Opinião

Democracia militante e patriotismo constitucional

Autor

  • Marcelo Schenk Duque

    é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg Alemanha professor do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA) professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional professor de diversos cursos de pós-graduação lato sensu da UFRGS PUC/RS FESDEPRS FMP dentre outros professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS e membro da Associação Luso-Alemã de Juristas.

27 de fevereiro de 2021, 7h14

O episódio que envolveu a ordem de prisão do deputado federal Daniel Silveira está longe de ser considerado assunto encerrado, tamanhas são as perspectivas e polêmicas que o assunto desperta. Por muito tempo, o caso será lembrado com uma espécie de divisor de águas no que diz respeito à garantia da imunidade parlamentar e os limites da liberdade de expressão. Grande parte das inquietações diz respeito à dúvida se a ordem de prisão afrontou os limites esculpidos no artigo 53 da CF/88, que a essa altura é quase de domínio geral, considerando a intensidade do debate que desencadeou: "Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos".

Como se sabe, trata-se de norma cuja redação original foi atualizada pela EC 35/2001 [1]. O que não é muito divulgado é que a redação final se deu apenas no segundo turno de votação na Câmara dos Deputados (PEC 610-D de 1998) [2], justamente para acrescentar duas partes que são fundamentais na inovação constitucional: a primeira, que os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente; e a segunda, que a respectiva imunidade compreende "quaisquer" opiniões, palavras e votos dos congressistas. Da mesma forma, suprimiu-se a redação de que a imunidade se dava no exercício do mandato. Observa-se, claramente, que o escopo da EC 35/2001 foi ampliar o instituto da imunidade parlamentar, em que a preocupação da então consultoria legislativa da Câmara era de que "no jogo dos interesses políticos, o Poder Judiciário pudesse eventualmente servir de posto avançado de pressão contra o desempenho autônomo do mandato parlamentar" [3].

As vozes contrárias à ordem de prisão do deputado federal costumam enfatizar, além da questão penal relativa à (in)existência de flagrante de crime inafiançável e da controvérsia ligada à abertura de um inquérito penal de ofício pelo STF — aspectos que não me deterei nesta abordagem —, o fato de que as manifestações do parlamentar, por mais impróprias que fossem, estariam cobertas pela imunidade. O argumento é consistente, levando-se em conta que a CF emprega no referido tópico duas expressões que exigem esforço hermenêutico considerável, para serem contornadas: "invioláveis" e "quaisquer de suas opiniões". Aliás, convém lembrar que o termo inviolável é fortíssimo, tanto que ao longo de todo o texto constitucional é empregado apenas em duas oportunidades, uma na que ora se comenta e outra no direito fundamental que assegura a proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (artigo 5, X, CF).

A questão é se todos esses argumentos deixam espaço, mesmo assim, para a ordem de prisão, que acabou confirmada pelo Plenário da Câmara dos Deputados. No meu sentir, a análise do ato, no que diz respeito à liberdade de expressão, deve convergir para um aspecto que tem ficado acobertado nos acalorados debates, que diz respeito à possibilidade de restrições aos direitos fundamentais, considerando que não existe direito absoluto. Em outras palavras, resta saber se a ordem de prisão viola o conteúdo essencial da respectiva garantia ou se, ao contrário, por não se revestir de caráter absoluto, admite intervenções pontuais, a depender das circunstâncias do caso concreto. É justamente nessa direção que me inclino.

De fato, compreender a ordem de valores da Constituição implica ter em mente que os inúmeros direitos e garantias fazem sentido quando aplicados e interpretados em um todo harmônico. Não é por menos que Konrad Hesse, com toda experiência de juiz constitucional na Alemanha, já advertia que o recurso aos fins supremos do ordenamento não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição. Na prática, Hesse entendia que não se pode recorrer a um direito fundamental para acabar com a própria Constituição. No âmbito do conflito entre liberdade de expressão e a manutenção da democracia, fica claro que não se pode admitir que a Constituição conceda uma liberdade cujo uso poderia significar a própria negação dos seus valores, entre eles instituir um Estado democrático, como se percebe desde o preâmbulo. Entendimento contrário seria não só ludibriar, como igualmente subverter a própria Constituição.

Registre-se que essa ideia não é nova. A própria Lei Fundamental alemã, que muito inspira diversos ordenamentos constitucionais democráticos que se apoiam, dentre outras garantias, na liberdade de expressão e na imunidade parlamentar, determina (artigo 139) que nenhuma norma prevista em seu texto, inclusive de direito fundamental, pode ser invocada para defender o retorno do nacional socialismo ou do militarismo, pois isso significaria usar a própria Constituição para restaurar algo que ela, com todas as forças, quis combater. Trata-se de uma figura que pode ser estudada sob a perspectiva do exercício abusivo de um direito.

A doutrina também liga este pensamento ao conceito de "limites imanentes" dos direitos fundamentais (immanenten Grundrechtsschranken), muito trabalhado na literatura germânica, que em síntese prescreve que o exercício regular da liberdade de ação geral. condiciona-se a barreiras que são caras à manutenção do Estado de Direito, como o respeito à ordem constitucional. Mais uma vez, a ideia é que o emprego a direitos fundamentais com a finalidade de violar a ordem constitucional não está acobertado pela ordem de valores da Constituição.

