Opinião

A circulação de bens culturais pós-Brexit

Autores

  • Anita Mattes

    é doutora pela Université Paris-Saclay mestre pela Université Panthéon-Sorbone professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

  • Gilmara Benevides

    é doutora em Direito mestre em Antropologia pela UFPE membro da Association of Critical Heritage Studies (ACHS) e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

24 de fevereiro de 2021, 16h15

A circulação de bens culturais na Europa mediterrânea está documentada desde o período da Antiguidade clássica (século 8 d.C.), mas essa movimentação cresceu no auge do colecionismo, em fins do século 19. Desde as duas Convenções de Paz de Haia (1899 e 1907), quando começou a se a exigir uma participação mais assertiva e uma maior responsabilidade dos Estados, a circulação de obras de arte encontra-se no contexto de proteção do patrimônio cultural europeu.

A partir da segunda metade do século 20, passaram a aplicar os principais instrumentos jurídicos de Direito Internacional. A Convenção de Haia de 1954, que é específica para a proteção de bens culturais em caso de conflito armado. A Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais, Paris, 12 a 14 de novembro de 1970, implementada na esfera do Direito Público. E a sua complementar, a Convenção Unidroit sobre Bens Culturais Furtados ou Ilicitamente Exportados, de 1995, aplicada na esfera do Direito Privado.

Ao mesmo tempo, com o Tratado de Roma, criado em 1957, um processo de integração entre os Estados-membros foi paulatinamente sendo instaurado, inclusive no tocante à proteção cultural dos bens culturais na comunidade. E com a entrada em vigor do Tratado da União Europeia (TUE), em 1992, a União Europeia (UE) começou a buscar maior aderência de seus Estados-membrosq. Atualmente, cada um de seus membros deve adaptar sua própria legislação à legislação comunitária, num espaço onde convivem tratados, princípios, legislações e acordos.

Ou seja, além das convenções internacionais, os países europeus possuem regras comuns acerca da proteção dos bens culturais, inclusive como política cultural de integração do bloco que visam a favorecer a circulação de obras de arte. Também há inúmeros instrumentos de cooperação internacional em matéria penal e em matéria cultural para dialogar entre si e com os países externos ao bloco, em casos de importação e exportação para combater o tráfico ilícito internacional de bens culturais.

Na União Europeia, o interesse dos Estados recai na proteção dos símbolos culturais relevantes, de propriedade industrial, comercial, expressões do direito do autor (artigo 36º do TFUE), bem como nas áreas do patrimônio cultural nacional. O Direito Constitucional assegura, assim, o patrimônio cultural comum da própria comunidade, contribuindo para o desenvolvimento das culturas dos Estados-membros e respeitando a sua diversidade nacional e regional, nos termos do artigo 167º, 1º do TFUE. Há exceções ao princípio da livre circulação para bens culturais artísticos, históricos ou arqueológicos apenas para fins de sua proteção.

Contudo, de modo geral, a circulação de bens para fins de venda (obras de arte) é facilitada entre os países que pertencem ao bloco europeu. Com a saída, contudo, do Reino Unido desse bloco, a partir de 1° de janeiro passado, o mercado da arte, e, consequentemente, de todos aqueles colecionadores e operadores europeus do setor que mantem relações com o mercado britânico (mesmo que ocasionalmente), deverá se adequar a algumas novas condições.

Entre as principais mudanças, cite-se a compra/venda de obras de arte entre UE e Reino Unido, que será considerada uma operação de importação/exportação. A negociação exigirá, além das formalidades e observações de regras especiais para entrada e saída de obras do país, o aumento dos custos das operações comerciais e de procedimentos administrativos, sem contar a necessidade de uma licença especial junto ao Arts Council England (ACE) para exportar objetos do Reino Unido.

Assim, para as novas transações entre o Reino Unido e a Europa, será necessário cumprir novas regras e procedimentos. Tanto porque a incidência do Imposto sobre Valor Agregado (IVA) difere daquelas transações dentro da UE, além de taxas alfandegárias e o dos impostos especiais de consumo.

Além disso, as coisas podem ficar igualmente difíceis para o mercado da arte no que tange às obras que hoje estão expostas e às futuras exposições, isto porque algumas complicações podem ocorrer no que tange ao deslocamento de cidadãos entre a UE e o Reino Unido, com novas regras para, por exemplo, quem for visitar uma feira de arte ou uma exposição.

Contudo, deve ser ressaltado que desde 2019 o Reino Unido promete criar mais empregos em diversos setores. Para tanto, o governo britânico visa introduzir novos freeports (semelhante a uma zona franca) em todo o Reino Unido, no intuito de impulsionar o comércio de arte e eliminar a burocracia alfandegária, usando o Brexit como eventual vantagem para os colecionadores de arte.

Os freeports existem desde o século 19, mas o papel desses espaços tem sido cada vez mais expressivo visando oferecer armazenamento privado, anônimo e seguro para mercadorias de alto valor (obras de arte, joias, carros, vinhos, ouro), mediante a isenção temporária de impostos por um período limitado de tempo.

O lado obscuro desse modelo é, conforme o relatório de 2018 da Comissão Especial do Parlamento Europeu sobre Crimes Financeiros, Evasão Fiscal e Elisão Fiscal (TAX3) [1], o risco considerável de prática de crime de lavagem de dinheiro. O relatório baseia-se na análise da legislação pertinente, literatura acadêmica, anuários de autoridades policiais, grupos de pesquisa e operadores do mercado de arte, além de artigos da mídia, estudo de caso supervisionado e entrevistas com especialistas europeus e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

De fato, a utilização de freeports como modelo que favoreça a circulação de obras de arte pode ser bem interessante, o problema é, no entanto, não alimentar o comércio ilegal internacional desses bens culturais. De qualquer forma, com o Brexit, britânicos e europeus que forem comprar obras de arte derivadas desses países poderão pensar duas vezes quando confrontarem as novas condições e suportar novos impostos e serviços que antes não eram aplicados.

 


[1] https://www.europarl.europa.eu/cmsdata/155721/EPRS_STUD_627114_Money%20laundering-FINAL.pdf

Autores

  • é advogada na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, Cultore della materia na Università Bicocca em Milão, doutora pela Université Paris-Saclay, mestre pela Université Panthéon-Sorbonne, pesquisadora do Centre d’Étude et de Recherche en Droit de l’Immatériel (CERDI/Saclay) e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais.

  • é doutora em Direito, mestre em Antropologia, membro da Association of Critical Heritage Studies (ACHS) e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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