Opinião

Novas polêmicas e desafios na privacidade em 2021

Autores

3 de fevereiro de 2021, 6h36

O ano de 2021 já começou com polêmicas envolvendo privacidade e proteção de dados. No começo de janeiro, o WhatsApp anunciou uma mudança em sua política de privacidade estabelecendo, entre outros pontos, a possibilidade de compartilhamento de dados coletados pela plataforma com o Facebook. Os usuários do WhatsApp devem aceitar a nova política até o dia 8 de fevereiro e aqueles que discordarem das novas regras deverão deixar de utilizar o serviço.

Segundo o WhatsApp, a empresa envia aos servidores do Facebook o número de telefone e outros dados que constem no registro (como o nome); informações sobre o telefone, incluindo a marca, modelo e a empresa de telefonia móvel; o número de IP, que indica a localização da conexão à internet; e qualquer pagamento ou transação financeira realizada através do WhatsApp. Também podem ser compartilhados números de contatos, atualizações de status, dados sobre a atividade do usuário no aplicativo (como tempo de uso ou o momento em que ele está online) e foto de perfil, entre outros dados.

De acordo com a política, as finalidades do compartilhamento de tais dados seriam: 1) aprimorar os sistemas de infraestrutura; 2) entender como os serviços do WhatsApp e do Facebook são utilizados; 3) promover proteção, segurança e integridade para todos os produtos das empresas do Facebook; 4) aprimorar os serviços das empresas do Facebook e a experiência do usuário (exemplo: sugestões de conexões de grupos ou amigos, ou de conteúdo interessante; personalização de recursos e de conteúdo; ajuda para realizar compras ou transações; e exibição de ofertas e anúncios relevantes sobre os produtos das empresas do Facebook); e 5) fornecer integrações que possibilitem a conexão de experiências no WhatsApp com outros produtos das empresas do Facebook (exemplo: permitir o uso da conta do Facebook Pay para realizar pagamentos no WhatsApp).

A mudança na política de privacidade ocorre em um momento em que, devido ao crescimento da demanda por serviços digitais em razão do isolamento social e da pandemia da Covid-19, o Facebook percebeu que o WhatsApp pode ser um forte canal de vendas. Nesse sentido, vem buscando intensificar sua integração com o WhatsApp para impulsionar o uso de contas corporativas como canal de compras, pagamentos e atendimento ao cliente. O objetivo é possibilitar, no futuro, a venda de serviços de gerenciamento de conversas com consumidores a empresas que tenham um grande volume de mensagens.

Apesar da atualização na política de privacidade, na prática não houve mudança na forma em que os dados de usuários do WhatsApp são compartilhados com o Facebook. Isso porque tal compartilhamento de dados já acontece desde agosto 2016, quando o movimento de integração entre as plataformas teve início. A atualização do texto ocorreu, em verdade, para acomodar as novas práticas e funcionalidades voltadas ao WhatsApp Business, o que já vinha sendo anunciado desde outubro de 2020.

De igual modo, não houve alteração na criptografia de ponta a ponta aplicada nas mensagens trocadas por meio do aplicativo: o WhatsApp continua sem conseguir ler as mensagens privadas de seus usuários ou ouvir suas chamadas, de forma que tais informações também não são compartilhadas com o Facebook. Nas contas corporativas, no entanto, o WhatsApp não considera que exista uma criptografia de ponta a ponta, já que as empresas podem disponibilizar esse conteúdo para terceiros, como serviços de gerenciamento de mensagens.

De modo geral, a atualização da política de privacidade demonstra a atuação do WhatsApp no fornecimento de informações aos seus usuários sobre suas práticas no uso de dados pessoais, em atendimento, inclusive, ao princípio da transparência, fundamento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Contudo, a divulgação das informações foi recebida com desconfiança por uma parte dos usuários do aplicativo.

Desde o anúncio da nova versão da política de privacidade, usuários do WhatsApp vêm questionando o compartilhamento de seus dados com o Facebook. Muitos nem sequer sabiam que tal compartilhamento era realizado, e a atualização da política jogou luz sobre essa prática, trazendo reflexões, inclusive, sobre sua legalidade, especialmente porque os usuários não podem se opor a ela se quiserem continuar usando o aplicativo de mensagens.

