Opinião

O direito ao esquecimento merece ser esquecido?

Autor

23 de fevereiro de 2021, 6h35

Conforme é de conhecimento público, no último dia 11 o Supremo Tribunal Federal, após reconhecer a repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 1.010.606, por nove votos a um, declarou, nas palavras do ministro relator Dias Toffoli, que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal.

A tese foi levada ao debate em razão de ação de indenização ajuizada por familiares de Aída Curi, vítima de um crime ocorrido na década de 1950, contra a Rede de Televisão Globo, que houve por reconstituir o caso no programa "Linha Direta", em 2004.

À época do julgamento, o Tribunal de Justiça local afastou o pedido de reparação por danos morais por considerar que o direito de liberdade de expressão deveria se sobrepor ao interesse individual, dando ensejo à interposição de recurso extraordinário para a Corte Suprema.

Embora o STF tenha reafirmado o entendimento exarado pelo tribunal carioca, podemos afirmar que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal e que não há mais espaço para o debate a seu respeito?

Conforme decisões proferidas por diversos tribunais locais, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo próprio Supremo Tribunal Federal (inclusive no julgamento do caso Aída Curi), o direito ao esquecimento é constitucional, coexistente ao direito de liberdade de expressão, como princípio abstrato, decorrente do direito à individualidade, à dignidade, à mora, à imagem e à privacidade.

O julgamento, embora tenha reconhecido a repercussão geral, houve por delimitar a matéria ao caso em concreto e orientar os demais tribunais pátrios a adotarem a mesma postura.

Isso porque o direito ao esquecimento e o direito de liberdade de expressão possuem equiparação constitucional, cuja eventual contradição ou concorrência entre direitos deverá ser submetida ao intérprete diante do caso em concreto.

Noutras palavras, somente será possível afirmar qual direito deverá prevalecer sobre o outro mediante a prática da hermenêutica — interpretação do caso conforme a Constituição Federal — e a relativização entre os princípios.

Diante desse entendimento, é possível afirmar que o direito ao esquecimento permanece em nosso ordenamento jurídico, mas deve ser compreendido conjuntamente com as liberdades fundamentais (artigos 1º, inciso II,I e 5º, inciso X, da CF 1988).

Ressalte-se que, na IV Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, foi aprovado o Enunciado nº 531, de 2014, que afirma que "a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento".

No "caso Aída Curi", a Corte Suprema entendeu que o princípio da liberdade de expressão deveria se sobrepor ao direito de esquecimento, pois o dever de informação, atrelado ao interesse público, possui maior relevância do que a dor emocional que a reprodução do crime causou aos familiares da vítima.

Segundo o tribunal maior, a informação veiculada faz parte de acervo público de notícias que possui finalidade científica e histórica, conectando passado e futuro quando se trata do tema violência contra a mulher que. O interesse histórico e jornalístico deve ser preservado, mas com a ressalva de que não haja excessos que venham a afrontar os direitos da vítima e a esfera dos legitimados à defesa de sua honra.

Sob esse entendimento, verifica-se que a orientação da corte consiste em definir se, ao se noticiar um fato, a liberdade de expressão foi excedida, praticando ofensa aos direitos da personalidade.

A Suprema Corte afirmou, com esse julgamento, que o direito de informação só pode sofrer restrição conforme aquelas diretrizes dispostas no texto constitucional. Como consequência, os direitos da personalidade (artigo 220, §1º, CF1988) devem se submeter ao juízo de ponderação do Poder Judiciário, responsável por relativizar os conflitos de princípios constitucionalmente equivalentes, de acordo com as circunstâncias fáticas.

O dever de informação, ainda que seja um pilar dos ideais democráticos, não é absoluto. A liberdade de expressão requer compromisso com o dever de informar, de forma ética, transmitida com responsabilidade, com finalidade no interesse público, e não no interesse do público. Deve guardar compromisso com os direitos da personalidade, entre os quais estão os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade.

Quando há evidente interesse público, o direito à privacidade deve ser mitigado. Assim, não estão abrangidos pelo direito ao esquecimento os fatos históricos, relevantes e indispensáveis à formação da opinião pública, todavia, ele não foi retirado das discussões de nossos tribunais.

A proteção às pessoas permanece, ainda que em menor intensidade. Podem vir a se sobrepor à informação, por exemplo, se a divulgação for feita de forma abusiva, como pode ocorrer nas biografias não autorizadas.

Há ainda ofensa à honra quando a notícia é posta como mecanismo de diversão ou entretenimento (sensacionalismo), sem finalidade pública ou de caráter jornalístico. Ou mesmo se for notícia inverídica ou caluniosa.

Verifica-se, assim, que o direito ao esquecimento permanece no debate, pois visa a resolver tais situações. Todos os princípios e garantias devem ser ponderados vista a situação concreta.

Contudo, a decisão evidencia que a informação deve prevalecer àqueles direitos inerentes à dignidade da pessoa humana.

Portanto, o direito ao esquecimento permanece garantido, ainda que mitigado, e, quando cogitado, deverá ser avaliado como limitação à liberdade de informação. Não há conflito se houver a correta dosagem.

O direito ao esquecimento não constitui censura à liberdade de expressão ou acesso à informação. Sua finalidade consiste em dar limites e contornos aos abusos e divulgações que não tenham interesse social.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!