Segunda Leitura

Morre René Dotti, mas suas lições permanecerão

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

14 de fevereiro de 2021, 8h02

Na quinta-feira (11/2), com 86 anos de idade, faleceu o jurista paranaense René Ariel Dotti. Advogado brilhante, professor destacado, intransigente defensor dos direitos humanos e da liberdade de expressão, Dotti foi o bom modelo a ser seguido por várias gerações de profisionais do Direito, especialmente os advogados.

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Segundo o jornal Gazeta do Povo, "na ditadura militar, defendeu políticos, sindicalistas e jornalistas, muitas vezes sem cobrar honorários" [1]. Sua banca de advocacia impôs-se como uma das mais fortes do Estado do Paraná, não se limitando à defesa criminal, matéria de sua especialidade, mas atuando também em outras áreas do Direito.

Suas defesas eram fundamentadas na melhor doutrina e jurisprudência. Sua redação seguia um raciocínio lógico e era clara e objetiva, quiçá fruto de sua passagem pelo jornalismo no início da vida adulta, quando trabalhou no Diário do Paraná. Suas vitórias fundavam-se na maestria na produção das provas e na técnica de convencimento do juiz, jamais fazendo uso de expedientes escusos, como o tráfico de influência.

Mas gênio de tal envergadura não poderia ficar restrito a uma só atividade. Assim a docência foi o complemento natural. Foi por décadas professor de Direito Penal na Universidade Federal do Paraná, ensinou várias gerações, compartilhando não apenas os seus conhecimentos jurídicos, como também ética no exercício da advocacia e experiência de vida.

Seu crescimento cultural e profissional resultou em convites para auxiliar na elaboração legislativa, tendo, entre outras, feito parte das Comissões do Ministério da Justiça que resultaram nas Leis 7.209/84 (reforma da Parte Geral do Código Penal) e 7.210/84 (Lei de Execução Penal).

Todavia, sua inteligência brilhante e temperamento inquieto não poderiam ater-se com exclusividade ao Direito. Ao contrário, dele exigiam que fosse sempre além. E assim, homem de cultura que era, poeta por excelência, aceitou convite para ser o secretário de Cultura do Estado entre 1987 e 1991.

Sua passagem pelo Poder Executivo marcou época. O Teatro Guaíra foi palco de peças teatrais, exibição de orquestras sinfônicas, shows de música popular, exposições de arte, não só incluindo Curitiba no circuito cultural como tornando-a conhecida por receber a primeira apresentação dos melhores espetáculos.

Preocupado com a preservação do meio ambiente, nos início dos anos 1980 representou, graciosamente, uma associação em uma das primeiras ações populares do Brasil. O caso dizia respeito a piscina e restaurante então existentes no Parque Estadual de Vila Velha, no município de Ponta Grossa (PR), que geravam ofensa à paisagem das milenares formações rochosas existentes. A ação foi julgada procedente em 2 de maio de 1984, confirmada a sentença, retiradas as construções existentes, assim permitindo que o bem ambiental fosse e continue sendo usufruído por todos os que visitam o local.

Ativo participante das boas iniciativas da sociedade paranaense, foi membro de inúmeras atividades culturais e sociais, citando-se, a título de exemplo, a Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Recebeu dezenas de homenagens, das quais se menciona apenas uma, a Comenda Mérito Judiciário do Estado do Paraná, conferida por decisão unânime de órgão especial do Tribunal de Justiça do Paraná (2014) [2].

Recordo-me, saudoso, de sua atuação no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Na tribuna era veemente na sustentação, expondo sua tese com brilho. O detalhe é que, ganhasse ou perdesse, sua reação era sempre a mesma. Polidamente se retirava e sistematicamente passava em meu gabinete e deixava um bilhete se despedindo. Jamais uma reação destemperada, nunca uma frase grosseira. Sabia ser enfático mantendo a elegância.

Quando já contava com 83 anos, sua imagem viralizou nas redes sociais, tornando-o conhecido de todo o Brasil. Estava em uma audiência na 13ª Vara Federal, em processo-crime da operação "lava jato" que envolvia as mais altas autoridades do mundo político e econômico nacional. Sua atuação era na condição de assistente da acusação, contratado pela Petrobras, que havia sido lesada em milhões de reais por uma das quadrilhas que infestavam o Brasil à época. Em um dado momento, indignado com as investidas grosseiras de um dos advogados contra o juiz federal Sergio Moro, deu-lhe uma carraspana de dedo em riste, ressaltando que não era assim que se tratava um magistrado.

Os que conheceram René Dotti sabem bem que aquela reação não foi oportunista com a finalidade de colocar-se bem ao lado do juiz, mas, sim, uma manifestação do respeito ao Poder Judiciário. Com décadas de experiência profissional, sabia muito bem que diminuir o Judiciário e os seus juízes era enfraquecer a própria democracia, com todas as consequências disso decorrentes.

Essa, em síntese, foi a trajetória do brilhante jurista René Dotti. Suas lições, todavia, se perpetuarão em todos os que com ele tiveram contato.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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