Opinião

Suspeição e os limites da inamovibilidade de juízes e promotores

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19 de fevereiro de 2021, 6h36

A história do Brasil desde a longínqua chegada de Dom João 6º em terras tupiniquins dá conta de uma relação um tanto quanto promiscua entre os Poderes constituídos.

Por vezes a pessoalidade e o interesse de classe suprimem o objetivo finalístico de cada instituição. Externamente a imagem que transparece é que, sob as vestes da independência dos poderes, o que há por trás é uma espécie de acordo de cavalheiros para que, quando convém, um não interfira no outro. Pode-se dizer, inclusive, que esta é a pedra de toque para a chamada liturgia de "freios e contra pesos" verde amarela. Na prática o que prevalece é uma intromissão constante entre os Poderes para se atingir interesses, digamos, nem um pouco republicanos.

Aliás, se estendendo um pouco pelas "veias abertas da América Latina" como diria Galeano, este mesmo enredo soa um tanto quanto familiar também nos vizinhos latino-americanos, afinal de contas, esta "virtude" não se trata de uma peculiaridade ou característica apenas nossa, mas também dos nossos hermanos. São fatos muito semelhantes, com personagens distintos. O problema é o mesmo, mas com uma roupagem diferente.

Forçoso reconhecer que muito se avançou desde os tempos da malfadada administração patrimonialista, mas há de se convir que esta cultura deixou cicatrizes.

A questão que se propõe é uma reflexão sobre a recente polêmica envolvendo a relação entre o Poder Judiciário e o MP.

Principalmente após o vazamento das conversas do juiz Sergio Moro e o representante do Ministério Publico Dallagnol.

Ora, veio à tona o que de todos já era esperado, mas não se tinha a confirmação explícita. A notícia de que as duas principais figuras que tomavam a frente na famosa "operação lava jato" — isso não é figura de linguagem — mantinham uma relação que extrapolava os processos não surpreendeu aqueles que labutam nos foros criminais Brasil afora. Independentemente se as conversas são fidedignas ou não, resta evidente que os dois mantinham, no mínimo, um contato muito próximo. Creio até que, na clássica pergunta para se obter a informação se a testemunha poderá ser compromissada ou não, quando ao se indagar se "um frequenta a casa um do outro ao que tudo indica e, leva a crer, pelo teor das conversas, a resposta provável seria que sim. Um seguramente frequentava a casa do outro. Opa, acende-se um sinal de alerta.

Vendo o debate que se instalou no país sobre isso, me parece que o foco principal que deveria estar sendo discutido tem passado batido e incólume. Temos um problema e precisamos resolvê-lo. O que me preocupa porque vozes abalizadas já deveriam estar questionando o que para mim parece um tanto quanto óbvio. Vamos lá. Peço licença aos amigos promotores e juízes, mas é preciso fazer um pouco de barulho, afinal "se a liberdade significa alguma coisa, será sobretudo o direito de dizer às outras pessoas o que elas não querem ouvir" [1].

Vimos que tanto o membro do parquet quanto o julgador eram muito próximos, talvez amigos ou melhor, somente um frequentava a casa do outro. Ok, tudo normal e, digamos, imparcial?

O fato é que este tipo de vinculo ligando o Poder Judiciário com o Ministério Público não é um fato isolado, mas uma realidade. O que se esperar de duas pessoas que convivem praticamente em uma mesma sala fazendo audiências quase todos os dias durante anos? É claro que, se houver o mínimo de empatia, automaticamente nasce algum tipo de afinidade. Consequentemente a pretensão de independência e imparcialidade como pressuposto de validade é natimorta. Avançando, não é incomum o advogado ao adentrar em uma sala de audiências se deparar com um promotor e um juiz que ocupam a mesma vara há muitos anos. Aliás, este parece ser o "novo normal". Não é preciso grandes digressões para se identificar um desequilíbrio processual capaz de macular a decisão de mérito e, atenção, isso vale tanto para o processo penal quanto para o civil, trabalhista e por ai vai.

Até hoje não compreendo porque na formatação do Tribunal do Júri, ou mesmo nas salas de audiência em processos crime, onde o Ministério Público atua como parte e não como fiscal da Lei, este agente senta-se ao lado do Juiz e não no mesmo plano do advogado, que também é parte. Isso é uma deformação de um sistema que parece sugerir que o Ministério Público é uma longa manus do Poder Judiciário, ou mesmo o integra — como em alguns ordenamentos, e até mesmo aqui na vigência efêmera da Constituição de 1967.

