Seguros Contemporâneos

Sub-rogação da seguradora na cláusula compromissória

Autor

  • Anderson Schreiber

    é professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da Fundação Getúlio Vargas procurador do estado do Rio de Janeiro e advogado.

9 de dezembro de 2021, 8h00

Como se sabe, a cláusula compromissória produz, em regra, efeitos relativos. Vale dizer: sua eficácia se estende apenas sobre os próprios contratantes. Há, contudo, uma série de situações nas quais se cogita da vinculação de terceiros não-signatários à cláusula compromissória. São exemplos frequentemente debatidos na doutrina arbitralista a extensão da cláusula compromissória a sociedades integrantes de um mesmo grupo empresarial ou, ainda, a partes signatárias de contratos coligados. As hipóteses de extensão da eficácia da cláusula compromissória costumam dividir a opinião de estudiosos e árbitros experientes. Pretendo examinar, neste breve texto, a situação da seguradora que realiza o pagamento da indenização ao segurado.

O artigo 786 do Código Civil brasileiro determina que, "paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano". A controvérsia que nos interessa aqui é a seguinte: em razão da sub-rogação legal derivada do pagamento da indenização, a seguradora fica vinculada à cláusula compromissória eventualmente inserida em contrato celebrado entre o segurado e o autor do dano? Em outras palavras: estaria a seguradora, nesta hipótese, compelida a instaurar arbitragem para exercer seu direito de regresso ou poderia, ao contrário, recorrer ao Poder Judiciário?

A questão já foi examinada, conquanto lateralmente, pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça em 2019 no âmbito da Sentença Estrangeira Contestada 14.930. Discutia-se ali a homologação de sentença arbitral estrangeira que, dentre outros temas, havia concluído que uma seguradora estava vinculada à cláusula compromissória estabelecida em contrato celebrado pelo segurado. O entendimento predominante entre os ministros do STJ foi de que não caberia, no juízo sobre a homologação, ingressar em um reexame do mérito da decisão proferida no exterior, mas votos vencidos proferidos pelos ministros João Otávio de Noronha, Luis Felipe Salomão e Benedito Gonçalves vislumbraram ofensa à ordem pública nacional, pois, no seu entendimento, a transmissão da cláusula compromissória via sub-rogação legal violaria, em última instância, a garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição (Constituição, artigo 5º, XXXV).

Há que se recordar que o Supremo Tribunal Federal já afastou a existência de qualquer incompatibilidade, em abstrato, entre a eficácia vinculante da cláusula compromissória e o princípio do acesso à justiça, no histórico julgamento da Sentença Estrangeira 5.206, concluído em 2001. O debate, aqui delineado, diz respeito, contudo, à extensão da eficácia da cláusula compromissória à seguradora que não a firmou, em decorrência da sub-rogação legal instituída pelo artigo 786 da nossa codificação civil.

A sub-rogação consiste, tecnicamente, na substituição de um dos elementos da relação jurídica, podendo recair tanto sobre o objeto (sub-rogação real) como sobre os sujeitos (sub-rogação subjetiva ou pessoal). A sub-rogação pessoal implica a modificação da titularidade do crédito, sem que a integridade da relação obrigacional seja afetada [1]. Embora o artigo 786 do Código Civil limite-se a afirmar que o segurador se sub-roga "nos direitos e ações" do segurado, o artigo 349 da mesma codificação civil oferece uma descrição mais completa dos efeitos da sub-rogação, determinando que "a sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores". De acordo com a doutrina civilista, "adquire o sub-rogado o próprio crédito do sub-rogante, tal qual é. Opera, assim, a substituição do credor pelo sub-rogatário, que recebe o crédito com todos os seus acessórios, mas seguido também dos seus inconvenientes, e das suas falhas e defeitos" [2].

Tem-se argumentado que a cláusula compromissória teria "natureza processual", o que impediria que a seguradora viesse a ser alcançada por sua eficácia vinculante, uma vez que a sub-rogação abrangeria apenas as características materiais do crédito [3]. A restrição da eficácia da sub-rogação aos aspectos de direito material não se ajusta bem, todavia, à literalidade dos artigos 394 e 786 do Código Civil, que contemplam expressamente a transmissão das "ações" do titular primitivo ao novo titular do crédito.

Terreno que a sub-rogação efetivamente não alcança é aquele das disposições intuitu personae, ou seja, disposições para cuja instituição as características pessoais das partes tenham sido consideradas essenciais. A cláusula compromissória, no entanto, não deve ser considerada personalíssima, tendo em vista que a sua adequada execução independe de qualquer característica peculiar dos contratantes [4]. Como bem assentado no voto proferido pela ministra Nancy Andrighi no julgamento da SEC 14.930: "por suas características próprias, não seria possível afirmar que a cláusula compromissória seja uma condição personalíssima de uma dada relação de jurídica. Ao contrário, uma vez celebrada, seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte, podendo ser firmada por todas as pessoas capazes".

Não há que se cogitar, ainda, de violação ao §2º do artigo 786, que determina ser "ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo". A submissão do litígio à jurisdição arbitral não importa tecnicamente qualquer "diminuição" do seu direito de crédito. Trata-se da adoção de mecanismo de resolução de conflitos diverso da jurisdição estatal [5].

