Opinião

O uso estratégico da persecução criminal

Autor

  • Luiz Gustavo da Silva

    é pós-graduando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Justiça e Desenvolvimento pelo IDP-SP especialista em Direito Constitucional e extensão em Direito Tributário pela PUC-SP advogado e diretor de empresa privada.

7 de fevereiro de 2021, 6h04

Historicamente o processo penal incide em um dos valores mais caros e debatidos pela humanidade: a liberdade. A partir dessa ideia e dessa finalidade, a ciência do Direito e os anseios sociais buscam, em geral, limitar o poder estatal, sobretudo em relação ao Direito Penal. Para isso, na dimensão criminal, além dos limites constitucionais do Direito Penal, a doutrina tem debatido a proibição do processo criminal com fins estratégicos outros que não a repressão das condutas tidas pela lei com desvalor social e jurídico.

Neste breve artigo, o objetivo é o de compreender a fundamentação teórica-constitucional contra o uso estratégico do Direito Penal. Com o escopo de fundamentar a proibição desse uso, Lenio Streck leciona que o "MP não pode fazer agir estratégico. Se o fizer, se igualará a qualquer parte. E se se igualar, não precisará de garantias" [1]. As garantias citadas pelo autor estão dispostas no artigo 128, inciso I da CRFB de 1988. Sobre a proibição do agir estratégico, assevera o autor:

"Na Alemanha, para evitar o agir estratégico, o CPP estabelece, no artigo 160, que o MP deve trazer à lume, sempre, todas as provas que obtiver, inclusive às que favorecem à defesa. (…) Trata-se de uma blindagem criada pelo legislador contra o agir político do MP. E se não apresentar as provas, pode ser processado por prevaricação (rechtsbeugung), conforme artigo 339 do CP. Na Itália (…) a Corte Constitucional, em 1991, entendeu, por meio da sentença 88/91, que Ministério Público, em razão de seu inegável poder para conduzir a investigação criminal, é obrigado a realizar investigações (indagini) completas e buscar todos os elementos necessários para uma decisão justa, incluindo aqueles favoráveis ao acusado (favorevoli all’imputato)"  [2].

À luz de tais ensinamentos, critica-se que o uso estratégico da persecução penal não é constitucional quando orientado dessa forma, pois, ao conferir as garantias descritas alhures, o fez para os membros agirem com imparcialidade, pela mesma razão que, inclusive, se asseguram as mesmas garantias à magistratura. Uma das evidências empregadas por Lenio Streck para comprovar a proibição do agir estratégico do MP estão dispostas no artigo 54 do Estatuto de Roma, que impõe ao órgão ministerial a apresentação de todas as provas às quais tenha tido acesso, seja no interesse da acusação, da defesa, além da existência das garantias constitucionais aos membros do MP.

Assim sendo, não deve haver o agir estratégico para o MP, tampouco para o Direito Penal. O processo criminalamparado em uma finalidade estratégica, pode atrair a condição de político para si. Essa é mais uma reflexão teórica possível: o uso estratégico da persecução criminal pode tangenciar a sanção política.

Além da evidência da proibição constitucional do uso estratégico do Direito Penal, encontra-se na filosofia da ação social uma proposta para entender a ação estratégica e os motivos de se proibir uma iniciativa dessa natureza, principalmente no espaço público. No vocábulo "estratégico", a compreendemos a partir da obra de Jürgen Habermas (1981) intitulada "Teoria do Agir Comunicativo". O referido filósofo construiu uma teoria sobre o modo de agir social segundo duas perspectivas: a estratégica e a comunicativa. Nesse sentido, "podem-se discernir ações sociais segundo o seguinte critério: ou os participantes assumem uma atitude orientada pelo êxito, ou assumem uma atitude orientada pelo entendimento" (Habermas, 2016, p. 497). O modo de agir comunicativo considera o que o outro tem a falar para se buscar, verdadeiramente, uma solução.

Por outro lado, a caracterização substancial de agir estratégico ocorre em duas categorias: a dissimulação e a manipulação. Ao contrário do modo de agir comunicativo, voltado à solução e ao entendimento, no agir estratégico dissimulado e manipulador, o agente se orienta, exclusivamente, pelo êxito, em que "alguém interessado em ver cumpridos os seus propósitos cativa dissimuladamente um outro com subterfúgios da prática comunicativa (…), em favor do próprio êxito" (Habermas, 2016, p. 500).

Essa categorização habermasiana das ações indica a necessidade de se atentar para o uso estratégico da persecução criminal. O Direito Penal deve ser orientado por um modelo de ação social comunicativa, posto que, ao agir de modo estratégico, desnatura a sua deontologia constitucional fundamental de proteção coletiva.

Para nos aprofundarmos acerca das consequências de um modo de agir estratégico (orientado pelo êxito) ou comunicativo (guiado pelo entendimento), temos que a lógica de agir comunicativa se opera mediante a influência e o compromisso; ao passo que o racional aplicável ao modo agir estratégico é a do dinheiro e do poder e esse é justamente o motivo de corrupção ao considerar o que o outro tem a falar. De fato, "quem age (…); ou pode estar querendo cumprir valores (…); ou pode estar buscando satisfação de paixões e desejos. Esses objetivos utilitaristas (…) são manifestações do subjetivo" (Habermas, 2016, p. 87), elementos incompatíveis com a atuação estatal segundo o emprego da persecução criminal. A ação estratégica não tem compromisso com o público, mas, sim, se assemelha às relações privadas; uma vez asseguradas as garantias legais aos membros do Ministério Público, espera-se uma ação comprometida com a lealdade, de modo que, à luz dos ensinamentos de Jürgen Habermas, seria mais adequada a ação comunicativa, e não um agir meramente estratégico, caracterizado pela dissimulação e manipulação.

 


Referências bibliográficas
 — BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Campus Jurídico, 2015.

— HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

— HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo 2. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

— JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patricia. Direito Penal geral. São Paulo: Saraiva, 2014.

— LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão. Tradução de José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Briguiet, 1899. v. 1.

— STRECK, Lenio Luiz. Ex-procurador da “lava jato” escancara na TV: t(iv)emos lado político. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-ago-29/senso-incomum-ex-procurador-lava-jato-escancara-tv-tivemos-lado-politico>. Acesso em: 10 fev. 2020. 

— ZAFFARONI, Eugenio; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

 


[1] STRECK, Lenio Luiz. Ex-procurador da “lava jato” escancara na TV: t(iv)emos lado político. 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-ago-29/senso-incomum-ex-procurador-lava-jato-escancara-tv-tivemos-lado-politico>. Acesso em: 10 fev. 2020.

[2] Idem ao item 8.

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