Opinião

A 'pejotização', a ADC 66 e a jurisprudência do Carf

Autores

  • Cassiano Menke

    é sócio coordenador da área tributária do Silveiro Advogados doutor e mestre em Direito Tributário pela UFRGS professor de Direito Tributário das escolas dos juízes federais e estaduais no RS professor do curso de especialização em Direito Tributário da PUC-RS e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB-RS.

  • Júlia Costa Leivas

    é advogada no escritório Silveiro Advogados e especializanda em Direito Tributário pela PUCRS/IET.

2 de janeiro de 2021, 18h34

A "pejotização" da prestação personalíssima de serviços intelectuais não deve mais, por si só, ser tratada como ilícito tributário. É que, no último dia 18, o Supremo Tribunal Federal encerrou a sessão virtual de julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade 66. Nesta, foi reconhecida, por oito votos a dois, a constitucionalidade do artigo 129 da Lei nº 11.196/2005. Segundo estabelece a norma reconstruída a partir do referido artigo 129, é possível que o contribuinte crie sociedade para a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, de modo personalíssimo, e receba, para fins fiscais e previdenciários, o tratamento dado pela legislação aplicável às pessoas jurídicas.

A ministra Cármen Lúcia, relatora da ADC 66, ao proferir seu voto, reconheceu a compatibilidade do artigo 129 com a liberdade de iniciativa, disposta no inciso IV do artigo 1º da Constituição Federal. A ministra ainda ressaltou a necessidade de haver segurança jurídica quanto à eficácia das escolhas empresariais dos contribuintes. Nesse contexto, cabe destacar que a ADC, ajuizada pela Confederação Nacional da Comunicação Social, objetivava, justamente, pacificar a interpretação e a aplicação do aludido artigo 129 da Lei nº 11.196/2005. Isso porque tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário vinham adotando requisitos próprios de aplicação desse artigo. Menospreza-se a existência da personalidade jurídica do prestador dos serviços, para, em seu lugar, reconhecer-se a formação de vínculo empregatício entre a pessoa física do prestador e o tomador desses serviços. E, sendo assim, acabava-se impondo ao contribuinte — que havia confiado na disposição do artigo 129 — regramento previdenciário e fiscal mais gravoso do que aquele destinado às pessoas jurídicas.

Todavia, diante da finalização do julgamento da ADC 66, essa realidade tende a ser modificada. É possível ressaltar, ao menos, quatro consequências marcantes decorrentes da decisão tomada pelo STF. Tais consequências tendem a impactar a atuação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) com relação ao exame da matéria em questão. Veja-se que a primeira consequência diz respeito ao dever do Carf de aplicação do precedente do STF em apreço ao proferir futuras decisões, ainda que não haja disposição específica no seu regimento interno prevendo a vinculação do órgão administrativo a ADCs julgadas pela Corte Suprema. Não é demais lembrar que os precedentes, tal como o é a decisão adotada na ADC 66, têm força vinculante material. A vinculatividade do precedente, nesse caso, advém da pretensão de permanência e da definitividade que essa decisão apresenta. Isso em razão de ter conteúdo capaz de ser universalizado para solução de casos semelhantes. Advém, igualmente, da circunstância de ter sido proferido pela mais alta corte judicial do país, a quem cabe, segundo a Constituição Federal, dar a última palavra em tal matéria. Ou seja, seguir esse precedente é um dever imposto ao Carf, com base na segurança jurídica e na igualdade de tratamento entre casos semelhantes.

A segunda consequência que decorre da decisão proferida pelo STF na ADC 66 consiste no impedimento de que a Receita Federal do Brasil (RFB) proceda à desconsideração da personalidade jurídica de empresas que cumprem os requisitos do artigo 129. Nesse sentido, os autos de infração lavrados pela RFB, em razão da prática denominada como "pejotização", têm adotado, usualmente, o seguinte procedimento: após a caracterização da possível existência de relação de emprego entre a pessoa física do sócio da empresa contratada e a empresa contratante, mediante o preenchimento dos requisitos de pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade, dispostos nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, a autoridade fiscal realiza uma espécie de "deslocamento" dos rendimentos obtidos pela pessoa jurídica, devidamente constituída, para a pessoa física do seu sócio. Isto é, a fiscalização efetua verdadeira desconsideração da personalidade jurídica sem, contudo, qualificá-la como tal e sem apresentar fundamentação legal válida para tanto.

