Opinião

Horizontes do Direito da Concorrência em 2021: entre o desapego e a esperança

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9 de fevereiro de 2021, 18h17

Mais do que perspectivas, horizontes a serem desbravados e alargados. Mais do que expectativas, novas fronteiras a serem descobertas e asseguradas. Há, indubitavelmente, um amplo escopo de possibilidades e urgências disponíveis ao Direito da Concorrência em 2021. Alguns problemas permanecem, assim como outros surgem. A grave crise econômica decorrente da pandemia da Covid-19 demandou que as autoridades antitruste mundiais revissem parcialmente parâmetros e entendimentos que orientaram sua atuação nos últimos anos e décadas, bem como nos impôs que diretrizes e procedimentos fossem, de modo ainda mais enfático, robustecidos e estimulados diante de soluções à crise eventualmente imediatistas ou redutoras.

O choque inesperado provocado pela crise decorrente da pandemia da Covid-19 e as medidas tomadas para limitar a propagação da pandemia afetaram profundamente o funcionamento de mercados e economias inteiras. Em todo o mundo, autoridades de concorrência que, na última década, vinham aplicando suas leis em um contexto de crescimento econômico estável, tiveram de ajustar suas práticas de fiscalização não apenas às dificuldades de execução de suas operações devido aos bloqueios, mas, mais importante, ajustar-se a mercados em colapso ou mercados de bens essenciais caracterizados por escassez severa, em um contexto de profunda depressão econômica com muitas empresas enfrentando severas restrições de liquidez ou ameaça de falência.

As autoridades da concorrência responderam a essas circunstâncias extraordinariamente brutais ajustando suas prioridades de aplicação, isentando certas formas de cooperação/colaboração, relaxando seus padrões de eficiências, adotando procedimentos emergenciais, permitindo auxílios estatais sob certas condições, aceitando fusões e aquisições porque o alvo havia se tornado repentinamente uma empresa falida ou em vias de insolvência e, ao mesmo tempo, com essas instituições insistindo, com as ferramentas e institutos disponíveis, que ditas mudanças não significariam um enfraquecimento ou uma alteração substancial dos princípios basilares do Direito da Concorrência que seguiam anteriormente.

A atuação do Cade, assim como a de várias outras autoridades da concorrência ao redor do mundo, também sofreu os reflexos dos problemas enfrentados por países, empresas e indivíduos ao longo de 2020, o que implicou que se buscasse formas de minimizar os principais e mais cruéis impactos da crise, interna e externamente, sempre com a premissa de que se promovesse, imediatamente, um ambiente concorrencial o mais saudável possível em todos os setores a nós submetidos, mas também ao longo da retomada econômica brasileira pensada em médio e longo prazo.

Nesse sentido, é sempre um equilíbrio tênue entre renovação e continuidade — o qual precisa ser constantemente rediscutido — que conduz quaisquer políticas públicas no Brasil ou no exterior, mas é preciso que, em situações excepcionais, se examine com ainda mais cuidado os fundamentos das intervenções estatais na economia e, entre elas, a interpretação e aplicação do Direito da Concorrência. Aquilo que deve permanecer e aquilo que deve mudar precisa ser decidido mediante a adoção de critérios técnicos, respeitando-se a expertise acumulada por indivíduos e instituições, e o remédio a ser prescrito ao doente deve curá-lo em definitivo e com o mínimo de efeitos colaterais.

A Administração Pública, no Brasil ou em outras jurisdições, deve sopesar sua interferência na esfera econômica, dado que medidas tomadas sem a devida análise ou flexibilizando excessivamente padrões de apuração consagrados podem, sob certas circunstâncias, ser ainda mais prejudiciais e, contrassenso, aprofundar o problema que visam a resolver. Não se pode tolerar, como nos recordam nossos colegas anglófonos, que se jogue o bebê fora junto com a água suja do banho.

Desse modo, é preciso que autoridades da concorrência, dentro de suas competências e capacidades e salvaguardando suas metodologias e parâmetros tradicionais de análise, tenham abertura e criatividade ímpares, mas também parcimônia e autocontenção, para encontrar soluções factíveis, proporcionais, de fácil monitoramento e de rápida implementação e, sobretudo, que enderecem, seja aonde for, as preocupações concorrenciais que objetivam legitimamente solucionar.

À vista disso, acredito que autoridades da concorrência ao redor do mundo serão ainda mais demandadas em 2021, com sua prática e seu savoir-faire, e é preciso que estejamos preparadas para contribuir ao nosso modo com a agenda econômica de nossos países: afirmando e demostrando que, também e justamente pela crise decorrente da pandemia da Covid-19, a saída é mais concorrência; que intervenções econômicas descabidas, desproporcionais ou mal planejadas teriam consequências destrutivas em mercados já tão combalidos; que tão só aprofundando algumas lições e modelos consagrados do Direito Antitruste teremos capacidade de reconstruir estruturas deterioradas pelo período prologando de baixa na atividade econômica e de, por certo, edificar novos alicerces que com a crise se impuseram como necessários e urgentes. É hora de, entre desapego e esperança, dobrar a aposta nas contribuições que o Direito da Concorrência pode certamente oportunizar à compreensão de fenômenos econômicos e, em específico, em como lidar com seus dilemas mais complexos e atuais.

