Opinião

O 'caso Gamestop' e o Direito brasileiro

Autor

  • Marcello Miller

    é advogado ex-procurador da República ex-promotor de Justiça do Distrito Federal ex-diplomata Bacharel em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

5 de fevereiro de 2021, 13h40

Introdução
A última semana de janeiro de 2021 assistiu a movimento inédito no mercado de capitais norte-americano: numerosa comunidade de pequenos investidores, participantes do fórum virtual WallStreetBets, integrado à rede social Reddit, promoveu nada menos que um "short-squeeze popular" ao adquirir ações da empresa Gamestop. Alguns grandes fundos de ações do mercado acionário dos Estados Unidos, que previam tendência de baixa do ativo e tinham operações de short selling [1] dele em curso, experimentaram graves prejuízos para encerrá-las [2].

A cotação da ação já experimentava altas expressivas desde meados do ano passado: 84% de agosto a setembro, 280% de agosto a dezembro e 842% até 20 de janeiro, quando ainda não havia alta gráfica vertical.

O fórum WallStreetBets conta com cerca seis milhões de participantes. Estima-se que o número de pequenos investidores que adquiriram ações e opções de compra de ações da Gamestop esteja igualmente na casa dos milhões. Como vários relataram, as intenções subjacentes às aquisições foram multifárias: tanto houve fim de obter lucro quanto de causar prejuízo a investidores institucionais, não raro descritos nesses relatos como especuladores selvagens que receberam tratamento leniente das autoridades na crise de 2008.

Ainda não está perfeitamente esclarecida a mecânica de interação entre os pequenos investidores nem se houve ação concertada. O que se sabe até aqui é que, em meados de 2019, um pequeno investidor, de nome Keith Gill, postou no fórum WallStreetBets ter investido US$ 53 mil em ações da Gamestop e, na sequência, passou a defender a tese de seu investimento em múltiplas postagens e no YouTube [3].

Desprezada a princípio, a tese passou a ser seguida por número cada vez maior de investidores nos últimos dois anos. Em 26/1/2020, quando a cotação das ações da Gamestop já era de US$ 76.79, Elon Musk, controlador da Tesla e da SpaceX e cultuado como visionário por vasto número de investidores em todo o mundo, fez postagem no Twitter ao mesmo tempo enigmática e entusiástica sobre o ativo [4], que experimentou, então, alta gráfica vertical significativa.

Até o último dia 29, Keith Gill alegava manter suas posições na Gamestop.

A reação imediata de representantes dos grandes fundos e investidores institucionais, inclusive no Brasil, foi, essencialmente, contrafeita ao movimento, inclusive com referência à possibilidade de caracterização de ilícito.

Este artigo pretende analisar a hipótese de ilícito, caso conduta semelhante viesse a ocorrer no Brasil, tanto à luz do Direito Administrativo sancionador quanto do Direito Penal.

1) O tipo administrativo sancionador e o tipo penal
O tipo administrativo sancionador de manipulação de mercado está previsto na Instrução CVM nº 8/79. Esse normativo consubstancia o exercício, pela CVM, da competência que lhe atribuiu o artigo 18, II, "b", da Lei 6.385/76, que ainda está, nesse tópico, em sua redação originária:

"Artigo 18  Compete à Comissão de Valores Mobiliários:
(…)
II
definir:
(…)
b) a configuração de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, ou de manipulação de preço; operações fraudulentas e práticas não equitativas na distribuição ou intermediação de valores".

A Instrução CVM nº 8/79 define, então, cada uma dessas condutas, veda-as e as classifica como falta grave sujeita às sanções do artigo da Lei 6.385/76. O preceitos que tipifica a manipulação de preços está no respectivo item II, "b":

"I É vedada aos administradores e acionistas de companhias abertas, aos intermediários e aos demais participantes do mercado de valores mobiliários, a criação de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários, a manipulação de preço, a realização de operações fraudulentas e o uso de práticas não eqüitativas.
II
Para os efeitos desta Instrução conceitua-se como:
(…)
b) manipulação de preços no mercado de valores mobiliários, a utilização de qualquer processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo terceiros à sua compra e venda;
(…)
III
Considera-se falta grave passível de aplicação das penalidades previstas no art. 11, Incisos I a VI da LEI Nº 6.385/76, o descumprimento das disposições constantes desta Instrução".

Por sua vez, o tipo penal encontra-se no artigo 27-C da Lei 6.385/76. Em sua redação original, dada pela Lei 10.303/2001, estatuía ele:

"Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas, com a finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros, no mercado de balcão ou no mercado de balcão organizado, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros:
Pena
reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime".