Com efeito, a decisão do STF na ADC 66, preconizando a mínima interferência na liberdade econômica das empresas, esclareceu que eventual conduta de maquiagem de contrato de prestação de serviços personalíssimos por pessoa jurídica poderia ser objeto de questionamento no âmbito judicial. Dessa maneira, o precedente reforçou o argumento, amplamente defendido pelos contribuintes, de que o afastamento dos efeitos tributários determinados pelo artigo 129, com a desconsideração da existência da pessoa jurídica, somente pode se dar conforme os ditames estabelecidos no artigo 50 do Código Civil. Ou seja, essa desconsideração só pode ocorrer por meio de decisão judicial, visto que, de acordo com o artigo 50, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, e somente ele, decidir, a requerimento das partes, que os efeitos de determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios das pessoas jurídicas.

Não se desconhece, contudo, que, entre os artigos que costumam fundamentar tais autuações fiscais, de modo a justificar a desconsideração da personalidade jurídica indiretamente realizada pela RFB, está o artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional (CTN). Este dispõe que a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. A referida disposição é objeto, lembre-se, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.446, em trâmite no STF, também de relatoria da ministra Cármen Lúcia. Esta, inclusive, proferiu voto favorável à constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116. Na ocasião, a ministra realizou importantes considerações quanto ao assunto, esclarecendo que: 1) o parágrafo único do artigo 116 do CTN depende de regulamentação por lei ordinária para que possa estabelecer os procedimentos a serem seguidos no que tange à referida desconsideração; 2) o mencionado parágrafo único não pode ser considerado como norma geral antielisiva, uma vez que o artigo 116 combate, exclusivamente, a evasão fiscal; e 3) é possível que os contribuintes busquem, por meio de vias legítimas, a redução de sua carga tributária.

Em outras palavras, conforme a manifestação da ministra Cármen Lúcia, o procedimento a ser adotado para a desconsideração de negócios jurídicos posta em prática atualmente, com base no artigo 116 do CTN, deve ser, em verdade, estabelecido por lei, a qual ainda inexiste. Desse modo, a decisão da ADC 66, somada ao voto emitido pela ministra na ADI 2.446, tem o potencial de afetar a interpretação dada ao artigo 129 da Lei nº 11.196/2005 e ao artigo 116 do CTN, pela RFB e pelo Carf, nos casos em que estes órgãos realizam a desconsideração de negócios jurídicos válidos e plenamente eficazes sem a autorização judicial exigida pelo artigo 50 do Código Civil.

A terceira consequência ora apresentada refere-se ao dever do Carf de reconsiderar seu entendimento relativamente ao artigo 129, uma vez que, na maior parte dos acórdãos, esse conselho afasta indevidamente a aplicação do mencionado preceito legal. Isso para acolher o argumento do Fisco de que a mera existência de elementos indicativos de vínculo empregatício coibiria a incidência dos efeitos tributários específicos determinados pelo artigo 129. É dizer: as decisões de tal tribunal administrativo não afirmam, diretamente, a inconstitucionalidade do artigo 129. Diferentemente disso, elas entendem pela não incidência deste aos casos concretos, já que se estaria diante da constituição, por parte do contribuinte, de pessoa jurídica com o suposto propósito de evitar responsabilidades trabalhistas.

Ocorre, entretanto, que o STF, ao reconhecer a constitucionalidade do artigo 129 da Lei nº 11.196/2005, afirmou precisamente que, para esse grupo de fatos — pessoa jurídica constituída para a prestação de serviços intelectuais, mesmo aqueles de caráter personalíssimo —, aplica-se, sim, a norma reconstruída a partir do artigo 129. Ou seja, o artigo 129 estabeleceu expressamente um limite jurídico ao exercício de poderes por parte da Fiscalização tributária. Desse modo, o Carf, ao respaldar o comportamento da RFB de não aplicar o artigo 129 aos casos para os quais ele se destina, acaba por negar vigência ao conteúdo normativo do referido enunciado legal, com o que não se pode concordar.

Em vista do cenário descrito acima, são raras as decisões do Carf que, de fato, aplicaram a norma reconstruída a partir do artigo 129 da Lei nº 11.196/05, a exemplo do Acórdão nº 2403002.722, proferido nos idos de 2014 [1]. Neste, decidiu-se recurso voluntário interposto pelo Esporte Clube Vitória relativamente à cobrança de contribuições previdenciárias patronais. Essas contribuições incidiriam sobre os valores recebidos pelo treinador do time de futebol por meio de empresa prestadora de serviço constituída por ele para tanto. Nessa oportunidade, o Carf reconheceu que o serviço em análise, de "treinar jogadores", mediante a transmissão de conhecimentos táticos e técnicos, apresentava natureza intelectual e que a possibilidade de sua prestação por meio de pessoas jurídicas estava expressa no citado artigo 129.

