Opinião

A nulidade absoluta do procedimento por vício na distribuição

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16 de dezembro de 2021, 6h33

O Código de Processo Civil vigente, nos artigos 284, 285 e 288 (1) — replicando os artigos 251, 252 e 255 do revogado (2)  —, conferiu proteção normativa infraconstitucional aos princípios do juiz natural, do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, estampados no artigo 5º, XXXVII, LIII, LIV e LV, da Constituição Federal (3).

Segundo esses dispositivos, todos os processos estão sujeitos a registro e "onde houver mais de um juiz", "a distribuição, que poderá ser eletrônica, será alternada e aleatória, obedecendo-se rigorosa igualdade", tornando "a competência cumulativa de todos em competência exclusiva de só um dentre todos" (4).

Trata-se de medida que visa a concretizar o princípio do juiz natural, um dos pilares em que se funda o sistema processual brasileiro e o próprio Estado democrático de Direito, ao garantir que, para cada ação, sempre haverá um único juízo competente, prévia e objetivamente definido em lei.

Efetivamente, essas normas objetivam evitar, de um lado, a instauração de tribunais de exceção; e impedir, de outro, que o jurisdicionado possa escolher, entre os diversos juízos abstratamente competentes, aquele que lhe seja mais conveniente. Sob esse aspecto, tal garantia se presta a assegurar aos jurisdicionados, sobretudo, a imparcialidade das decisões, através de procedimentos objetivos, que impossibilitem o conhecimento prévio do julgador pelas partes.

Como leciona a doutrina, isso "significa que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem de ser imparcial" (5) .

Nesse sentido, a inobservância às regras de distribuição fere o juiz natural e gera, portanto, a incompetência absoluta, que pode ser suscitada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, por constituir ofensa a direito fundamental.

"Somente se pode, em tal conjuntura, falar em incompetência absoluta, já que o afastamento do juiz natural ou o empecilho de acesso a ele só somente pode ser qualificado como agressão a uma garantia constitucional" (6). É dizer, "se tão condenável expediente é acobertado pelo julgador, a sua decisão, por desrespeitadora da garantia, reveste-se como vulneradora de preceito constitucional, o que o torna absolutamente incompetente, dada a matriz constitucional do princípio" (7).

"As regras de distribuição servem exatamente para fazer valer a garantia do juiz natural: estabelecem-se critérios prévios, objetivos, gerais e aleatórios para a identificação do juízo que será o responsável pela causa. É por isso que o desrespeito às regras da distribuição por dependência implica incompetência absoluta. Não se desconhecem as tentativas de “escolha” do juiz, quer com a postulação em períodos de recesso ou em plantões, com a ciência de qual tal juiz será o responsável pela decisão, quer com a burla ao sistema informatizado de distribuição. (…)
Um dos requisitos para que se tenha um juiz natural é a prévia fixação de regras para a divisão interna de funções e atribuições nos locais onde houver mais de um juízo abstratamente previsto como competente. Concretiza-se, assim, a competência, de forma equânime, sem que se defira às partes a possibilidade de optar pelo órgão julgador de sua preferência.
As regras de distribuição são cogentes. São, portanto, regras de competência absoluta. (…)
Assim, fraude à distribuição significa violação ao princípio do juiz natural (artigo 5º, LIII e LIV da CF) e às normas relativas à distribuição; por consequência, levará à incompetência absoluta" (8).

A jurisprudência desde há muito caminha no mesmo sentido (9), sendo por tudo exemplar um acórdão exarado sob a relatoria do ministro Raul Araújo, do Superior Tribunal de Justiça, quando ainda desembargador no Tribunal de Justiça do Ceará:

"PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. APREENSÃO DE VEÍCULO E INSCRIÇÃO DO DEVEDOR EM CADASTRO DE INADIMPLENTES, EM AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE VEÍCULO, MOVIDA POR INSTITUIÇÃO FINANCEIRA EM MOMENTO POSTERIOR À CIÊNCIA DE DECISÃO LIMINAR PROFERIDA EM ANTERIOR AÇÃO REVISIONAL NA QUAL FORA ASSEGURADA, EM FAVOR DO CONSUMIDOR, A POSSE DO BEM LITIGIOSO. AUSÊNCIA DE CONEXÃO OU DE CONTINÊNCIA ENTRE A AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E AQUELAS AÇÕES REVISIONAL E DE BUSCA E APREENSÃO. NÃO INCIDÊNCIA DE QUALQUER DAS HIPÓTESES CONSTANTES NO ARTIGO 253 DO CPC. DISTRIBUIÇÃO PORDEPENDÊNCIA. DESCABIMENTO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ARTIGO 5º, LIV) E SEU CONSECTÁRIO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL (CF, ARTIGO 5º, XXXVII E LIII). NULIDADE ABSOLUTA, COGNOCÍVEL A QUALQUER TEMPO E GRAU DE JURISDIÇÃO. CPC, ARTIGO 113. FATO QUE ENSEJA O RECONHECIMENTO DE NULIDADE DE TODOS OS ATOS DECISÓRIOS PROFERIDOS PELO JULGADOR INCOMPETENTE. SENTENÇA ANULADA.
1. A existência de fatos ocorridos no trâmite de Ação Revisional e de Ação de Busca e Apreensão, que podem ter ocasionado dano moral ao consumidor, não caracteriza hipótese de prevenção do mesmo Juízo daquelas citadas ações para apreciar e julgar a Ação de Reparação de Danos ajuizada com o fim de ver reparados os supostos danos suportados naquelas demandas.
2. Em tal hipótese, inexiste conexão ou continência entre as referidas demandas, na medida em que não lhes são comuns o objeto ou a causa de pedir, nem tampouco o objeto de uma abrange o das demais, inexistindo motivo para a reunião das ações, consoante o disposto no artigo 105 do Estatuto Processual Civil.
3. Tratando-se de distribuição direcionada, efetuada com base em prevenção inexistente, observa-se violação ao princípio constitucional do Devido Processo Legal (CF, artigo 5º, LIV) e seu consectário Princípio do Juiz Natural (CF, artigo 5º, incisos XXXVII e LIII), sendo que tal ofensa induz à incompetência absoluta do d. juízo monocrático, que pode ser conhecida, de ofício, a qualquer tempo e grau de jurisdição, nos moldes do artigo 113 do Código de Processo Civil.
4. Hipótese que enseja a nulidade de todos os atos decisórios proferidos pelo Juízo supostamente prevento, determinando-se a normal distribuição do feito, que deverá se dar por sorteio, nos moldes do delimitado na Carta da República e nas normas processuais aplicáveis.
5. Apelação conhecida e provida" (10).

Não é demais lembrar que os atos perpetrados pelo juízo absolutamente incompetente, em decorrência de erro na distribuição, não podem ser "convalidados", a pretexto de que, naquele momento, estaria investido de jurisdição, ou qualquer outra justificativa. Trata-se de vício insanável, que torna nula a cadeia de atos processuais desde o nascedouro, isto é, desde a distribuição viciada.

Nessa hipótese, a nulidade do procedimento pode  deve  ser decretada até mesmo de ofício, a qualquer tempo, e em qualquer grau de jurisdição, para alcançar todos os atos praticados à margem das regras de distribuição, em burla ao juiz natural, na forma dos artigos 284, 285 e 288 do CPC/15, por força do disposto no artigos 5º, XXXVII, LIII, LIV e LV, da CF/88.

 


(1) BRASIL. Lei Nº 13.105, de 16 de março de 2015  Código de Processo Civil.

(2) Idem. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973  Código de Processo Civil.

(3) Idem. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

(4) CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Apud DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 202.

(5) NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 28.

(6) THEODORO JR, Humberto. Apud DIDIER JR., Fredie. Op. Cit., Loc. Cit.

(7) CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Apud DIDIER JR., Fredie. Op. Cit., Loc. Cit.

(8) DIDIER JR, Fredie. Op. Cit., p. 184 e 202-203.

(9) BRASIL. Tribunal de Justiça de Goiás. Apelação Cível nº 0389225-22.2013.8.09.0051. Relator desembargador Fausto Moreira Diniz. 6ª Câmara Cível. Reg. 19 jul. 2016. Diário de Justiça. 27 jul. 2016.
Idem. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível nº 0007755-76.2012.8.13.0112 (1.0112.12.000775-5/001). Relator desembargador Moreira Diniz. 4ª Câmara Cível. Reg. 7 mai. 2015. Diário de Justiça. 13 mai. 2015.
Idem. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação nº 2006.000644-0. Relator Desembargador Carlos Adilson Silva. 1ª Câmara. Reg. 02 jun. 2009. Diário de Justiça. 17 jul. 2009.
Idem. Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Apelação nº 0005817-82.2002.4.02.0000 (2002.02.01.005817-9). Relator Desembargador Guilherme Calmon. 8ª Turma. Reg. 16 nov. 2005. Diário de Justiça. 21 nov. 2005.

(10) BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Apelação Cível nº 0032535-59.2008.8.06.0001/1. Relator Desembargador Raul Araújo Filho. 1ª Câmara Cível. Reg. 11 fev. 2010. Diário de Justiça. 1 mar. 2010.

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