Opinião

A pirataria e a eterna luta pelos direitos autorais

Autores

  • Anita Mattes

    é doutora pela Université Paris-Saclay mestre pela Université Panthéon-Sorbone professora nas áreas de Direito Internacional e Patrimônio Cultural cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca e conselheira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

  • Silvia Naschenveng

    é mestre pela London School of Economics and Political Science e fundadora e editora da Mundaréu.

7 de dezembro de 2021, 15h04

"La propriété intellectuelle, c’est le vol!" foi o título do artigo provocativo do economista Daniel Cohen [1], publicado no jornal Le Monde em 2001, que, almejando a quebra de paradigmas da propriedade intelectual, evocou os princípios filosóficos do pai do anarquismo francês, Pierre-Joseph Proudhon, que defendia que propriedade é um roubo.

A ideia de que os direitos de propriedade intelectual constituem um "privilégio", afrontam o direito do público de acesso à informação e impedem ainda a "socialização do conhecimento" foi objeto de muita reflexão nos debates sobre direitos autorais em meados do século 19 na França, a partir de diversos intelectuais, mas principalmente com Proudhon. Na obra "Les Majorats littéraires", ele apresenta uma teoria contra a utilização do direito de propriedade pelos autores sobre as suas obras. Anos após, tal debate ressurge nas patentes de remédios contra a Aids e, principalmente, com o advento de novas tecnologias — o digital e a internet , por meio de vários casos emblemáticos, desde a distribuição maciça de músicas pela Napster, mobilizando a indústria fonográfica à criação das licenças creative commons e inúmeros outros.

Exatamente cinco dias após o lançamento da biografia do ex-presidente Lula, tal debate veio mais uma vez à tona com a denúncia do autor, Fernando Morais, nas suas redes sociais: "Estão pirateando meu livro sobre o Lula. Ou seja, estão me roubando. (…) Vivo de direitos autorais. Vou atrás e botar essa canalha no banco dos réus". A difusão desautorizada da obra foi realizada por um advogado que, apesar de ter se desculpado publicamente com o autor, justificou tal ato em razão da "socialização do conhecimento".

Autores, então, se manifestaram contra a pirataria, lembrando serem privados dos correspondentes direitos autorais, remuneração de seu trabalho, da qual dependem para pagar suas contas. Outros autores disseram relevar a pirataria, lembrando a crise que assola o país, o alto custo do livro, o minguante investimento cultural e as extensas bibliografias acadêmicas (um caso à parte).

O acesso a livros, ao conhecimento, à educação, é um direito fundamental que deveria ser absolutamente respeitado em todos os graus pela nossa sociedade. A crítica proudhoniana à propriedade nos parece, num primeiro momento, totalmente fundada e legítima. Contudo, a viabilização desse acesso não pode ameaçar a própria existência e a difusão da produção autoral.

A visão romantizada do processo criativo e editorial, no sentido de que escrever e produzir um livro é um ato de amor, e não um ofício que envolve diversos outros trabalhadores, parece ainda preponderar. Para entender esse processo, deve ser esclarecido que os autores são o primeiro elo da corrente necessária para que um livro chegue às mãos dos leitores. Depois deles, há eventualmente tradutores, editores, preparadores, revisores, designers, diagramadores, equipes comerciais, gráficas, logísticas  isso para que o livro possa estar nas livrarias. O trabalho de todas essas pessoas deve ser remunerado e é, pois a editora faz esses pagamentos antes mesmo que os livros sejam lançados, para depois ser ressarcida e remunerada ao longo dos vários meses, às vezes anos seguintes, com o resultado da venda dos livros. O investimento financeiro da editora, no caso da biografia do Lula, provavelmente iniciou no pagamento das passagens de avião ao autor para coleta de material, para realizar entrevistas e outros. A cópia pirata não entra nessa conta!

As editoras também estão sentindo o impacto da crise econômica, da grande desvalorização da moeda nacional que encareceu proporcionalmente o custo dos adiantamentos pagos a autores estrangeiros, além do preço do papel, insumo essencial à produção. Isso tudo dificulta ou mesmo inviabiliza o acesso do leitor ao livro, seja pelo aumento do preço final ou, então, pela própria não realização/produção do livro. 

No entanto, nota-se que a discussão tem partido do pressuposto de que a compra de um livro novo é indispensável à leitura desse livro. Há elementos importantes que estão esquecidos nessa discussão: as bibliotecas e os programas de distribuição de livros. Eles garantem o acesso ao livro, mas dependem de políticas públicas contínuas e bem estruturadas. Políticas que favorecem o leitor, os produtores dos livros, toda a sociedade.

No Brasil não há previsão legal de qualquer excepcionalidade favorável às bibliotecas, particularmente na oferta de serviços como reprografia de obras em formato digital ou empréstimo de e-books. Na Europa, além de diretiva expressa nesse sentido [2], existe especificamente o direito ao empréstimo [3], em que, por meio de um sistema de gestão coletiva, os Estados versam uma remuneração aos autores/outros titulares pelo uso público de suas obras nas bibliotecas.

Porém, além da barreira financeira entre o leitor e os livros, há outras mais angustiantes para editores e qualquer outro agente da produção cultural. São as barreiras que se impõem entre milhões de brasileiros e os livros, independentemente de sua venda com enorme desconto em feiras universitárias, sua disponibilidade em bibliotecas ou sua distribuição em escolas.   

Pois, se há os requisitos e fazeres para que um livro esteja na livraria, há muitos outros para que o leitor esteja na livraria ou biblioteca, e ainda outros para que a livraria esteja na cidade. Essas barreiras podem ser consideradas violações a direitos fundamentais, e não se resolvem automaticamente com a melhoria da situação econômica ou com a redução do custo do livro, com a multiplicação e a atualização de bibliotecas nem com a distribuição de livros. Essas permanecem até que haja uma mudança social profunda, a implementação de políticas culturais e educacionais próprias, a valorização da cultura e do conhecimento. Estamos distantes disso.

 

[1] https://www.lemonde.fr/archives/article/2001/04/08/la-propriete-intellectuelle-c-est-le-vol_4175020_1819218.html.

[2] Diretiva 2001/29/CE do Parlamento europeu e do Conselho de 22 de maio de 2001.

[3] Diretiva 2006/115/E do Parlamento europeu e do Conselho de 12 de dezembro de 2006  relativa ao direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor em matéria de propriedade intelectual.

Autores

  • é professora na área de Direito Internacional e Patrimônio Cultural, cultore della materia na Università degli Studi di Milano-Bicocca, doutora pela Université Paris-Sanclay e mestre pela Université Panthén-Sorbone.

  • é mestre pela London School of Economics and Political Science e fundadora e editora da Mundaréu.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!