Opinião

O contrato especial das plataformas na CLT e na União Europeia

Autores

  • José Eduardo de Resende Chaves Júnior

    é doutor em Direitos Fundamentais professor adjunto IEC-PUCMINAS e da Skema Business School professor convidado do PPGD (mestrado e doutorado) da UFMG desembargador aposentado do TRT-MG diretor do Instituto IDEIA – Direito e Inteligência Artificial e do Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho – IPEATRA e membro do Conselho Acadêmico da Escola dos Magistrados da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho – ANAMATRA.

  • Ronaldo Antônio de Brito Junior

    é juiz do Trabalho no TRT de Minas Gerais e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG.

10 de dezembro de 2021, 12h06

A Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara, por iniciativa dos deputados Afonso Motta e Augusto Coutinho, está realizando audiências públicas para tratar da regulação das plataformas no que diz respeito aos trabalhadores.

Por outro lado, a Comissão Europeia, o mais importante órgão da UE, e responsável pelo seu governo, apresentou nesta quinta-feira (9/12) um projeto que consagra a presunção (refutável) da relação de emprego dos trabalhadores das plataformas, a partir de cinco critérios: 1) definição da remuneração do trabalhador; 2) estabelecer regras relativas à aparência ou desempenho no trabalho; 3) supervisionar a execução e a qualidade do trabalho, ainda que por meio eletrônico; 4) restringir a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar trabalho, em particular na escolha do horário de trabalho ou períodos de ausência, ou para aceitar ou recusar tarefas ou, ainda, para usar subcontratados ou substitutos; e 5) restringir a possibilidade de o trabalhador realizar trabalho para outros ou que construa uma base de seus próprios clientes.

Uma novidade é que não é necessário que se verifiquem os cinco critérios para a configuração do vínculo empregatício. Se apenas dois desses critérios forem verificados, o vínculo aperfeiçoa-se. A expectativa é que esses critérios beneficiem cerca de 4,1 milhões de trabalhadores.

No Brasil, um pressuposto deve informar todo o debate: a CLT já regula essa forma de trabalho desde 2011.

Não há dúvida de que a CLT foi concebida para regular o trabalho 1) fordista-taylorista; passou pelo ciclo 2) toyotista-ohnista; e agora convive com a era 3) uberista. Importante observar que todos esses três modos de gestão do trabalho convivem na economia contemporânea.

Em relação ao ciclo toyotista-onhista, não houve necessidade de alteração do artigo 3° da CLT, que configura o perfil de empregado no Brasil. O conceito de subordinação  que era um conceito puramente doutrinário e jurisprudencial, pois não se encontrava na CLT até 2011  imperou absoluto em ambos os modelos de produção, tendo, apenas, havido uma adaptação doutrinária por meio do conceito de subordinação estrutural ou em rede (reticular), para melhor adequação ao modelo toyotista, sobretudo com expansão da terceirização trabalhista.

Em 2011, a Lei 12.551 implantou uma verdadeira revolução silenciosa na CLT, com a inclusão de seu parágrafo único, que equiparou, juridicamente, o conceito de subordinação ao conceito de controle (comando e supervisão) dos meios telemáticos e informatizados. [1]

O mencionado dispositivo agregou, ainda, mais um novo elemento ao Direito do Trabalho brasileiro, que deve ser compaginado ao controle, que é o de alienidade (na proverbial linguagem de Pontes de Miranda [2]), conceito inspirado na legislação espanhola, que na acepção mais atual, de Alarcón Caracuel [3], é entendido como o requisito de configuração do vínculo empregatício a condição de o trabalhador não ter acesso ao mercado, acesso esse que é interditado ou intermediado pelo empregador.

A partir da Lei 12.551, o Direito do Trabalho brasileiro, portanto, passou a contar com dois critérios de configuração do contrato de trabalho: o tradicional, constante do artigo 3°, e o mais atual, constante do parágrafo único do artigo 6° da CLT.

As relações de trabalho, cuja gestão sejam operadas pelos sistemas fordista e toyotista, são regidas pelo artigo 3° da CLT, com sua centralidade focada no conceito de subordinação.   Por outro lado, as relações da era uberista são regidas pelo parágrafo único do artigo 6° da CLT, sobretudo focada nos conceitos de controle e alienidade.

