Opinião

A invasão dos bárbaros e o império dos sentidos

Autor

  • Alfredo Attié

    é presidente da Academia Paulista de Direito titular da Cadeira San Tiago Dantas pesquisador e doutor em Filosofia da USP.

19 de fevereiro de 2021, 12h01

A invasão dos bárbaros, devidamente paramentados para um ritual ou espetáculo de rede social, marcou o início de 2021. Talvez seja a segunda vez na história que um império cai em decorrência de uma ação guerreira desse tipo. A primeira, claro, faz parte de nosso imaginário. Sob o nome comum de germanos, vários povos teriam sido responsáveis, segundo essa imagem, pela queda de Roma, a partir de sucessivos golpes, cujo ato final teria cabido aos hérulos, liderados por Odoacro. Pronto, o império inaugurado por Otávio Augusto chegava ao fim, ao menos em sua versão ocidental. Podemos imaginar os hérulos, que seriam originários da Escandinávia, como sujeitos grandalhões, de cabelos louros longos, com os corpos cobertos por peles grosseiras de animais, longos chifres ornando seus elmos, gritando e atacando com armas rústicas.

Não há necessidade de muita abstração para remeter essa imagem à dos invasores do Capitólio, centro simbólico da nova Roma, nascida de uma colina destinada, acreditam muitos americanos, a ser a luz da humanidade. Os americanos, de fato, acreditam-se herdeiros não só da Antiguidade clássica — sobretudo latina —, dotados das virtudes republicanas louvadas por Cícero, e da capacidade guerreira de líderes como Júlio César. Como Roma, o famoso Distrito de Columbia foi atacado mais de uma vez desde a invasão exitosa britânica de 1814, durante a qual tanto o Capitólio quanto a Casa Branca foram queimados. Outros tantos ataques sofreu a casa dos representantes do povo americano, em sua história. Esses, porém, sempre ocorreram em protesto individual ou coletivo por alguma injustiça que, segundo os que protestavam, terlhes-ia sido causada. Mesmo o ataque ao Pentágono, no condado de Arlington, em setembro de 2001, foi levado a cabo por estrangeiros, cujo resultado foi provocar um dos períodos mais obscuros e difíceis da época recente, a War on Terror, que acabou acirrando nacionalismos, fanatismos religiosos, supressão de garantias jurídicas, e complicando o deslocamento dos povos pelo mundo. Os Estados Unidos se soergueram depois de todos esses ataques, mesmo após o assassinato de presidentes e líderes políticos, em muitos casos proporcionando reformas políticas construtivas, em outros, restritivas. 

A pergunta que faço, porém, é se essa mais recente invasão guarda um novo significado, assim como se a reação americana pode ser eficaz, para o bem ou para o mal, como as antepassadas.

Os terroristas, por exemplo, que atacaram o World Trade Center e o Pentágono apresentavam-se falsamente como herdeiros de um outro império extinto, nascido no curso do que chamamos de Idade Média. Essa falsa imagem, porém, foi suficiente para permitir a construção da ideia do inimigo, tão cara ao pensamento político de índole autoritária. Esse inimigo era diferente, externo e comprometido com um fanatismo que lhe dava contornos de unidade, certa concretude. Por isso, a reação a seus feitos destrutivos conservou a imagem forjada de uma nação única, que se defendia de um ataque e invadia os campos do antagonista, em busca de retaliação e retomada de sua potência guerreira.

Mas aqueles bárbaros do Capitólio não tinham feições estrangeiras, nem se aliavam a uma divindade estranha. Eram compatriotas, da mesma forma como os oponentes da Guerra Civil da primeira metade dos anos 1860. A esses, Lincoln, um dos maiores líderes da história americana, concedeu que, ao se renderem, viriam a ser tratados como cidadãos americanos e reingressar sem dificuldades, no novo formato da União americana, estabelecido pelas emendas constitucionais do período da chamada reconstrução. Aos escravos, porém, africanos ou seus descendentes, os Estados Unidos não ofereceram a mesma oportunidade. Libertos formalmente da servidão, ainda lutariam muito tempo para adquirir aquela cidadania e o respeito de seus compatriotas. No ano de 2020, já durante a pandemia, o mundo pode observar o quanto os afroamericanos permanecem excluídos do pacto republicano firmado na Independência de 1776.