Por outro lado, há quem diga se tratar de uma "tempestade em copo d’água", na medida em que não houve alteração real na forma em que os dados são compartilhados com o Facebook, mas tão somente a divulgação de informações mais claras sobre o compartilhamento, o que deveria ser louvável, por representar maior transparência.

De todo modo, os questionamentos acerca do WhatsApp ajudaram a impulsionar a busca por aplicativos alternativos ao mensageiro, que supostamente seriam menos invasivos à privacidade dos usuários. Nesse sentido, aumentou consideravelmente a procura pelos aplicativos concorrentes Telegram e Signal, que, na última semana, passaram a liderar o número de downloads na App Store e na Play Store. Até mesmo o excêntrico bilionário Elon Musk entrou na polêmica e sugeriu o uso do Signal.

A controvérsia em torno do WhatsApp dá a tônica do que vem sendo o debate popular sobre a integridade das práticas adotadas por aplicativos e plataformas digitais no uso de dados pessoais de seus usuários. Quem não se lembra do debate que envolveu o FaceApp?

Em julho de 2019, após a viralização do aplicativo — que permitia a edição de fotos para demonstrar como as pessoas se pareceriam quando fossem mais velhas —, uma série de publicações de tom alarmista passou a questionar as práticas do app no uso de dados pessoais dos usuários. Nesse sentido, foi criado o boato — desmentido pela empresa e por pesquisadores — de que o FaceApp "roubava" dados pessoais. A partir de então, criou-se um ambiente de desconfiança em torno do aplicativo, impulsionado por teorias da conspiração movidas pelo fato de a plataforma ser administrada por uma empresa russa. O que acabou não sendo difundido no debate popular, mas foi abordado por publicações especializadas, foi o fato de que as práticas do FaceApp são muito semelhantes a práticas de aplicativos populares utilizados diariamente e que não são questionados, como Facebook, TikTok e apps do Google.

Após perder força devido à polêmica, o FaceApp viralizou novamente em meados de 2020, dessa vez com a funcionalidade de editar fotos para demonstrar como as pessoas se pareceriam se fossem do sexo oposto. Novos questionamentos sobre o uso de dados pessoais surgiram, e o aplicativo perdeu popularidade novamente.

Os questionamentos acerca das práticas adotadas pelas empresas de tecnologia no uso de dados pessoais devem se tornar cada vez mais frequentes à medida em que as pessoas passarem a se conscientizar sobre a importância do tema. A LGPD objetiva empoderar o indivíduo no controle de seus dados pessoais, ao mesmo tempo em que estabelece às empresas o dever de transparência em relação a suas práticas. Dessa forma, o escrutínio e o debate público sobre a conduta de empresas de tecnologia são não apenas importantes, mas necessários à construção de uma cultura de privacidade e proteção de dados no Brasil.

Os casos do FaceApp e do WhatsApp são apenas exemplos do que será visto no futuro. Com a conscientização em torno da importância da proteção de dados, é provável que comportamentos até então tidos como normais — simplesmente porque não havia escrutínio público sobre eles — passem a ser questionados. Esse cenário coloca as empresas em um dilema: à medida que seus usuários conhecem suas práticas, aumenta o risco de questionamentos sobre elas. Em outras palavras, a transparência pode acabar divulgando atitudes que podem vir a ser reprovadas pelo público, desincentivando as empresas a serem transparentes.

Apesar disso, transparência não é uma escolha, mas, sim, um dever imposto pela LGPD como forma de proteger os indivíduos. Empresas que tratam dados pessoais devem aprimorar constantemente suas práticas. Assim, na gestão de programas de privacidade é necessário que se busquem padrões de excelência, visando concretizar os princípios da LGPD e evitar danos reputacionais decorrentes de práticas que possam vir a ser consideradas irregulares. Para tanto, é necessário acompanhar de perto os debates em torno do tema e, sobretudo, eventuais manifestações ou orientações da Autoridade Nacional de Proteção de Dados ou de órgãos de outros países.

Nos próximos anos, novas "polêmicas" devem surgir. Contudo, o debate público sobre o tema deve ser pautado em informações claras, técnicas e acuradas. Quando a discussão caminha para o alarmismo, ela causa desinformação, desconfiança por parte dos usuários e um ambiente de negócios instável, além de alimentar possíveis teorias da conspiração.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!