Opinião

Cessão de precatório: documento público ou privado?

Autor

  • Guilherme Cardoso Leite

    é advogado sócio do escritório Machado Leite e Bueno Advogados mestre em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

16 de dezembro de 2021, 6h04

Em recente posicionamento, a 1ª Turma STJ entendeu que deve ser respeitada a liberdade de forma para a cessão de direitos creditórios em precatórios, ressalvada a existência de norma local que imponha expressamente o dever de observação a alguma formalidade específica, como é o caso da escritura pública para viabilizar compensação tributária no Distrito Federal.

Contextualização

Considere o seguinte caso hipotético: a Fazenda Pública do Distrito Federal foi condenada a pagar a Tício uma indenização no valor de R$ 400 mil, de modo que a obrigação de pagar ocorrerá via precatório. Tício tem oportunidade de ceder os créditos para um credor seu, Tosco, e o faz por meio de instrumento particular de cessão de crédito.

Ao pretender habilitar-se para receber o crédito via precatório, Tosco teve indeferido o seu pedido. O entendimento do magistrado processante da conciliação de precatórios no âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal é o de que seria indispensável, para a cessão dos créditos de precatório, escritura pública de cessão de direitos creditícios.

Como, afinal, como deve ocorrer a cessão de créditos de precatórios: por documento público ou por instrumento privado?

Cessão do direito creditório e liberdade de forma
As reflexões acerca dos precatórios conduzem o intérprete por uma senda deveras complexa. De um lado, a matriz das previsões normativas sobre o regime dos precatórios situa-se na Constituição Federal; de outro lado, as condenações estabelecidas judicialmente decorrem da prestação de uma tutela jurisdicional em um processo judicial civil; finalmente, a concepção normativa de crédito situa-se no Direito Civil. Ou seja, um só tema que faz confluir para o mesmo esforço interpretativo ferramentas de índole constitucional, civil e processual civil.

O artigo 100 da Constituição Federal estabelece que os pagamentos devidos pelas Fazenda Públicas federal, estaduais, distrital e municipais em decorrência de condenação judicial ocorrerão via precatórios. A Fazenda Pública não se submete, pois, ao regime sincrético puro do cumprimento de sentença. Ao contrário, as condenações impostas judicialmente à Fazenda Pública são anualmente incluídas no respectivo orçamento e ficam sob gestão, para efetivação do cumprimento, do presidente do tribunal que proferir a decisão exequenda.

Não há na Constituição Federal, ou mesmo em suas disposições transitórias (ADCT), previsão alguma a regulamentar a cessão dos créditos incluídos em precatório. Com efeito, a matéria é civil, pois relativa a obrigação de pagar (ou de entregar coisa que é dinheiro) e é tratada de forma destacada pela legislação infraconstitucional.

Nesse sentido, o artigo 107 do Código Civil (CC) preconiza o que se entende, no Direito Civil, como princípio da liberdade de forma: a validade da declaração de vontade não depende de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. A não observância à forma prescrita em lei é causa mesma de nulidade do negócio jurídico (artigo 166 do CC). Negócios jurídicos que não possuem roteiro legal têm ampla margem à manifestação da vontade; os que o possuem devem segui-lo, sob pena de nulidade.

No que se refere à forma como deve ocorrer a cessão de créditos, ou de direitos creditórios, o artigo 286 do CC dispõe que "o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação". Estaria essa disposição normativa a impor forma prescrita em lei para a cessão dos direitos creditórios inseridos em precatório? Quer parecer que não. Como dito, a Constituição Federal não traça requisitos formais à operacionalização da cessão dos créditos de precatórios, nem tampouco o faz o CC. Se não há tais requisitos, há de se respeitar a liberdade de forma e os efeitos decorrentes das manifestações de vontade, independentemente de formalidade.

Por seu turno, a norma do artigo 288 CC estabelece ser "ineficaz, em relação a terceiros, a transmissão de um crédito, se não celebrar-se mediante instrumento público, ou instrumento particular revestido das solenidades do § 1º do artigo 654"  indicação do lugar onde a cessão foi celebrada, a qualificação do cedente e do cessionário, a data e o objeto da cessão. A norma erige um caminho com opções: instrumento público ou instrumento particular que contenha as informações do §1º do artigo 654 do CC. Como se vê, mesmo para produzir efeitos em relação a terceiros, o CC deixa aberta a possibilidade de cessão de crédito independentemente da formalização em documento público.

