Opinião

Sobre a vacina da Pfizer e os riscos do desenvolvimento no Brasil

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27 de fevereiro de 2021, 17h27

Os riscos do desenvolvimento estão no mundo. Não há como passar pela vida sem cruzarmos com eles. Já aconteceu com a Talidomida, o Lipobay, o Vioxx e o Bextra. Em certa medida, também com o cigarro, o açúcar branco e a pílula anticoncepcional, guardadas as proporções. Há quem aposte que algo similar ocorrerá, no futuro, com os celulares (e eletrônicos em geral), assim como com os produtos geneticamente modificados. Um dia um estudo comprovará, quem sabe, que alguns daqueles produtos que até então utilizávamos sem medo são, em verdade, nossos algozes impiedosos. Ou não!

Certamente esse é um assunto, no mínimo, ansiogênico, mas extremamente atual, haja vista a discussão (recém-saída do forno) envolvendo as vacinas destinadas ao combate da Covid-19. Não há um ser vivo na Terra que tenha passado incólume pelo assunto do momento: você vai tomar a vacina? E se a vacina fizer mal à saúde das pessoas? Quem se responsabiliza se a vacina causar algum mal? Essa temática, caro leitor, atende pelo nome jurídico de "responsabilidade civil de consumo pelos riscos do desenvolvimento".

Escrevi um livro sobre isso há alguns anos [1], mais especificamente sobre quem paga a conta, no Brasil, quando a imprevisibilidade, o não saber, dá uma rasteira nas agências reguladoras, no poder público, no fabricante, nos comerciantes e nos consumidores. Quem se responsabiliza quando não havia (e não havia como haver) conhecimento acerca dos efeitos nocivos de algum produto para a saúde humana? Perceba-se que se trata de um assunto espinhoso, pois a humanidade se beneficia e necessita das respostas que a ciência encontra. Não haveria como voltarmos à vida normal sem que vacinas e medicamentos fossem produzidos para a proteção das pessoas em relação ao novo vírus, por exemplo.

Por esse motivo, célebres juristas brasileiros acreditam que toda a sociedade deveria arcar com o prejuízo, caso alguma falha relacionada ao risco do desenvolvimento aconteça. Vários países, inclusive, possuem legislação que expressamente exime a indústria da responsabilidade civil pelos riscos do desenvolvimento. A Itália é um deles (deve ser por isso que a Pfizer está vendendo sua vacina de 90% de eficácia contra a Covid-19, a mais eficaz do mercado atual, para os italianos). Importante ressaltar que não se trata aqui de um defeito no produto que a indústria poderia ter evitado, de forma que não se trata de falta de estudo ou de cuidado do poder público. Trata-se do imponderável. Se ninguém tem culpa, a responsabilidade deve ser dividida entre toda a sociedade, segundo alguns estudiosos.

No Brasil, pelo menos, foi isso que aconteceu com a Talidomida: era uma vez um fármaco comumente indicado pelos médicos para amenizar os enjoos de mulheres grávidas. O remédio parecia seguro, mas um dia percebeu-se que havia relação de seu uso com a má formação de fetos pelo mundo inteiro. Um momento pavoroso da história da humanidade! No Brasil, quem pagou essa conta foi a previdência (ou seja, todos nós), visto que foi criada uma pensão para as pessoas atingidas pelo risco do desenvolvimento em relação a este medicamento.  

Outra corrente muito relevante do Direito entende que quem deve se responsabilizar pelos riscos do desenvolvimento, assim como qualquer risco de consumo, é quem lucra financeiramente com o produto. É uma teoria que se chama "risco proveito", que faz tanto sentido para nosso contexto jurídico e social que foi consagrada pelo Código Civil Brasileiro de 2002. Nesse contexto, não importa de quem é a culpa: aquele que criou o produto defeituoso e lucrou com ele deve arcar financeiramente com os danos por ele causados, pois é quem deveria saber (mesmo que não houvesse como) das consequências perversas que seu uso causaria.