Escrevo, claro, desde a experiência do Direito da Concorrência no Brasil, em especial, a partir da maneira como o Cade vem interpretando e aplicando o antitruste em território nacional nos últimos anos e décadas, mas penso que há, em âmbito global, alguma convergência das respostas e objetivos a serem buscados e construídos, em 2021, para além de 2021: com desapego, de modo a se explorar novas saídas para problemas novos; com esperança, de modo a se retomar preceitos aclamados para entraves célebres. Para que, em 2021, se vá além de 2021, e considero essencial clareza a respeito do "para além", é importante que autoridades antitruste sejam ouvidas e consultadas sobre o processo de retomada econômica e que este seja ponderado a respeito das características e predicados que podem torná-lo duradouro — e nada é mais duradouro, como nos garante a experiência antitruste, que se instituir condições estruturais e comportamentais de concorrência efetiva em amplos setores da economia.

Recuperar nossas economias e resgatar empresas e pessoas, especialmente em países em desenvolvimento — e que, naturalmente, possuem limites mais estreitos em sua capacidade de investimento e captação de recursos —, apenas será possível se bem utilizadas todas as ferramentas disponíveis e se estas forem empregadas coordenadamente. E é nisso que acho que o Direito da Concorrência, nacional e internacionalmente, pode mais contribuir se o observarmos em sua trajetória secular: o antitruste é, das políticas públicas relacionadas à economia e desde sua origem e consolidação pelo mundo afora, uma daquelas que mais preza pela estruturação técnica de um sistema de instituições e institutos orientado para eventuais incentivos ou desincentivos a condutas concorrencialmente desejáveis em cada decisão tomada ou entendimento firmado; além disso, em geral, para que uma solução funcione adequadamente, é indispensável e, talvez, incontornável, que o expediente adotado seja elaborado enfeixando uma grande série de jurisdições e órgão nacionais e internacionais em clara referência à sua tradição mediadora entre direito e economia.

O Direito da Concorrência é, assim, singular em seus procedimentos e intenções e, em igual medida, um elemento aglutinador de preocupações de várias ordens, lugares e estirpes. E, com a crise decorrente da pandemia da Covid-19, inclusive por sua natureza transnacional fundante, é ainda mais claro que o direito da concorrência precisa ter em consideração seus próprios horizontes em face de velhos e novos problemas. Entre desapego e esperança, entre lições novas e padrões herdados, o direito antitruste tem, em 2021, muito o que construir e contribuir para além de 2021.

Nesse sentido, acredito que 2021 deverá se definir por uma benéfica inflexão do Direito da Concorrência nacional e internacionalmente: para se manter atuante, na dose adequada, é preciso que as autoridades da concorrência sejam suficientemente desapagadas para que elaborem soluções as mais engenhosas e acuradas possíveis para problemas que surgiram contemporaneamente e, em especial, como decorrências imprevistas da pandemia da Covid-19, bem como que se preserve, de quaisquer interferências, a esperança e a confiança nas respostas corretas que ditas instituições tem secularmente oferecido às mais desenvolvidas economias mundiais.

O Direito da Concorrência, com seus parâmetros, procedimentos, valores e técnicas ímpares tem certamente respostas válidas que garantem que, no médio e longo prazo, a intervenção das agências antitruste tragam benefícios econômicos duradouros à maioria da população de um país e não é desejável ou legítimo que, em nome de um presente opaco e pouco previsível, o abandonemos como instrumento de mediação entre direito e economia. O horizonte delicado do Direito da Concorrência como política pública é, no Brasil como no mundo, manter-se aberto, no sentido específico dado por este texto, entre desapego e esperança, entre inovação e conservação, em sua lida com questões profundamente complexas e amplas. Seu horizonte de expectativas somente se cumpre não entregando-se completamente a nenhum deles e, em realidade, alimentando-se das oportunidades disponíveis pelo diálogo a partir de ambos.

Há, é claro, uma série ampla de casos e mercados aos quais o Direito da Concorrência, nacional e internacional, estará atento em 2021. Ficando apenas em alguns exemplos, temas ligados à economia digital, como o open banking, a entrada da tecnologia 5G em telefonia móvel no Brasil, e a aplicação da Lei nº 13.709, de 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), bem como a análise de grandes fusões e aquisições, programadas para a metade inicial de 2021, envolvendo vários setores de grande relevância da economia brasileira e a continuidade das discussões sobre critérios de aplicação de penalidades nos processos administrativos ou de conveniência e oportunidade na política bem-sucedida do Cade de acordos são somente alguns dos assuntos que estarão no radar da autarquia e, claro, de outras autoridades da concorrência. Contudo, acredito que mais que se eleger temas ou assuntos prioritários, 2021 será o ano de se firmar convicções sobre a importância da concorrência para o desenvolvimento nacional duradouro e se se assegurar, uma vez mais, a maturidade desse sistema no Brasil, o que só será possível com desapego e esperança.

E é com essa crença no futuro do Direito da Concorrência que concluo este artigo. O que o antitruste brasileiro deve esperar em 2021? A quais horizontes o antitruste brasileiro deve se voltar neste ano? Difícil dizer, mas é necessário aprender com o que já está de pé: com nossa jurisprudência global e globalizada, que resolve bem a grande maioria dos dilemas que surgem em nossa lida diária enquanto julgadores no Cade, e com pesquisadores e intérpretes nacionais e internacionais do direito da concorrência, os quais são, verdadeiramente, a memória institucional do Direito Antitruste como secularmente aplicado e, como decorrência disso, aqueles mais aptos a renová-lo e aprofundá-lo aqui ou lá fora. O que fazemos hoje tem, claro, consequências imediatas, mas é, antes de tudo, parte do legado que deixaremos e que outros, depois de nós, terão à sua disposição. E esse legado é, principalmente, de desapego, de esperança e de confiança no Direito da Concorrência. Nesse sentido, os horizontes do antitruste no Brasil são intermináveis porque sempre em movimento, sempre em redefinição; são incompletos e, por isso, perenemente passíveis de melhorias, evoluções e aprimoramentos.

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