Tem-se, assim, que: 1) a liberdade de forma prestigia a livre manifestação de vontade, salvo se houver expressa forma prescrita em lei; 2) a cessão de direito creditório não possui forma prescrita em lei e pode produzir efeitos entre as partes contratantes e em relação a terceiro quando operacionalizada em escritura pública ou em instrumento particular que observe os requisitos do §1º do artigo 654 do CC; e 3) a inexistência de forma expressa em lei para a cessão de direitos creditórios em precatórios viabiliza a realização do negócio jurídico também por instrumento particular.

Ressalva quanto à existência de norma local que estabeleça a expressamente a forma
Enfim, o que o STJ entende: é viável cessão de crédito por instrumento particular ou deve, necessariamente, ocorrer por escritura pública? Como regra, sim, salvo se existente norma local que estabeleça expressa forma a ser atendida para a manifestação de vontade.

No julgamento do RMS 67.005/DF, da qualificada relatoria do ministro Sérgio Kukina, o STJ confirmou a orientação jurisprudencial de que "a forma do negócio jurídico é o modo pelo qual a vontade é exteriorizada. No ordenamento jurídico pátrio, vigora o princípio da liberdade de forma (artigo 107 do CC/02). Isto é, salvo quando a lei requerer expressamente forma especial, a declaração de vontade pode operar de forma expressa, tácita ou mesmo pelo silêncio (artigo111 do CC/02), sendo certo, ademais, que "a exigência legal de forma especial é questão atinente ao plano da validade do negócio (artigo 166, IV, do CC/02)". Daí dizer que "a obrigatoriedade de que a cessão de créditos se dê por escritura pública representa uma exceção à regra geral estabelecida no art. 107 do Código Civil" [1] .

Uma substancial ressalva foi consignada: a liberdade de forma não subsiste quando houver norma local que estabeleça expressamente a forma a ser observada para a celebração do negócio jurídico. No Distrito Federal, por exemplo, o artigo 4º, inciso V, da Lei Distrital 52/1997 exige que os precatórios oferecidos para compensação tributária devem ser acompanhados de prova da titularidade. Nesses casos, dispõe a norma distrital que, quando o crédito cedido for de natureza tributária, não há liberdade de forma, de modo que "o comprovante da cessão (é feito) por instrumento público". Nos demais casos, preserva-se a liberdade de forma, como decorrência do adágio latino exceptiones sunt strictissimoe interpretationis (interpretam-se as exceções estritissimamente).

Logo, o entendimento mais recente do STJ, embora turmário, corrobora com a orientação que tem sido estabelecida em outros órgãos fracionados da corte: é livre a forma de realização da cessão do direito creditório em precatório, que pode ser celebrado tanto em escritura pública quanto em instrumento privado, ressalvados os limites do artigo 288 do CC e a existência de norma local que, expressamente, disponha sobre a forma de comprovação da cessão do crédito.

Conclusão
Respeitada a liberdade de forma, é possível celebrar negócio jurídico para a cessão de crédito de precatório por meio de instrumento particular ou de escritura pública. O caminho é de livre escolha e possui aptidão para produzir efeitos inclusive perante terceiros. Essa regra é obstada apenas se existente norma local que preveja expressamente a forma como a manifestação de vontade deve ser formalizada.

De volta ao exemplo da contextualização inicial, é possível concluir que a cessão de crédito de precatório operacionalizada entre Tício e Tosco, realizada em instrumento particular, é válida e possui aptidão para produzir efeitos na relação privada entre eles e perante terceiros.

Considerada a hipotética condenação da Fazenda Pública do Distrito Federal, que é devedora dos créditos cedidos em precatório, Tosco somente não poderia utilizar-se dos créditos cedidos via instrumento particular para o fim de compensação tributária, hipótese em que, por força de lei distrital, a prova da titularidade do direito creditório somente é admitida por escritura pública. Para utilização diversa da compensação tributária, não há óbice.

 


[1] Excertos da ementa do RMS 67005/DF, STJ. Julgado veiculado no Informativo 720.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Machado, Leite e Bueno Advogados, mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Direito Tributário pelo IBET.

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