Essa noção pode ser compreendida à luz de vários exemplos. Imagine-se um discurso de um parlamentar que defenda o extermínio de algum grupo da sociedade. Será que se poderia legitimá-lo a partir da literalidade das expressões "invioláveis" e "quaisquer opiniões", cristalizadas no artigo 53 da CF/88? Evidentemente que não! É claro que o deputado não chegou a tanto, mas não se pode esquecer que suas manifestações, além de outras posições polêmicas, defendiam a reedição do AI-5, ou seja, a ditadura, além de ameaças aos integrantes do STF. Elas pregavam, de fato, a rendição da democracia. É por esse motivo que a existência das garantias de liberdade de expressão e da imunidade parlamentar não são suficientes para visualizar a existência de direitos absolutos, sob pena de, em determinados contextos, partimos para ruptura do próprio sistema constitucional e da democracia como um todo.

A abordagem diz respeito ao excesso evidente. Não se pode negar que decisões proferidas pelo STF, bem como eventuais condutas pessoais dos seus membros, são passíveis de críticas, sejam duras, impiedosas ou até injustas, como a própria jurisprudência do tribunal já deixou assentado em diferentes ocasiões. A questão é quando a crítica se converte na negação da própria democracia e das instituições democráticas, além de conter elementos de ameaça e violência. Nesses casos, há a desconfiguração da própria crítica, que se convola em abuso de direito individual.

Encaminho o encerramento para outro ponto decisivo: a noção de democracia militante (streibare Demokratie). Cunhado por Karl Loewenstein, o termo alerta que a ordem democrática deve ser capaz de se defender dos inimigos da liberdade, levando-se em conta que a experiência mostra que a própria democracia e a tolerância que lhe é peculiar não raro são empregadas para a sua própria destruição, sob a pretensa proteção da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais, normalmente sob o manto de governos populistas de perfil autoritário. É interessante perceber que esta ideia afasta a noção de uma mera neutralidade constitucional, no sentido de que à luz da liberdade de expressão a Constituição aceitaria tudo.

Mais uma vez, recorrendo-se às preciosas lições de Hesse, convém não esquecer que o livre jogo das forças políticas, que faz o dia a dia da democracia, deve encontrar um limite exatamente nos artifícios que seus opositores empregam para, com os meios disponibilizados pela própria democracia, eliminá-la. Seu entendimento reside na visão de que os grupos que atuam para a eliminação da democracia, não podem se escudar nos preceitos constitucionais, com a estratégia de aboli-los. Vale dizer, a democracia precisa de meios para se defender daqueles que, sob o pretexto de atuarem com base em direitos fundamentais típicos de um Estado Democrático, pretendem, no fundo, derrubá-lo. Esse olhar de proteção da democracia é uma visão de patriotismo constitucional.

Nos casos complexos, como o que ora se apresenta, sempre é recomendável recorrer à finalidade da garantia objeto de restrição. Considerando o contexto da promulgação da CF/88, será que a finalidade da imunidade parlamentar seria outra, que não a preservação do Estado de Direito e da democracia? Caso entenda que não seria outra, então você se aproxima do argumento de que a referida garantia não pode ser interpretada como absoluta, sob pena de se prestar a subverter as razões que justificam a sua existência, de modo que, em algum momento, limites devem ser traçados. Todavia, caso entenda que a liberdade de expressão justifica até a subversão da democracia, aproveite para debater, até que isso ocorra. Convém lembrar, a propósito, que se as manifestações do deputado obtivessem êxito, e um novo AI-5 fosse decretado, você nem estaria lendo este texto, seja para concordar ou discordar dos seus pontos de vista.

Todos esses argumentos me permitem concluir que, ao menos sob as estritas perspectivas da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar, a ordem de prisão do deputado não encontra óbice insuperável, ainda que se reconheça que sua justificação possui intenso ônus argumentativo. Se, porventura, outros obstáculos advêm de questões ligadas à sistemática e técnicas do processo penal, avançaremos para assuntos que deixo a cargo dos competentes colegas penalistas, na busca de um debate profícuo.

Por fim, não desconsidero que todas as crises acarretam perigos. Um deles, é que os limites, por parte de todos os poderes públicos, sejam desprezados, hipótese em que se passa a depender da sorte para evitar mal maior. A prevenção só pode ser obtida pelo fortalecimento da democracia e das nossas instituições, nunca pela sua destruição. Isso passa, inegavelmente, por uma consistente reforma política, em particular dos sistemas de governo, eleitoral e partidário, debate igualmente necessário, que fica para outra oportunidade.

 


[1] Artigo 53 CF/88 (redação original). "Os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos".

[2] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1234604&filename=Dossie+-PEC+610/1998. Vide, em particular, página 264, onde constam às supressões e inclusão à mão.

Autores

  • é doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed, Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha, professor do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS, pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA), professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional, professor de diversos cursos de pós-graduação lato sensu da UFRGS, PUC/RS, FESDEPRS, FMP, dentre outros, professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS e membro da Associação Luso-Alemã de Juristas.

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