Na redação atual, dada pela Lei 13.506/2017, ele assim dispõe:

"Artigo 27-C  Realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros:
Pena
reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime".

A redação atual torna mais objetiva a adequação típica. Na anterior, havia dois elementos subjetivos do injusto, um do quais — a finalidade de alterar o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários de bolsa e balcão — integrado por elemento normativo de alto grau de indeterminação. Na atual, permanece o especial fim de agir consistente obter vantagem indevida, ou lucro, ou causar dano a outrem, mas o outro elemento subjetivo, relativo à finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados, dá lugar à qualificação funcional da própria operação, que será típica se destinada a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário.

Como se vê, o tipo administrativo e o tipo penal são apenas parcialmente sobrepostos: por um lado, o tipo penal exige dissimulação ou fraude; por outro lado, o tipo administrativo exige resultado naturalístico, consistente na compra e venda do valor mobiliário por terceiros, induzida pelo processo ou artifício, o que não ocorre com o tipo penal. Não é coerente nem razoável haver segmento do tipo administrativo que torne a subsunção mais difícil que no tipo penal: se o regulador, com sua expertise técnica e proximidade do problema, entende que a conduta só se torna relevante quando produz resultado naturalístico (a compra e venda do valor mobiliário por terceiros), o legislador, ao dispensar esse elemento, acabou por criar tipo penal que vai além do necessário para a adequada tutela do regular funcionamento do mercado de valores mobiliários.

Note-se que nenhum dos dois tipos limita seus núcleos a operações de mercado. O tipo administrativo fala em "processo" e "artifício", enquanto o tipo penal menciona "outras manobras fraudulentas". Ambos alcançam, assim, condutas laterais ao mercado, mas voltadas para influir em seus movimentos.

2) O caso à luz do Direito Administrativo sancionador
Está claro que a acentuada alta da cotação das ações da Gamestop constituiu efeito das aquisições efetuadas por pequenos investidores, a maioria dos quais, ao que parece, participantes do fórum WallStreetBets. Embora o ânimo subjetivo desses investidores deva ter variado conforme o grau individual de conhecimento do mercado de capitais e o momento em que cada qual operou, é provável que, ao menos a partir de meados de janeiro de 2021, a vasta maioria deles soubesse que: 1) poderia, ao menos no curto prazo, auferir lucro com a operação; 2) estava causando algum tipo de prejuízo a grandes investidores; e 3) esse prejuízo decorria de operações em curso tituladas por esses investidores que dependiam da queda da cotação do ativo para serem lucrativas.

Como visto, o movimento de alta do ativo intensificou-se muito nos últimos dias, mas já era expressivo antes, havendo alcançado 280% em quatro meses. Os indícios surgidos até aqui não sugerem concertação, e sim comportamento de manada da comunidade virtual, incentivado inicialmente pela tese de um investidor isolado e depois pelo próprio comportamento da ação.

Não parece cabível, portanto, ao menos à primeira vista, imputar à vasta maioria dos investidores que adquiriram ativos da companhia haver usado de processo ou artifício destinado a elevar a respectiva cotação, menos ainda induzido a outras operações. Na visão desses investidores, suas pequenas operações terão sido consequência — e não causa — da alta da cotação; e eles não se terão visto como indutores de operações, e, sim, como induzidos a efetuar as suas.

A propósito, faz-se sentir, na espécie, a falta de teoria mais apurada sobre o tipo subjetivo no Direito Administrativo sancionador, que geralmente alude, sem maior elaboração, a "dolo ou culpa", contentando-se em afastar a responsabilidade objetiva. O tipo em exame, como fala em "destinação", é sugestivo de perfazer-se apenas por dolo direto, não se afigurando permeável à culpa.

É preciso, de resto, examinar mais de perto as condutas de Keith Gill e Elon Musk.

Se ficar provado que Gill acreditava em sua tese de investimento e a estava defendendo e propagando, suas postagens nesse sentido atrairão, quando menos, a causa de justificação do exercício regular de direito: a qualquer pessoa é dado defender, em qualquer fórum, o acerto de uma tese. Se, porém, surgir prova de que ele não acreditava no que dizia, fará sentido concluir que suas intervenções foram artificiosas e voltadas para alterar a cotação do ativo.

Dado relevante está em que Gill alega ter mantido suas posições mesmo com a queda expressiva da cotação de 28 de janeiro (a ação fechou em US$ 193,60, contra US$ 347,51 no dia anterior). Se for verdade, esse comportamento constitui indício negativo de fraude.