A questão que deveria ser o cerne da discussão a partir desta celeuma envolvendo Sergio Moro e Deltan Dallagnol é que, em muitos casos deveria existir suspeição entre juiz e promotor, mas infelizmente na prática não há. Inclusive, seria de bom alvitre que tanto o TJ-RS quanto o TRF4 tornassem pública a informação sobre quantos processos neste último ano de 2020 houve o reconhecimento de suspeição entre eles. Seria um dado importante que poderia subsidiar um exame mais técnico sobre o tema.

De qualquer forma, superando o que, aparentemente, parece muito claro, promotores e juízes, por trabalharem por muito tempo "juntos" na mesma vara acabam criando vínculos que, invariavelmente, poderiam ser qualificados como uma espécie de suspeição. O ideal seria que eles mesmo reconhecessem isso, não o fazendo, cabe a sociedade fazê-lo.

O primeiro passo foi dado. Já se sabe que temos um problema e precisamos resolve-lo.

O que se propõe aqui é uma solução que parece que exsurge natural nestes tempos de pandemia, senão veremos. A título de exemplo, em diversas áreas da sociedade evita-se que o profissional permaneça exatamente no mesmo local/atividade por muito tempo. Isso acontece com os bancários, que não raramente precisam trocar de agencias para que os vínculos criados com a comunidade não venham a prejudicar o desempenho do trabalho. Também ocorre com o padre em sua paroquia, que depois de um tempo, obrigatoriamente precisa se estabelecer em outra igreja. O âmago da análise é que as pessoas permanecendo muito tempo trabalhando no mesmo círculo laboral tendem a criar vícios que prejudicam o desempenho das tarefas que se propõem a realizar.

Aqui neste ponto é que se sugere revisitar a regra de inamovibilidade seja do juiz, seja do MP, para que, tal qual outras profissões, haja pelo menos uma alternância entre as figuras que trabalham na mesma Vara de modo que, se pelo menos atenue esta relação ao ponto de se buscar minorar os equívocos que, inegavelmente tendem a acontecer quando a rotina impõe este trabalho "conjunto". Não se fala em mudança de cidade, mas sim em mudança de vara. Em nada comprometeria o direito resguardado constitucionalmente da inamovibilidade. Isso sim seria implementar o que a doutrina moderna chama de paridade de armas. Exatamente o que não há quando se fala em situações estabelecidas há anos entre promotores e juízes. O pobre advogado é o próprio intruso ao tentar intervir em uma relação de "convivência pública, contínua e duradoura", mas estabelecida com o objetivo de "constituir justiça", quase, portanto, uma união estável.

Até mesmo um néscio ao ser descrita esta realidade concordaria que algo precisa ser mudado, diga-se de passagem, este "estado inconstitucional das coisas" não pode ser normalizado ao ponto de que defensores sejam submetidos ao devido processo legal em uma posição nitidamente de inferioridade, visto que o acusador é que é o amigo do julgador. A presunção de inocência sempre começa torta.

A conclusão que se chega é que o momento reclama mudanças e a pandemia está aí para provar que é possível fazer mais com menos. A tecnologia poderá ser uma importante ferramenta para que uma vez por todas se coloque fim naquilo que se acostumou a aceitar como habitual na prática forense. Afinal de contas, com a realização de grande parte dos procedimentos de forma virtual, impõe-se que este quadro consolidado em anos seja questionado. Mais do que nunca não é possível compactuar com esta situação.

Salta aos olhos a necessidade de correção de paradigma, o que é possível a partir de critérios pré-estabelecidos para que se respeite o juiz/promotor natural, vislumbrando alternativas para que sejam criados mecanismos que viabilizem uma salutar alternância entre juízes e promotores de tempos em tempos nas varas/seções judiciárias. Tudo com a frequência e a imparcialidade que o processo penal reivindica. Os tempos são de transformações, nada mais justo que estes novos ares de vanguarda se impregnem em nossos legisladores e se reconheça que é preciso iniciar o debate para corrigirmos aquilo que sabidamente não está dando certo. Caso contrário situações como a de Moro e Dallagnoll seja para o bem, seja para o mal (o que mais preocupa), mais cedo ou mais tarde voltarão a bater na nossa porta.


[1] George Orwell

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