Opinião

Breves considerações sobre aspectos trabalhistas e de arbitragem dos eSports

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9 de fevereiro de 2021, 15h09

Para aqueles que presenciaram o nascimento da indústria de videogames, por meio dos consoles 8-bits e 16-bits, como Atari e Super Nintendo, a mera ideia de se tornar um "jogador profissional" soaria como algo irreal e utópico nas décadas de 1980 e 1990. Ocorre que, com o imenso avanço tecnológico, houve a possibilidade do desenvolvimento de jogos cada vez mais complexos e que, utilizando conexão de internet, permitiram que os jogadores disputassem partidas em tempo real contra outros indivíduos ao redor do mundo. 

Em síntese, muitos desses jogos, como Dota 2, Counter-Strike e League of Legends, além de extremamente complexos, são disputados em times, que, utilizando a melhor estratégia possível, tentam superar seu adversário, o que gerou inicialmente a criação de torneios amadores com modestas premiações (realizados nas praticamente extintas lan houses).

O cenário foi se desenvolvendo rapidamente no exterior e, atualmente, existem diversos torneios nacionais e internacionais de jogos eletrônicos, extremamente profissionalizados e assemelhados a verdadeiros espetáculos, com premiações que alcançam cifras elevadíssimas (atingindo mais de US$ 30 milhões, como noticiado pela revista Forbes), com transmissões realizadas inclusive por canais esportivos de grande alcance, como a ESPN.

Assim, atualmente, a indústria dos eSports, como é chamada a prática competitiva de videogames, é uma das mais fascinantes e com crescimento financeiro incrível. Somente em 2018 foram realizados investimentos superiores a US$ 4,5 bilhões, com tendência de crescimento nos próximos anos não somente pelo expressivo número de espectadores, mas também pelos patrocínios que atrai, especialmente de marcas fabricantes de acessórios como mouses, teclados e headsets, por exemplo.

Apesar do imenso sucesso principalmente na Ásia e na Europa, no Brasil o setor ainda se encontra no estágio inicial — embora, certamente, com aumento significativo de interesse. Não é por outro motivo que tradicionais associações esportivas, como Flamengo e Santos, recentemente inauguraram suas divisões dedicadas à prática de eSports.

Diante do crescente nível de investimentos, receita e profissionalização das equipes e jogadores, surgem os inevitáveis reflexos e questionamentos jurídicos, principalmente no âmbito trabalhista. Entre eles — e diante da ausência legislação específica —, se indaga qual seria o enquadramento jurídico dos atletas dos chamados cyberatletas. Poderiam eles ser considerados como empregados das organizações a que estão vinculados? Se sim, qual seria o seu enquadramento jurídico? Poderia ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem para resolução dos litígios decorrentes da relação entre atleta e organização?

As divulgações sobre o tema são poucas, porém, existindo os elementos caracterizadores da relação de emprego (subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade), não há qualquer impedimento para o reconhecimento do vínculo de emprego dos cyberatletas, especialmente quando suas atividades são prestadas sob intensa subordinação e integração à organização ou entidade que representam.

Não há, no Brasil, legislação específica para tratar desses profissionais (apesar de existirem projetos de lei sobre o tema), que certamente trabalham em condições únicas. Porém, não é a falta de lei que permite que a situação fática permaneça sem solução (como prevê o artigo 140 do CPC). 

Entendemos que o enquadramento dos cyberatletas como empregados comuns regidos pela CLT não é adequado, diante das diversas peculiaridades a que se encontram submetidos, como as inúmeras horas nos centros de treinamento disponibilizados por suas equipes, de forma a aprimorar sua técnica e estudar as estratégias desenvolvidas por seu coach. Além disso, em vésperas de grandes competições, ficam reunidos e isolados para preservar seu rendimento nas partidas, como os jogadores de futebol em época de "concentração".

Outra questão relevante diz respeito à idade dos atletas que, em muitos casos, são menores de idade, o que poderia atrapalhar o desempenho de suas atividades, caso aplicado o regramento geral celetista.

Assim, na inexistência de lei específica, deve ser aplicada por analogia a Lei Geral do Desporto (Lei 9.615/98) por se tratar de marco normativo muito mais próximo da realidade e dinâmica diária de tais profissionais que são, afinal, atletas. Uma legislação específica ajuda, inclusive, a lidar com a problemática da idade diante do permissivo para a existência dos chamados atletas "de base" (desde que observada uma série de requisitos).

No contrato de trabalho especial dos cyberatletas devem constar previsões como: cláusula indenizatória no caso de transferência para outra entidade, nacional ou estrangeira, confidencialidade (especialmente em relação às estratégias formuladas pelas equipes, equiparáveis a segredos comerciais), não concorrência, formas de se comunicar com a imprensa, aprovação para patrocínios ao atleta (evitando-se conflito de interesses) e disposições relativas a direito de arena e direitos de imagem. 

No que diz respeito à cláusula compromissória de arbitragem, entendemos que inexiste óbice para celebração de contratos prevendo cláusula compromissória de arbitragem, em razão do artigo 507-A da CLT, introduzido pela reforma trabalhista de 2017 (até mesmo pelo usual patamar remuneratório diferenciado por eles auferido), devendo ser ponderado que a própria Lei Geral do Desporto permite a aplicação subsidiária da legislação trabalhista. 

Como regra geral, essa cláusula somente poderia ser prevista se a remuneração do profissional for superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, mediante a sua concordância expressa ou pela iniciativa do profissional, ocasião em que seria previsto que eventuais conflitos decorrentes de tal relação serão solucionados mediante arbitragem, afastando, com isso, a atuação da Justiça do Trabalho.

Para tanto, há de se destacar que a cláusula compromissória arbitral deve ser estipulada por escrito, como exige o §1º, do artigo 4º da Lei 9.307/1996, podendo estar inserta no próprio contrato de trabalho ou em documento apartado que a ele se refira. Nesse caso, a principal caraterística positiva da escolha de cláusula arbitral é que, em razão da falta de previsão legal específica sobre o tema, haveria a possibilidade de escolha, pelas partes, de árbitros, com especialidade no ramo da atividade econômica específica em que atuam, sendo a decisão de eventual litígio proferida de forma muito mais rápida.

Além disso, eventuais conflitos trabalhistas poderiam ser resolvidos por pessoa idônea com larga experiência e conhecimento no ramo dos eSports, obtendo, nesse sentido, decisão mais justa, adequada e consentânea com a realidade da atividade ora em debate. 

Dessa forma, tanto o atleta quanto a organização se encontram protegidos, evitando desnecessários conflitos decorrentes de situações que poderiam facilmente ser previstas anteriormente por meio de dispositivos contratuais. Não há dúvidas, portanto, de que tal inovação da indústria de games constitui importante avanço para a realidade do mercado de trabalho brasileiro, que ainda necessita de profundas modificações, em especial um marco normativo que regule os eSports, traga segurança jurídica para os envolvidos e possibilite o crescimento de tal empolgante setor no Brasil.

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  • é associado do Trench Rossi Watanabe e atua na área trabalhista, com foco no contencioso trabalhista judicial e administrativo, presta assistência e consultoria em ações individuais, coletivas e ações civis públicas, com experiência relacionada a saúde e segurança, além de doença ocupacional.

  • é associado do Trench Rossi Watanabe e atua na área trabalhista, representando clientes de diferentes setores econômicos em ações judiciais estratégicas, individuais ou coletivas, bem como em demandas que envolvem o Ministério Público do Trabalho, além de atuação no setor consultivo.

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