Opinião

Reflexões sobre o papel da vítima no processo penal e a Lei Mariana Ferrer

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10 de dezembro de 2021, 17h16

A visão do processo penal como um "garantidor das regras do jogo" é, em grande parte, uma visão romântica do processo penal e, por vezes, míope. O Direito Processual Penal do jeito que foi concebido pode (e até deve) ser entendido como um meio de controle da violência institucionalizada. Mas repare que ele representa uma violência institucional. Violência a todos os que participam do rito, sem exceção. Uma vez ouvi de um juiz ao final de um dia acompanhando várias audiências no Fórum Criminal da Barra Funda que "ninguém sai incólume do sistema de Justiça Criminal, nem mesmo nós".

Na mesma linha, Marcelo Semer, em seu livro "Entre Salas e Celas", no início do doído conto "Dona Vanda", aponta que escutara de um colega juiz que "cada um que senta naquela cadeira, leva um pedacinho da gente embora" [1]. Se pessoas que são agentes do sistema sentem a sua violência e por ela são afetadas, imagine o impacto nas partes diretamente envolvidas? A vítima traz consigo suas dores e as incompreensões para um processo que assusta, é duro, é violento desde o atendimento na ponta e não quer escutar suas dores.

A implementação de Delegacias de Defesa da Mulher (DDM), em São Paulo a Casa da Mulher Brasileira, como um marco referencial em atendimento e acolhimento às vítimas suaviza, mas não impede, esse contato dramático entre o sistema e a vítima. A implementação de Juizados de Violência Doméstica e de Grupos de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid) pelo Ministério Público também busca fornecer uma rede de apoio maior e mais consistente. Entretanto, o contato, por mais que seja humanizado, é sempre traumático. O sistema de Justiça Criminal, para além de um problema enraizado de seletividade, não consegue se desvincular de seu caráter básico: a violência que ele afirma controlar como um meio de reafirmação de seu poder.

E entender isso é um meio de entender que o processo penal que hoje existe não foi concebido para acolher a vítima. Ele historicamente foi concebido para afastá-la e tão somente utilizá-la como um meio de legitimação de imposição de dor ao ofensor. O papel da vítima é legitimar (ou não) a aplicação da punição estatal. E as suas dores, incompreensões, medos, vontades e os reflexos do fato ocorrido consigo não importam. O fato importa mais do que a vítima. Como o objeto do processo é o fato e sua ocorrência ou não para aplicação de punição, pouco importa o relato de como a vítima se sente ou o impacto da ação criminosa na sua vida. O interesse é saber objetivamente o que aconteceu. O sistema de Justiça Criminal e o próprio processo penal do jeito que atualmente concebidos jamais poderão conceber em cuidar da vítima e dar a resposta que ela almeja. Até porque ela envolve uma complexidade que o sistema de Justiça não consegue comportar.

Nesse sentido, é interessante relembrar que a vitimologia classifica o contato da vítima com o sistema de Justiça Criminal e a inevitável violação de direitos que dele decorre como revimitização [2]. E o caso Mariana Ferrer, que ensejou na recentemente promulgada Lei 14.245/2021 (Lei Mariana Ferrer), explicita com todas as caras o sistema e qual o papel da vítima no sistema de Justiça Criminal. Como Howard Zehr bem pontua, as notas de rodapé do sistema de Justiça Criminal [3] são levadas em consideração em conjunto com relatos, versões e provas sobre um fato que passará pelo crivo de um juiz que decidirá por uma condenação ou absolvição, são essas as únicas possibilidades do sistema.

A lei recém-aprovada tem por objetivo o aumento de pena para o crime de coerção e coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas no curso do processo. Diante dos absurdos viralizados na audiência de instrução da jovem (que, infelizmente, não é exceção), pode parecer necessário em um primeiro momento que exista previsão em lei dos modos de tratamento da vítima pelo sistema, mesmo que já previstos em tratados internacionais que versam sobre a dignidade da pessoa humana, como a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas na sua Resolução 40/34, de 29 de novembro de 1985. No entanto, vale ir além: apesar de a nova lei garantir maior respeito à dignidade da vítima de crime sexual (extensivo a vítimas e testemunhas de todos os crimes tipificados), a vítima continua com seu papel marginal de sempre, a portadora de uma versão que ao final ouvirá se o seu ofensor será absolvido ou condenado.

E essas duas únicas respostas que o sistema apresenta são traumáticas. Dizer que a pessoa foi absolvida por falta de provas que embasassem o relato, por exemplo, pode levar a vítima a ser vista como portadora de uma história mentirosa, o que muitas vezes não é verdade. Além disso, a condenação pode aliviar um fardo, mas jamais se saberá do que a vítima precisava, além da punição (se é que a punição desejava). E há de se dizer: o processo penal tem standard probatório alto e não é tudo que passa por ele. Até porque, retomando a visão tradicional do processo penal como um meio garantidor controlado de inflição de pena e dor, ele protege o alvo da persecução penal de uma inferência no seu direito básico de proteção da liberdade individual.

Nesse sentido, vale a reflexão: queremos um modelo processual que dê o protagonismo às partes de representar seus papéis ou precisamos continuar a apostar num sistema que geneticamente não foi concebido para suportá-las?

 


[1] SEMER, Marcelo. Entre Salas e Celas: Dor e esperança nas crônicas de um juiz criminal. 3 ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

[2] GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Crítica da Pena e Justiça Restaurativa: a censura para além da punição. 1 ed. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015. p. 45.

[3] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: Justiça Restaurativa para o nosso tempo. 3ª edição. São Paulo: Palas Athena, 2018, p. 39

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