Opinião

Tensões sísmicas entre a 'lava a jato' e o sistema de Justiça brasileiro

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11 de fevereiro de 2021, 17h09

Temos assistido no país nestes últimos dias à exposição de fatos envolvendo questões/versões processuais relacionadas à chamada operação "lava jato" que preocupam, de modo singular, os profissionais do Direito comprometidos efetivamente com o Estado democrático de Direito, assim como a sociedade de modo geral.

Estamos nos referindo pontualmente aos desdobramentos da Reclamação Constitucional nº43.007 (que, por sua vez, está relacionada com outra RC, a de nº 33.453), na qual os procuradores daquela operação pedem ao Supremo Tribunal Federal a revogação das decisões da corte que franquearam à defesa do ex-presidente Lula o acesso a mensagens relacionadas a conversas/acordos entre o Ministério Público Federal e o ex-juiz Sergio Moro, obtidas por hackers e apreendidas pela Polícia Federal no âmbito da nominada operação "spoofing".

A 2ª Turma do STF, na terça-feira (9/2), por maioria (vencido o ministro Fachin), entendeu que os peticionários não têm legitimidade recursal para ingressar no feito e, assim, não conheceram do pedido apresentado.

Os inúmeros aspectos que se encontram presentes aqui direta e indiretamente estão dando ensejo a reflexões imensas do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e mesmo dos pesquisadores acadêmicos do Direito nas nossas universidades, envolvendo problemas relacionados, entre outros: 1) com o devido processo legal potencialmente corrompido; 2) com o hiperativismo judicial de feições ilícitas; 3) com a ampla defesa vergastada; 4) com a ruptura de deveres institucionais; e 5) com a deslealdade processual. E precisamos ainda debater muito tudo isso.

Neste pequeno espaço, gostaríamos, todavia, de dar destaque a um aspecto em particular desses cenários de horrores indicados: os abalos sísmicos que têm causado à confiança da sociedade no sistema de Justiça brasileiro e suas eventuais consequências trágicas. Explico!

Sinteticamente, na RC nº33.453, a defesa do ex-presidente Lula obteve decisão da 2ª Turma do STF, em agosto de 2020, no sentido de que lhe fosse dado acesso de todos os acordos de leniência firmados entre a Odebrecht e o agente ministerial, eis que providência essencial para o exercício regular da ampla defesa aliás, pedido este que há três anos vem sendo feito. Sob o argumento de que tal determinação jurisdicional não estava sendo cumprida, inclusive porque o MPF sustentava que inexistiam tais documentos, os defensores do ex-presidente interpuseram a RC nº 43.007, fazendo referência expressa aos documentos da "spoofing".

O relator do feito, ministro Lewandowski, ao decidir esta RC nº 43.007, traz o histórico dos descumprimentos de ordens judiciais legitimas por parte do MPF e de sua corregedoria, que ora confere acesso de documentos parciais a defesa do ex-presidente Lula, ora nega a existência de outros documentos, ora diz que inexistem documentos relevantes a causa apreciada pela corte.

E a partir disso vem a pergunta do ministro Gilmar Mendes, elaborada em entrevista ao veiculo de comunicação Jota na terça (9/2): "O que nós fizemos para que se chegasse a esse ponto?". Mas de que ponto fala o ministro Gilmar Mendes?

Ao ponto dos fundamentos normativos angulares do sistema de Justiça brasileiro serem desconsiderados por ações perversas de agentes públicos investidos em cargos estatais que, imbuídas de premissas de justiça falsas (porque monológicas e secretas), foram se desacoplando dos princípios e regras (constitucionais e infraconstitucionais) a que deveriam estar vinculadas, e por isso produziram causas e consequências trágicas não só a vitimas diretas (réus), mas a sociedade como um todo, na medida em que provocaram a quebra da fidúcia daquele sistema, gerando ambientes de profundas inseguranças e instabilidades também institucionais.

Precisamos lembrar, com Niklas Luhmann, que o sistema jurídico não é determinado por si próprio, ou a partir de normas ou princípios superiores, mas por sua referência à sociedade da qual exsurge e à qual pretende regular as relações sociais e institucionais [1].

É essa sociedade, através de processos e procedimentos legítimos e democráticos, mediados pela representação política e institucional do estado de direito parlamentar, que está autorizada a demarcar os parâmetros de condutas individuais e institucionais que devem ser observados na vida em comunidade, os quais, inobservados, gerarão responsabilidades incisivas.

Nessa perspectiva, o sistema jurídico não é determinado por nenhum componente do ambiente, mas, sim, por sua própria organização, isto é, pelo relacionamento entre seus elementos normativos e constitutivos. Essa autonomia do sistema jurídico tem por condição sua clausura, quer dizer, a circunstância de o sistema ser fechado, do ponto de vista de sua organização, não havendo entradas (inputs) e saídas (outputs) para o ambiente, pois os elementos interagem no e através dele. E o que se pode já dessumir no caso em apreço é que houve contaminações excessivas de ambientes exógenos ao sistema, e promíscuos, criados por agentes públicos que o violaram (quando o deveriam proteger), colocando em risco justamente seus escopos neurais.

As normas estruturantes do processo penal, pois, que em tese restaram atacadas nos episódios epigrafados, não cuidam necessariamente apenas de processos técnicos de interação entre indivíduos, mas visam a proteger expectativas relacionadas à estabilização também de instituições democráticas confiáveis. Afinal, tais expectativas, embora sejam por certo mais difusas, não são necessariamente menos concretas, eis que de suma importância à estruturação de sociedades diferenciadas e complexas como a nossa.

Pedindo permissão a Lenio Streck (em seu artigo nesta ConJur do último dia 4), temos que o caos que se espreita ao Estado de Direito em face dessas ocorrências possam fazer que não só alunos de Direito, mas as pessoas (todas) que dependem e confiam nas regras do jogo democrático, fiquem jogadas aos ventos de políticas e estratégias instrumentais antropofágicas.

Que o STF continue tendo o discernimento do que está em risco nesses tristes episódios, apurando às ultimas consequências todas as responsabilidades, pois é o Poder Judiciário que também agoniza nesta quadra histórica enquanto baluarte da ultima fronteira de direitos e garantias fundamentais.

 


[1] Ver o texto de LUHMANN, Niklas y DE GEORGI, Raffaele. Teoría de la Sociedad. México: UIA-U de G-ITESO, 1993.

Autores

  • é doutor em Direito. Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, junto a 4ª Câmara Criminal, especializada para o julgamento dos crimes praticados por prefeitos e vereadores e os crimes contra a Administração Pública. Professor Titular da UNISC e da FMP, graduação, mestrado e doutorado.

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