Opinião

Por uma teoria da cognição na investigação criminal

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15 de dezembro de 2021, 6h03

Os limites da cognição judicial são objeto de estudo da processualística civil pelo menos desde que compreendeu-se a necessidade de controle dos juízos do sujeito [1]. Definir-se por onde e até onde pode ir o juízo analítico, dentro das regras jurídicas, sempre foi questão relevante no estudo do processo para que não existam juízes que possam tudo conhecer e sobre tudo decidir.

Ao lado da competência, a cognição é não apenas elemento de organização do exercício de poder, mas também elemento de contenção da subjetividade.

Na definição de André Gondinho, "a cognição é a operação mental através da qual o operador do Direito analisa e valoriza todas as questões de fato e de Direito que lhe será permitido conhecer" [2]. É do limite criado por essa permissão que será possível conhecer de determinadas matérias e se definir até onde é preciso aprofundar-se em sua análise para que justifiquem um pronunciamento jurisdicional favorável ou desfavorável.

A partir desses pressupostos, sabe-se, por exemplo, que uma decisão em tutela provisória exige menor síntese de informações do que uma decisão em tutela definitiva. Daí não haver nenhuma incongruência no provimento de uma tutela provisória no início de um processo, e a denegação dos pedidos em seu juízo definitivo.

Nesse contexto, o desenvolvimento científico do conceito de cognição, no processo, acompanhou o influxo do direito de acordo com as necessidades de segurança jurídica exigida para os julgamentos de matérias privadas. O mesmo não ocorreu, porém, com a ciência processual penal.

Talvez em razão da confusão conceitual há muito já apontada por Aury Lopes Jr. [3], decorrente da equivocada teoria geral do processo, terminou a ciência processual penal se descuidando da análise da cognição judicial com finalidades dirigidas especificamente a esse ramo jurídico.

Mais recentemente, em tentativas acertadas de assentar pressupostos para um teoria da decisão — ainda em construção no processo penal — sobrevieram ao debate discussões sobre o standard probatório; sobre a influência das teorias comunicativas na decisão judicial; e sobre a relevância da compreensão da influência da filosofia da linguagem ao Direito, discussões que têm trazido maior atenção da academia para os limites da cognição judicial no processo penal.

Entretanto, os avanços limitam-se à sua fase processual em contraditório. A investigação criminal pré-processual ainda permanece alheia a tais inspirações. Mesmo se sabendo que uma série de atos, na fase investigativa, deveriam exigir a demonstração dos limites da cognição da autoridade — especialmente para que se tenha controle de seus atos — certo é que há um vácuo científico sobre a existência desses limites nesse campo de atuação.

Talvez pelo fato de que quase tudo produzido na investigação criminal é depois submetido ao crivo do Judiciário, tenha-se a ideia de que é irrelevante se trabalhar com análises sobre a cognição da autoridade nessa fase.

No entanto, é preciso recordar de dois pontos: a) primeiro, da influência da opinio da autoridade condutora da investigação sobre o juízo cognitivo judicial posterior, e consequentemente de sua influência indireta nas decisões do processo penal [4]; e b) segundo, mas principalmente, pelo fato de que a investigação restringe o espectro de liberdade do investigado pelo só fato de existir (la pena del banquillo), e dá as bases para medidas cautelares ou pré-cautelares pessoais, como a prisão preventiva e a prisão em flagrante.

Não pode a processualística penal descurar de definir até onde a cognição da autoridade investigadora pode ir, e até que ponto é dela exigido se aprofundar para se proferir uma decisão em sede investigativa.

Tocando-se apenas na problemática do flagrante delito, não se encontram discussões sistemáticas sobre quais são os limites do delegado de polícia no exercício da cognição vertical diante dos elementos a ele apresentados juntamente com o conduzido.

Na práxis, por exemplo, o capturado é apresentado por agentes de segurança pública à autoridade policial, juntamente com objetos apreendidos — sejam instrumentos, produtos ou proveitos do crime —, sendo dele colhido o interrogatório, inquiridas vítimas e testemunhas.

Faticamente a situação é simples. Mas não se sabe ou não se tem segurança sobre quais os limites dessa operação mental a ser realizada pela autoridade policial, não raro concluída em poucos minutos, diante da sempre urgente situação flagrancial.

Enquanto a mesma atividade cognitiva do juiz, no processo, encontra um parâmetro contraditório e uma extensão temporal maior, na atividade pré-processual esse âmbito de garantia é reduzido diante da própria natureza do ato.

Essa diminuição do potencial de participação dos envolvidos haveria de exigir ainda maior justificação por parte da autoridade policial para se concluir que todos os elementos de uma prisão em flagrante, por exemplo, encontram-se presentes.