A quarta consequência do julgamento da ADC 66 é, por sua vez, o provável impacto da decisão na seguinte discussão: a possibilidade de exploração, por meio de pessoas jurídicas, do direito de imagem de personalidades públicas da televisão e do esporte. Atualmente, os contribuintes defendem a licitude da constituição de empresas para esse fim. O objeto social de tais empresas consiste na exploração dos direitos patrimoniais de imagem pública de certa pessoa física, com base tanto no artigo 129 acima mencionado como no §5º do artigo 980-A do CC, segundo o qual é possível a criação de Eireli com o único objetivo de explorar a remuneração decorrente da cessão de direitos de imagem.

Conforme o posicionamento do Carf até o presente momento, a exploração do direito de imagem não teria natureza de prestação de serviço intelectual. Ainda, referido conselho administrativo vem impondo, também nesses casos, requisitos não estabelecidos pelo ordenamento jurídico pátrio. Isso para reconhecer a natureza comercial, e não salarial, dos pagamentos recebidos pelas pessoas jurídicas em razão do contrato de cessão do direito de uso de imagem celebrado.

Nesse contexto, o Carf passou a exigir, por exemplo, nos casos de jogadores e técnicos de futebol, a inexistência de qualquer relação entre o contrato de cessão de direito de imagem celebrado entre o clube e a pessoa jurídica constituída pelo atleta, e o contrato de trabalho celebrado entre o clube e a pessoa física do profissional [2]. No entender do tribunal administrativo, em que pese os aludidos contratos apresentem objeto e partes diferentes, e sejam regulados por disposições legais distintas, eles teriam, entre si, relação de dependência. É que, de acordo com o Carf, o mero fato de o contrato de trabalho e de o contrato de cessão de imagem terem sido contratados e distratados na mesma época indicaria a ausência de "autonomia" entre as contratações. Isso evidenciaria a simulação do contrato de imagem com a intenção de mascarar remuneração do esportista. Ora, tal requisito instituído pela RFB e recepcionado pelo Carf é, na maioria das vezes, desconectado da realidade das coisas e, por isso, irrazoável. Trata-se de situação, por assim dizer, impraticável. Isso porque não há de se imaginar que um jogador ou técnico que deixe de trabalhar em um time continue usando as marcas e participando de propagandas em nome deste.

Portanto, em vista das quatro consequências elencadas acima, a decisão do STF na ADC 66 deve reforçar o argumento dos contribuintes, perante o Carf, no sentido de que o artigo 129, da Lei nº 11.196/2005, impõe verdadeiro limite ao poder de tributar do Estado. Veja-se que esse julgado deve ser levado em consideração, inclusive, pela Câmara Superior do Carf, ao decidir recursos já interpostos, haja vista, como se disse, o caráter vinculante dos precedentes. Desse modo, é de se esperar que o Carf mude. Isso para que o conselho passe a produzir resultados em seus julgamentos quanto à presente matéria de tal sorte a privilegiar o exercício da liberdade de configuração empresarial.

Enfim, é certo que, segundo consignou a ministra Cármen Lúcia em seu voto na ADC 66, a previsão do artigo 129 deve permanecer sujeita à avaliação de legalidade e regularidade pelo Poder Judiciário, quando acionado, e pela Administração, já que inexistem garantias ou direitos absolutos no ordenamento constitucional. Por outro lado, também é certo afirmar que, conforme sustentado pelo professor Humberto Ávila, em parecer formulado no processo judicial em questão, caso esteja ausente, na situação concreta de certo contribuinte, o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, nos termos do artigo 50 do Código Civil, então a RFB está obrigada a aplicar a legislação tributária relativa às pessoas jurídicas. E, consequentemente, o Fisco está proibido de tributar tais valores como se tivessem sido auferidos por pessoas físicas. Isso é o que deve prevalecer.

 


[1] Acórdão nº 2403002.722, 4ª Câmara, 3ª Turma Ordinária, sessão de 10/9/2014.

[2] Acórdão nº 2202003.682, 2ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, sessão de 8/2/2017; Acórdão nº 2202004.008, 2ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, sessão de 4/7/2017; Acórdão nº 9202007.322, 2ª Turma, sessão de 25/10/2018; e Acórdão nº 2401005.938, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, sessão de 16/01/2019.

Autores

  • é advogado, sócio coordenador da área Tributária do escritório Silveiro Advogados, doutor e mestre em Direito Tributário pela UFRGS, professor do curso de especialização em Direito Tributário da PUC-RS/IET, professor de Direito Tributário da Fundação do Ministério Público (FMP) e da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), professor de Direito Financeiro e Fiscal da Escola dos juízes federais do RS (Esmafe), consultor de Direito Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV/Rio de Janeiro) e membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/RS.

  • é advogada no escritório Silveiro Advogados e especializanda em Direito Tributário pela PUCRS/IET.

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