Opinião

Notas sobre o silêncio que não cala

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5 de fevereiro de 2021, 18h14

Regras de comportamento para adentrar em certos espaços privados sempre existiram, a exemplo de restaurantes que barram o ingresso de clientes de tênis ou bermuda. Ainda que se possa questionar o sentido da imposição de vestuário àqueles dispostos a pagar o alto preço do menu, o certo é que não se pode acusá-la de antidemocrática, já que a exigência, pelo menos em tese, é imposta a todos, sem distinção.

Há, aqui, é verdade, uma limitação à liberdade de expressão do indivíduo, mas, considerando que esse direito, ainda que bastante elementar, não à toa é um dos primeiros a serem resguardados pelo constitucionalismo, não é absoluto, a sua limitação é tolerável, cabendo ao vasto público a liberdade de escolha entre ir àquele local e sujeitar-se às suas regras ou escolher outro, livre de tais exigências.

Note-se, todavia, que limitação não é violação. Em termos de liberdade de expressão, a primeira é possível, a segunda não. Mas como distinguir uma da outra? A resposta parece ser aquela elementar a todo estudante de Direito: "Depende da análise do caso concreto. Sempre".

O Twitter, recentemente, excluiu a conta de um dos seus usuários mais famosos, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que contabilizava 88 milhões de seguidores, diante dos possíveis riscos que as suas afirmações acerca da legitimidade da eleição de Joe Biden poderiam trazer à democracia norte-americana. A decisão do Twitter limita ou viola a liberdade de expressão de Trump [1]?

No Brasil merece destaque a decisão judicial que indeferiu o pedido do cantor Nego do Borel para impedir a sua ex-namorada Duda Reis de falar nas redes sociais acerca dos abusos que diz ter sofrido durante o relacionamento, em especial por haver decisões em sentido contrário, trazendo o questionamento se a decisão judicial protege a liberdade de expressão de Duda Reis ou expõe o racismo estrutural brasileiro [2].

A democracia permite a manifestação daqueles que, a exemplo de Trump, a atacam ao incitar a ocupação do Capitólio visando à contestação da vitória de Biden? Pode o presidente dos EUA, ou qualquer outro indivíduo, promover, por meio de palavras de alcance duvidoso, ataques direcionados às instituições democráticas, especialmente quando essas palavras resultam em atos concretos de vandalismo?

O Twitter entendeu que não, banindo, por isso, a conta do ex-presidente norte-americano, com fundamento na violação às regras de comportamento impostas pela plataforma. Houve quem interpretasse como censura, algo impróprio de ser praticado por uma empresa particular, e houve quem elogiasse a postura da empresa, sob a justificativa de que ataques à democracia exigem um posicionamento político de todos, inclusive, e, principalmente, das empresas de tecnologia, que detêm muito poder num mundo que vive hoje aquilo que Klaus Schwab cunhou chamar de Quarta Revolução Industrial.

Há, ainda, espaço numa democracia para o massacre público à reputação de alguém, com a exposição de conversas íntimas gravadas por um sem o conhecimento do outro? O Judiciário já entendeu que sim e já entendeu que não, a exemplo das recentes discussões envolvendo denúncias de relacionamentos abusivos vividos por personalidades da internet, bem como as sempre presentes discussões acerca da exigência de autorização para a publicação de biografias, não obstante o julgamento da ADI 4815, pelo Supremo Tribunal Federal, que deu interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil para reconhecer a inexigibilidade da autorização da pessoa biografada.

Tudo é político: a ação e a omissão do Twitter, o deferimento e o indeferimento do Judiciário. A política é o ato de dialogar. Dialogamos com o outro o tempo inteiro e somente por meio da conversa construímos consensos. O ato de ouvir e falar se mostra, num primeiro momento, oposto ao ato de mandar calar, mas, se pensarmos que assim como não há diálogo sem voz, não há, também, conversa com ruído, o silêncio, nessas situações, não é justamente o que permite a restauração do diálogo e da paz? Mandar calar é, portanto, em muitos casos, a única forma de dialogar.

O Twitter está aqui para regrar qual sociedade? Ao que parece, aquela que segue as suas regras institucionais. E o Judiciário? Ao que deveria, aquela regida por uma Constituição. Nenhuma regra institucional é maior do que a Constituição do Estado, o que significa dizer que qualquer usuário que se sinta prejudicado pelas políticas de uso de determinada plataforma digital pode buscar a tutela do Judiciário ou mesmo os serviços de algum outro concorrente, visto que a nossa economia liberal construída a partir da lógica do mercado competitivo traz, em regra, sempre outras opções de meios àquele fim desejado.

Jack Dorsey, CEO do Twitter, age como George Bush em 1993, quando escreveu uma carta a Bill Clinton desejando-lhe sorte e dizendo que a partir daquele momento ele era o novo presidente dos EUA e o sucesso do país estava atrelado ao bom desempenho de Clinton [3]. Dorsey, ao permitir o cancelamento da conta de Trump, diz mais ou menos a mesma coisa, revelando que a insensatez do presidente acarreta em atos insensatos dos seus eleitores, que devem ser interrompidos em nome do bem-estar de todos.

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt [4] afirmam que o futuro da democracia está ligado à busca de "uma nova maneira de lidar com a polarização"; o problema é quando essa polarização está presente dentro das instituições democráticas. A Presidência da República não é o palco de convocação dos manifestantes contrários ao Congresso ou à Suprema Corte, enquanto o Judiciário não é o local de definição de políticas públicas e o Legislativo, por sua vez, não é a área de barragem dos planos de governo em busca de interesses próprios.

Habermas diz que nenhuma solução proposta está dissociada do tempo histórico em que o problema se apresenta. Vivemos um momento de crise das democracias representativas liberais e desenvolvimento de tecnologias disruptivas, o que significa dizer que aquilo chamado por Manuel Castells de "ruptura da relação entre governantes e governados" [5], em conjunto com o sentimento antiestablishment, guiam, hoje, os discursos polarizados fortalecidos pela era da pós-verdade e fake news que povoa a internet e o mundo.

A liberdade e a igualdade estão intimamente ligadas à democracia! Os homens são livres porque podem falar o que querem ou são iguais porque não podem? George Orwell, em "Revolução dos Bichos" fala quje "todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros", revelando, em tempos de limitação à liberdade de expressão, que todos podemos falar, ser calados e mandar calar, mas alguns podem mais que os outros.

O poder hoje, dessa forma, não está tanto em falar o que se deseja, mas em conseguir silenciar todos os ruídos que nos impedem de assimilar verdadeiramente os erros e os acertos jurídicos e políticos de nossas decisões.

 


[4] LEVITSKY, Steven, ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[5] CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

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