Quanto a Musk, parece ter havido relação de causalidade entre sua postagem e a alta gráfica vertical da ação. E é provável, pelo lugar que ocupa como empresário e a influência que projeta nos mercados mundiais, que ele soubesse que sua postagem induziria investidores a adquiri-la.

Em seu favor, Musk tem o caráter lacônico de sua postagem, consistente em uma única palavra, que tanto poderia revelar incentivo a investimento quanto simples pasmo diante do que já era uma alta muito expressiva da cotação. De todo modo, ainda que o tipo administrativo sancionador não exija que o participante do mercado estivesse posicionado no ativo, impende apurar se Musk tinha posições na Gamestop e, em caso afirmativo, de que natureza são ou eram.

Se o tipo administrativo contemplasse a alteração da cotação não apenas como finalidade de determinado processo ou artifício, mas também como seu efeito, almejado (dolo direto), aceito (dolo eventual) ou ao menos previsto (culpa consciente) pelo agente, a conduta de Elon Musk seria indiscutivelmente passível de subsunção nele. Mas não é essa a estrutura da norma: a alteração da cotação está posta, no tipo, como finalidade — e não efeito — da conduta.

3) O caso à luz do Direito Penal
O conceito-chave para a compreensão do tipo penal, como visto, é a fraude, de que a simulação é espécie. A fraude envolve não só a intenção de obter vantagem em desfavor de outrem, mas também a percepção de que ela é indevida e, principalmente, o componente do engodo, de falsa representação de fatos e intenções.

É pouco provável, nesse sentido, que os pequenos investidores que adquiriram ativos da Gamestop estivessem praticando alguma operação dissimulada ou manobra fraudulenta. Ao que tudo indica, as operações não envolveram dissimulação de titularidade, e sua intenção essencial era mesmo a aquisição do ativo. Essas operações aparentemente não envolveram, de resto, manipulação concertada de preços, que poderia apurar-se caso se provasse, por exemplo, que os investidores se organizavam para emitir lotes simultâneos e sucessivos de ordens de compra e que elas eram emitidas com preços sistematicamente superiores à última cotação.

Mesmo que alguns ou vários desses pequenos investidores tenham investido com a intenção adicional de causar prejuízo a investidores institucionais, não há, aí, o elemento do engodo: as aquisições foram efetuadas com a finalidade precípua a elas inerente, que era obter a titularidade do ativo.

Quanto a Keith Gill, a existência de fraude dependeria de demonstração de que ele não acreditava no conteúdo de suas intervenções. Haveria, nesse caso, manobra fraudulenta passível de subsunção típica.

Já quanto a Elon Musk, o caráter lacônico de sua postagem tornaria praticamente inviável cogitar de fraude.

4) Conclusão
Os tipos administrativo e penal brasileiros alcançariam condutas verdadeiramente manipuladoras ou fraudulentas (e.g. pump-and-dump) subjacentes à alta vertical de ativo negociado em bolsa. Mas não alcançariam a conduta de pequenos investidores que adquiriram o ativo em provável comportamento de manada, mesmo que imbuídos da preterfinalidade de causar prejuízo a investidores institucionais.

É positivo que esses tipos sejam capazes de reprimir a quem induza movimentos no mercado com fins escusos, mas que, ao mesmo tempo, permitam filtrar a conduta de investidores que tenham tido impacto não por agirem concertadamente, e, sim, por seguirem, com o peso de seu número, uma tese de investimento.

 


[1] Para fazer short selling, o operador aluga ações de determinada companhia, imediatamente vende as ações que alugou, depois recompra a quantidade de ações que vendeu e finalmente as devolve ao locador. Se o preço das ações cair entre a venda e e a recompra o suficiente para cobrir os custos do aluguel, a operação srá será lucrativa. Se o preço das ações subir, será deficitária.

[2] Quando há um forte movimento de alta na cotação de uma ação com a qual estão em curso várias operações de short selling, os titulares dessas ações tendem a antecipar o fechamento da operação, adquirindo desde logo as ações necessárias para isso (antes que subam ainda mais) e contribuindo, assim, para a alta do preço – é o que se chama de short squeeze, ou, em tradução livre, asfixia do short.

[4] A postagem de Elon Musk limitou-se ao temo Gamestonk, seguido de dois pontos de exclamação e o link do fórum WallStreetBets. Gamestonké um trocadilho do nome da empresa – Gamestop – com a gíria stonk, corruptela da palavra stock, alusiva a ações.

Autores

  • é advogado, ex-procurador da República, ex-promotor de Justiça do Distrito Federal e ex-diplomata. Bacharel em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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