Percorridos os contornos da disciplina legislativa da sub-rogação e da própria cláusula compromissória, pode-se concluir que não há qualquer razão jurídica para não se considerar a seguradora vinculada à cláusula compromissória, independentemente do fato de não ter participado da sua celebração ou anuído com a sua inclusão em contrato entre o segurado e o autor do dano [6]. Com efeito, em se tratando de consequência direta da incidência do artigo 786 do Código Civil, norma que integra a disciplina dos contratos de seguro, o risco da existência de uma cláusula compromissória em contrato celebrado pelo segurado no âmbito do qual possa se verificar um sinistro coberto pela apólice integra, a rigor, a álea ínsita à relação securitária. Compete às seguradoras, portanto, incorporar o exame do meio de resolução de controvérsia eleito contratualmente pelo segurado à sua análise de riscos, de modo a não ser surpreendida por eventual exceção de arbitragem quando do exercício do seu eventual direito de regresso [7].

Isso não impede, naturalmente, a ocorrência de situações excepcionais, nas quais se demonstre a impossibilidade da seguradora de identificar a cláusula compromissória na fase de avaliação de risco. Suponha-se, por exemplo, a cláusula compromissória pactuada pelo segurado posteriormente à emissão da apólice, por meio de aditivo. Impõe-se ao segurado, em tal hipótese, o dever de informar à seguradora a modificação contratual, em atenção ao disposto no artigo 765 do Código Civil: "O segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes". A violação ao dever de informar deflagra o dever de indenizar a seguradora pelos prejuízos eventualmente suportados em razão da ignorância acerca da pactuação da cláusula compromissória (Código Civil, artigos 186 e 927) [8], podendo-se cogitar até mesmo, nestas situações limítrofes, de ineficácia da cláusula compromissória perante a seguradora [9].

Independentemente da posição que se adote nestes casos — claramente excepcionais —, o que deve restar claro é que, como regra, a seguradora submete-se, por força da sub-rogação legal prevista no artigo 786 do Código Civil, à eficácia vinculante da cláusula compromissória pactuada pelo segurado, não podendo se furtar à arbitragem ao argumento de que não concordou expressamente, nem anuiu com a via arbitral.

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.


[1] Antônio Chaves, Sub-rogação, in Arquivos do Ministério da Justiça, a. 39, nº 161, jan./mar. 1982, p. 38.

[2] Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, vol. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 219.

[3] Nesse sentido, confira-se, por todos, o entendimento manifestado pelo ministro João Otávio de Noronha em seu voto vencido na SEC 14.930: "a sub-rogação implica a transferência apenas do crédito com suas características materiais. Eventuais aspectos de ordem processual ou de natureza personalíssima do credor originário não são objeto de transferência ao sub-rogado. (…) Já o instituto da arbitragem é um meio alternativo e voluntário de solução de conflitos. A cláusula compromissória regula matéria processual; seu conteúdo é, pois, específico e diverso do contrato originário, voltado para a relação de direito material que vincula as partes".

[4] Na mesma direção: Felipe Vollbrecht Sperandio, Transmissão de cláusula compromissória à seguradora por força de sub-rogação legal. Arbitragem, direito securitário e consentimento no direito brasileiro, in Carlos Alberto Carmona, Selma Ferreira Lemes, Pedro Baptista Martins (coords.), 20 anos da Lei de Arbitragem: homenagem à Petrônio R. Muniz, São Paulo: Atlas, 2017, p. 822.

[5] Inaê Siqueira de Oliveira, Transmissão da Cláusula Compromissória, São Paulo: USP (dissertação de mestrado), 2021, p. 97.

[6] Ver, na mesma direção, Fabiane Verçosa, Arbitragem e Seguros: Transmissão da Cláusula Compromissória à Seguradora em Caso de Sub-rogação, in Revista Brasileira de Arbitragem, ano 3, nº 11, jul./set. 2006, pp. 54-55.

[7] "A seguradora, por sua vez, ao pactuar contrato de seguro, deverá ter o cuidado e a cautela de analisar o risco a ser subscrito, com todos os seus prós, contras e custos envolvidos. O correto dimensionamento da extensão do risco a ser assumido inclui o exame e a avaliação do meio de resolução de controvérsias escolhido pelas partes contratantes, ou seja, a verificação da existência ou não de cláusula compromissória. Portanto, se houve subscrição do risco nesses termos, haverá – pelo mesmo ato – aceitação implícita da cláusula compromissória, sendo vedado ao segurador sub-rogado pinçar, dentro do contrato originário, as cláusulas que lhe forem mais convenientes." (Priscila Mathias Fichtner e José Antonio Fichtner, Arbitragem e a sub-rogação da cláusula compromissória nos contratos de seguro, in Ernesto Tzirulnik et al. (orgs.), Direito do Seguro Contemporâneo: edição comemorativa dos 20 anos do IBDS, vol. 2, São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 377).

[8] "Artigo 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (…) Artigo 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."

[9] O problema do desconhecimento da seguradora acerca da cláusula compromissória é enfrentado por José Roberto de Castro Neves, A posição da seguradora na arbitragem: a importância da análise da vontade, in Ernesto Tzirulnik et al. (orgs.), Direito do Seguro Contemporâneo: edição comemorativa dos 20 anos do IBDS, vol. 2, São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 355, onde afirma: "parece adequado o entendimento de que a seguradora, desprovida minimamente dos meios de conhecer a cláusula compromissória que vinculava a parte original, pode defender que não se encontra vinculada à arbitragem."

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