Opinião

Uma idade de ouro para a Justiça

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17 de fevereiro de 2021, 10h36

A Justiça é uma daquelas áreas que têm escapado ao impacto dos dados e da tecnologia. É uma ciência de argumentos, persuasão, emoção e juízo humano. Por outro lado, por mais imaginativa que tenha sido a evolução tecnológica, ainda não é possível arquitetar qualquer inteligência artificial (ou aumentada) que se assemelhe aos humanos. Nem tampouco a nossa computação estaria preparada para fazer rodar algoritmos capazes desse tipo de façanha. Mas estaremos muito longe de um cenário como esse que acabamos de propor?

Se olharmos para o europeu médio em 1649, o resultado pode ser muito intrigante. De acordo com David Wotton, em 1600 quase todos partilhavam o mesmo conhecimento intelectual. O europeu culto desse tempo acreditava em feitiçaria, aceitava que certas bruxas fossem capazes de chamar tempestades e que Circe transformou realmente os marinheiros de Ulisses em porcos. Mas não ficamos por aqui. 

Naquele período da história, um homem culto acreditaria que um determinado unguento esfregado no punhal que provocou a ferida poderia curá-la. E os advogados? Ora, os advogados desse período da história estavam persuadidos de que os cadáveres vertiam sangue na presença dos seus assassinos. 

Chegados à nossa contemporaneidade, não temos dúvidas de que a evolução do conhecimento já não nos permite acreditar em algumas coisas que eram tidas por verdadeiras no século 17. Mas não retiremos apenas uma lição nessa abordagem histórica. A maior parte das pessoas ainda não quer acreditar que o mundo mudou. 

Será que a Justiça, a lei, os seus atores e as suas instituições sabem efetivamente evoluir de acordo com os tempos, a tecnologia e o conhecimento científico? Talvez não. Quando olhamos para os julgamentos que ocorriam há três mil anos, eles continuam sendo muito parecidos com os julgamentos dos nossos dias atuais. 

A evolução científica e social pode permitir o nascimento de novos direitos, o acesso a uma Justiça mais próxima do ideal de felicidade, baseada na equidade e na análise do caso concreto. No que diz respeito o Direito, vamos observar o surgimento de novas profissões e o desenvolvimento de advogados híbridos, com recurso às novas tecnologias, capazes de feitos profissionais nunca antes alcançados.

Convido-os a viajarem comigo ao ano de 2050. Tudo será diferente. 

Pela primeira vez na história assistiremos a uma verdadeira revolução da aplicação da Justiça, através da tecnologia e de um vislumbre ontológico outrora desprovido de atenção. Os dados serão usados pelos Estados para melhorar a administração da Justiça e as pessoas não deixarão que se faça simplesmente justiça através de leis gerais e abstratas. A ideia de equidade e análise do caso concreto ganhará cada vez mais expressão e instrumentos quânticos irão ajudar a mensurar sentenças. O dano poderá ser medido e a ciência das emoções estará apta para nos tranquilizar na aplicação de medidas preventivas nos crimes contra as pessoas.

Os advogados trabalharão em firmas poderosas, capazes de usar dados a favor dos seus clientes. Eles próprios serão cada vez mais híbridos, vendo a sua performance desenvolvida pela razão dos dados e de algoritmos baseados em ALI (augmented legal intelligence). Haverá um espelho digital guardado algures. Todos os nossos dados, os nossos e-mails, as nossas coisas, os nossos impostos, os nossos segredos e até as memórias dos nossos entes queridos poderão estar disponíveis numa base de dados.

Será possível garantir segurança a esses dados porque os advogados irão conviver com os seus clientes de forma preventiva. Os advogados serão mestres na elaboração de contratos autoexecutáveis e a economia partilhada não funcionará sem eles. Um smart contract bem feito irá evitar litígios e estará ao alcance de advogados híbridos, verdadeiros conhecedores da realidade, e quase juízes precaucionais. Nenhum negócio será feito sem uma assinatura digital dos cidadãos, reconhecida em qualquer parte do mundo. Uma assinatura digital de um determinado país poderá ser tão importante como um passaporte o é hoje.

Os Estados estarão preocupados com uma extrema segurança de toda essa informação pois os dados serão as próprias pessoas. As mesmas pessoas que votam e selecionam os melhores instrumentos de governança. Esses dados serão usados por algoritmos que substituirão parcialmente os governos, de forma eficiente, e assistiremos à eliminação dos níveis de corrupção a que estamos habituados. 

Os dados e o conhecimento serão uma nova forma de poder e vamos querer ter a certeza acerca da atuação dos políticos do futuro, muito mais escrutinados e talvez as próximas vítimas do Pan-Óptico de Bentham. 

No que diz respeito aos juízes, não vamos querer ser julgados por máquinas. Mas, se isso vier a acontecer, não prescindiremos de um advogado humano que reconheça as nossas emoções. Acredito que nascerá um novo Direito Constitucional: o direito a ser defendido por um advogado humano.

A natureza penal das sentenças continuará a fazer delas um instrumento de correção e reabilitação social. Mas a prisão deixará de ser uma forma de cárcere físico, podendo vir a transformar-se em algo meramente virtual. Será que estaremos prontos para que nos desliguem da corrente elétrica? A realidade social será tão digital que a prisão será uma espécie de liberdade física permanente sem autorização para fazer login num novo mundo virtual em construção.

De fato, essas pequenas abordagens históricas com manchas pinceladas de ficção nos permitem tirar conclusões fascinantes. Elaboramos raciocínios que nos intrigam e, ao mesmo tempo, nos esclarecem. Talvez a idade de ouro para a Justiça tenha chegado, mas os seus atores continuem distraídos.

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