Agora contextualizando em relação à "tour das vacinas", o assunto recente é de que a Pfizer não quer trazer a sua belezinha de 90% de eficácia para o Brasil, a não ser que seja eximida de qualquer responsabilidade pelos eventuais efeitos nocivos desconhecidos de seu produto. Não preciso nem falar que se trata de uma empresa mundialmente reconhecida, cuja vacina tem mais eficácia do que qualquer outra até então. Seria, diante de tanta incerteza, uma aposta, aparentemente, mais segura, uma vez que é a primeira vacina a obter registro definitivo no Brasil pela Anvisa [2]

A dúvida que surge com frequência em relação a essa questão é: como assim tomaríamos uma vacina e depois não poderíamos responsabilizar a empresa? Ué, amigos, mas não foi justamente isso o que aconteceu com a Talidomida, mesmo sem qualquer acordo prévio? Nós, por meio da Previdência Social, arcamos com os prejuízos causados às pessoas pelo medicamento, uma vez que não haveria como a indústria, o poder público, as agências reguladoras, os comerciantes e os consumidores terem notícias de que o produto era nocivo à saúde. A ciência ainda não tinha avançado a tal ponto, de forma que, se ninguém teve culpa, a responsabilidade foi compartilhada entre toda a sociedade, no Brasil.

No caso atual, se os riscos do desenvolvimento atingirem as vacinas da Oxford-AstraZeneca ou da Sinovac, minha opinião será pelo compartilhamento da responsabilidade entre todos os entes envolvidos: indústria, poder público e sociedade. Não há mundo possível sem essas vacinas, senhores. A chegada desse produto ao mercado mundial é uma verdadeira bênção, pois se trata da nossa única alternativa para o retorno à vida normal em algum momento. Sendo assim, a menos que seja verificada a existência de algum erro inexcusável dos laboratórios, mesmo que haja algum defeito nas vacinas, a humanidade muito mais se beneficia com essas tecnologias do que o contrário.

Os avanços científicos, infelizmente, às vezes, pressupõem alguns riscos e tropeços. Nesse sentido, perceba-se que mesmo com todas as fases de testagem, depois de vários anos de experimentos, ainda assim haveria o risco de que, no futuro, fosse constatado eventual potencial nocivo do produto, assim como já aconteceu com a Talidomida. E isso não é culpa dos laboratórios, das agências reguladoras, dos políticos, dos cientistas, da ciência ou dos consumidores. Não há culpados, apenas vítimas, em maior ou menor grau. Existe um risco e um proveito a todos nessa cadeia de consumo.

Agora, note que, mesmo o governo decidindo não eximir a Pfizer de responsabilidade, optando por não contar com sua vacina no mercado, ainda assim, no final das contas, sinto que há apenas uma falsa sensação de que estamos no controle em relação à eventual responsabilização dos laboratórios. Ainda que exista o dispositivo legal ressalvando o "risco proveito", o prejuízo que representaria para o Brasil se as grandes indústrias de medicamentos decidissem sair do nosso mercado, em retaliação a alguma eventual condenação pelos riscos do desenvolvimento, seria gigantesco e talvez impraticável. Não foi por outro motivo que tivemos que arcar com os prejuízos da Talidomida.

Na prática, diante das circunstâncias advindas da pandemia, a eximente dos riscos do desenvolvimento em relação à Pfizer não significaria dar "carta branca" ao laboratório, mas sinalizar apoio à ciência, dentro dos limites da boa-fé, com o entendimento de que há eventos completamente imprevisíveis até mesmo para o mais experto dos gênios, aos quais o ser humano se encontra incontrolavelmente vulnerável. Afinal, somos apenas um grão de areia no deserto, um instante insignificante quando comparados à potência da natureza e à complexa história da humanidade e da ciência, e aceitar isso faz parte do processo de evolução da nossa sociedade.

 


[1] A responsabilidade civil de consumo e os riscos do desenvolvimento: estudo comparativo entre Brasil e Itália, publicado, em 2019, pela Editora Lumen Juris, premiado pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor.

[2] O registro definitivo permite que a vacina seja importada também pela rede privada e aplicada em todos com 16 anos ou mais, e não apenas em grupos prioritários, como vem sendo realizado com as vacinas que possuem apenas registro emergencial.

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