A verdade autoevidente da igualdade ainda não serve a todos. Os protestos pela morte de George Floyd, contudo, não se constituíram em nenhuma invasão. Pelo contrário, pessoas de todos os credos e de todas as etnias percorreram os espaços sagrados da cidadania — as ruas e praças —, prestaram e exigiram respeito pelas vidas humanas perdidas e ameaçadas pela violência simbólica e real do preconceito. Se muitos vivem a liberdade ou sentem viver em liberdade, não será exagero lembrar-lhes que essa situação tem um preço alto a ser pago até aqui. Pois ela decorre de uma situação de desigualdade, isto é, da supressão da mesma liberdade de muitos outros. Com certeza, a esses são devidas não apenas desculpas, mas sobretudo ações concretas que alterem sua situação de inferioridade e o custo alto da vida em insegurança, desproteção e tensão.

Aqueles, todavia, que invadiram o Capitólio tinham as feições típicas dos Wasp, mulheres e homens que empunhavam armas de fogo, o que uma cultura perigosa e destrutiva ainda considera um direito. Contra esses, a reação foi pífia, se comparada à repressão de outros movimentos que, ao contrário dessa invasão, fizeram-se em sua maioria pacíficos e buscavam apenas garantir ou adquirir direitos.

A invasão bárbara de 2021 foi violenta e sem justificativa, mesmo aparentemente insana. Um movimento típico de massa que falsamente se apresenta para protestar, mas que, destituída de qualquer causa real, apenas reivindica destruir o espaço da democracia e nesse espaço público fazer imperar a vontade de poucos, que somente aceitam sua própria imagem e rejeitam a presença de outros. O que diziam os invasores era absurdo. Seu inconformismo com o processo eleitoral era irracional. Estavam inconformados com o fato de seu candidato ter perdido a eleição. Afirmavam, sem prova e sem fatos, uma fraude imaginada, cuja narrativa foi tramada em meio a fake news inventadas em meio às redes sociais, inclusive em contas do próprio candidato perdedor.

As pessoas fotografadas e filmadas, que participavam dessa invasão, eram flagradas proferindo palavras sem sentido e em gestos de agressão gratuita. Depredaram o Capitólio, invadiram salões e gabinetes, enquanto proporcionavam um espetáculo deprimente, nas redes sociais, ao fazerem explodir a sua presença por meio de selfies ridículos e comprometedores de suas intenções vazias, muito embora temerárias.

Muitos compunham uma seita. Outros eram indivíduos do inconformismo com o andamento da própria vida social. Todos compunham o império dos sentidos. Sua pele usurpava a faculdade e a capacidade que deveriam ser atributos de seu cérebro. Sua autoimagem ocupava todo o espaço da existência. Não há mais lugar para nada nem ninguém em seu mundo. Veem-se em tudo e em todas as situações e não admitem que possa haver mundo sem sua presença. O universo é sua vontade e sua representação. Por isso, não hesitam em inverter tudo o que possui lugar e voz. Não há verdade fora daquilo que sabem ou acreditam conhecer. Tudo o que se opõe a esse pequeno núcleo de conhecimento ameaça a segurança que garantem a partir da repressão a si mesmos e a todos aqueles com quem se relacionam. Se é que de relacionamento se pode chamar aquilo que é só univocidade, comunicação de mão única em rua estreita e murada. 

Esses invasores, porém, caminham de modo desapercebido pelas ruas, edifícios e repartições. São mesmo objeto de respeito e, em casos mais doentios, de veneração. Aqueles tipos que, até mesmo hoje, ainda predominam nas imagens de cinema e da propaganda comercial.

Não, não será o Oriente, nem o próximo nem o distante, a encaminhar o curso dessa nova queda. A invasão bárbara que decretou o fim desse império foi perpetrada por seus próprios romanos. Gritaram e apontaram as armas contra si mesmos, em um palco que era visto por boa parte do mundo como um exemplo de desempenho. Ao dizerem "não" à democracia, findaram consigo mesmos, com tudo que seus concidadãos e concidadãs construíram ao longo do tempo e pelo que lutam ainda hoje em dia.

Nessa nova ordem de insegurança, estamos ameaçados por esses bárbaros, que estão aqui. Não querem destruir fronteiras, como os bárbaros da Antiguidade, mas, ao contrário, construir muros e nos expulsar de um espaço que consideram pertencer apenas a eles. Um mundo que está ao alcance do polegar e do indicador, no teclado virtual de smartphones.

Se o discurso inaugural do novo presidente evocava a imagem de Agostinho, como modo de responder a essa invasão, resta saber se o povo americano saberá afastar sua ameaça, recusando a tentação do populismo e da autodestruição.

* Texto originalmente publicado no Portal Terra Tavares

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