No sistema fordista, da subordinação, a disciplina no trabalho é o ponto central da produção, que coincide com a chamada sociedade da disciplina, por Foucault, que construiu diversas instituições disciplinares, tais como a família, a religião, a escola, as Forças Armadas, o presídio e o manicômio e, no que toca, ao trabalho, a fábrica. [4]

No ciclo uberista de gestão do trabalho, fruto da sociedade do controle (Deleuze [5]), com disseminação do uso de sensores telemáticos e informatizados, prevalece a gameficação das metas de trabalho, que induz e potencializa o comportamento produtivo, por meio da decupagem e do agenciamento algorítmico da produção e a completa oclusão da porosidade do trabalho, por meio dos sistemas zero hora ou contrato intermitente. Essa transição da sociedade da disciplina para a do controle, ou para o pós-panoptismo, é assim formulada por Deleuze:

"A fórmula abstrata do Panoptismo já não é, pois, 'ver sem ser visto', senão impor uma conduta a uma multiplicidade humana qualquer. Só é necessário que a multiplicidade considerada seja reduzida, incluída em um espaço restrito, e que a imposição de uma conduta se realize num espaço, ordenação e seriação no tempo, composição no espaço tempo" [6].

O ciclo de regulação do controle-uberismo na CLT completa-se com a reforma trabalhista de 2017, a partir da criação do contrato intermitente, sobretudo com a faculdade de o empregado recusar a oferta de trabalho, quando convocado pelo aplicativo, sem que isso possa descaracterizar o vínculo empregatício, como previsto no parágrafo 3° do artigo 452-A da CLT [7].

Importante assinalar, também, que o parágrafo único do artigo 6° da CLT opera apenas uma equiparação jurídica entre subordinação e controle, o que significa que os meios concretos de configuração de ambos exista, na realidade operacional da gestão do trabalho, diferenças de procedimento, já que a subordinação disciplinar tem uma conotação mais subjetiva, individual e hierárquica, ao passo que no controle, a dinâmica de gerenciamento da produção é mais objetiva, despersonalizada, padronizada e estatística. Em entrevista deste mês, Supiot afirma que passamos da subordinação para a programação [8].

Diante da regulação prevista tanto no multicitado parágrafo único do artigo 6° e no parágrafo terceiro do artigo 452-A da CLT, a tarefa do legislador fica facilitada e depende apenas da criação, não de uma categoria precarizada, mas de um contrato de trabalho especial, a exemplo do que existe para os trabalhadores em plataformas de petróleo (Lei 5811/1972), que contemple algumas necessidades específicas do trabalho por aplicativo, tanto para as empresas como para os trabalhadores.

O contrato especial de trabalho, a despeito de customizar o trabalho aos aplicativos, tem a vantagem de enfatizar a ideia, hoje talvez esquecida, de que o contrato de emprego é a qualificação jurídica do trabalho humano subordinado ou controlado, pressuposto para uma economia potente e sustentável.

 


[1] "CLT, Artigo 6° – (…) Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio".

[2] PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado – Direito das Obrigações — Vol. 47 – Rio de Janeiro: Borsoi, 1964  p. 118

[3] ALARCÓN CARACUEL, Manuel Ramón La ajenidad en el mercado: Un criterio definitorio del contrato de trabajo Madrid: Civitas  Revista Española de Derecho del Trabalho, 1986 pp. 495-544

[4] "Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação." FOUCAULT, Michel Vigiar e Punir  nascimento da prisão Petrópolis: Vozes,  1987 – p. 118

[5] DELEUZE, Gilles Post-scriptum sobre as sociedades de controle In: Conversações São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226.

[6] DELEUZE, Gilles Foucault Barcelona: Paidós Ibérica,1987  pp. 60 – tradução livre.

[7] "CLT, Artigo 452-A (…) § 3o A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente".

[8] SUPIOT, Alain   Alain Supiot, il lavoro mutante intrecciato alla vita Disponível em: https://ilmanifesto.it/alain-supiot-il-lavoro-mutante-intrecciato-alla-vita/.

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