As mesmas afirmações se estendem às demais decisões proferidas no campo investigativo, como a avaliação de justa causa para a instauração de um procedimento investigatório criminal pelo membro do Ministério Público, ou da suficiência de elementos demonstrativos sobre a origem ilícita para justificar a apreensão de uma grande quantia de dinheiro encontrada na casa de um suspeito.

O problema se inicia na análise da cognição vertical. Tomando como certo o fato de que a cognição processual é necessariamente mais profunda e dela mais se exige diante do potencial juízo condenatório, quão profunda seria necessária a demonstração de uma conduta aparentemente típica para se justificar a instauração de um inquérito ou autuar-se em flagrante delito?

Imagine-se a imputação do crime de estelionato por uma dúzia de vítimas, contra um só empresário, veiculadas por declarações congruentes, demonstrados os prejuízos por transações bancárias registradas e quantias em dinheiro depositadas, somadas a uma confissão do autor. Induvidosamente a instauração de inquérito policial seria medida necessária, adequada e exigível.

Por outro lado, como avaliar a necessidade de instauração de uma notícia de crime de estupro sem testemunhas, negada pelo suspeito, com laudo de exame sexológico negativo para lesões íntimas, e havendo indicativos sobre a localização diversa do autor, no dia dos fatos, em outra cidade alheia àquela em que a vítima afirma ter sido estuprada?

Situações claras, como a do estelionato, são de fácil solução. São as situações geradoras de dúvidas em maior ou menor medida, como a narrada no caso do estupro, que exigiriam um definição teórica mais cuidadosa sobre os limites da cognição no campo da investigação criminal.

São questões que importam, sobretudo para definir-se o que é exigido da autoridade como mínimo para fundamentar seu ato (cumprindo a função de preservadora do inquérito [5]), e, em outro plano, para dar conhecimento ao imputado sobre quais as exigências do Estado justificadoras de sua condução ao cárcere ou da instauração de uma investigação contra si.

No plano da cognição horizontal o problema persiste. Não é incomum que em uma mesma comarca um membro do Ministério Público entenda que a análise da ilicitude, no flagrante, compete ao delegado, e outro membro entenda que o limite dessa mesma cognição horizontal é somente voltado à tipicidade formal do fato, não cabendo ao delegado decidir se houve legitima defesa, devendo prender em flagrante com a só constatação da conduta formalmente típica, a comunicado ao Judiciário para que decida se havia causa justificante.

Dessa mesma semente nasce a velha discussão sobre a possibilidade da aplicação da insignificância pelo delegado de polícia, também no plano da cognição horizontal. Seria a bagatela matéria a ser por ele conhecida [6]?

Em suma, a problemática se resume à seguinte pergunta: quais são os limites da cognição jurídica vertical e horizontal no plano investigativo pré-processual, e em especial, no ato da prisão flagrante?

Trata-se de ideia próxima à da aplicação do conceito de standard probatório à investigação criminal, através da via do estudo da teoria da cognição.

Cuida-se de tema que, embora desenvolvido com minúcia no processo civil, exige atenção no processo penal, sempre com objetivo de se observar o controle da subjetividade geradora de injustiça [7].


[1] WATANABE, Kazuo. Cognição no Processo Civil. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2012.

[2] GONDINHO, André Osório. Técnicas de cognição efetividade do processo. Revista da EMERJ, v. 2, n. 8, 1999, p. 101.

[3] LOPES JR., Aury. Teoria Geral do Processo é danosa à boa saúde do processo penal. www.conjur.com.br/2014-jun-27/teoria-geral-processo-danosa-boa-saude-processo-penal. Acesso em: 11/12/2021. Em análise mais profunda: LOPES JR. Aury. Fundamentos do processo penal. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

[4] Os estudos estratégicos de Alexandre Morais da Rosa sobre as influências dos players no jogo processual são clarificadores do que se almeja afirmar com a influência da opinião do investigado no juízo ulterior do julgador. "O protagonismo em construir narrativas se dá por mecanismos de persuasão em que a pretensão de verdade deve se escorar em fragmentos probatórios (informações significativas), sustentando a versão". ROSA, Alexandre Morais da. Enteder como funciona o jogo processual será decisivo. https://www.conjur.com.br/2017-mar-31/limite-penal-entendercomo-funciona-jogo-processual-decisivo. Acesso em: 12/12/2021.

[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8.ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 175.

[6] Favorável, mas citando decisão do Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário: MASSON, Cleber. Direito Penal: volume 1. 13.ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2019, p. 38-9.

[7] "Uma das questões 'perenes' do processo penal é a luta pelo controle do poder punitivo que se manifesta na decisão judicial e reflete a valoração da prova produzida". LOPES JR., Aury. ROSA, Alexandre Morais da. Sobre o uso do standard probatório no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processo-penal. Acesso em: 13/12/2021.

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