços jurisdicionais.

Ainda há muito potencial a ser explorado. As ferramentas de inteligência artificial caminham para permitir a automatização de atividades repetitivas, como classificação de assuntos, preenchimento de formulários, triagem de petições e confecção de expedientes, bem como a produção de sistemas preditivos que auxiliem a tomada de decisão pelos julgadores. Assim, economizam-se recursos financeiros e capital humano e propicia-se maior previsibilidade dos julgados.

Uma Justiça mais inteligente, mais inovadora, mais atualizada tecnologicamente, mais estável em seus pronunciamentos, mais sensível aos dramas humanos e com capacidade de dar respostas mais rápidas e eficientes aos problemas da sociedade. Esse é o desafio para 2021 e para a década que se inicia.

 


[3] No portal do Conselho da Justiça Federal, é possível encontrar publicações contendo as notas técnicas produzidas pelo Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal, bem como aquelas elaboradas pelos centros locais durante a pandemia. Confira-se em https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/serie-cej-cnijf-1.

[4] Resolução CNJ n. 349, de 23/10/2020, disponível em https://atos.cnj.jus.br/files/original131706202010285f996f527203d.pdf.

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  • é juiz federal no Ceará, professor do Centro Universitário Farias Brito (FB Uni) e formador judicial na Enfam e na Esmafe (TRF da 5ª Região). Possui MBA em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas e Master em Gestão Integrada do Meio-Ambiente pela Universidade de Pavia, na Itália, e atualmente está cursando o Mestrado Profissional em Direito e Poder Judiciário da Enfam.

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