Opinião

O foro privilegiado de Flávio Bolsonaro e a insegurança jurídica

Autores

  • Juliano Callegari Melchiori

    é advogado criminalista com atuação especializada nos ramos do Direito Penal Empresarial e do Direito Penal Clássico pós-graduando em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM e sócio do escritório Prado e Callegari Advogados.

  • Arthur Prado Neves

    é advogado especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) pós-graduando em Direito Processual Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu vinculado à Universidade de Coimbra e sócio do escritório Prado e Callegari Advogados.

5 de dezembro de 2021, 7h13

Na última terça-feira (30/11), a 2ª Turma do STF decidiu pela manutenção da competência do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para processar e julgar os possíveis crimes praticados pelo atual senador Flávio Bolsonaro no período em que era deputado estadual do Rio de Janeiro.

A questão da definição da competência em razão da função, que parecia ter ganhado contornos de segurança jurídica nos últimos anos, voltou a ser tema de discussão no Judiciário.

O caso é o seguinte: Flávio Bolsonaro é acusado de ter praticado crimes contra a administração pública no período em que exercia a função de deputado estadual do Rio de Janeiro. Pela regra contida no artigo 161, inciso IV, alínea "c", da Constituição Estadual do Rio de Janeiro, a competência para processar e julgar os referidos supostos crimes cabia ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mais especificamente ao Órgão Especial do TJ-RJ (artigo 3º, inciso I, alínea "a", do Regimento Interno do TJ-RJ).

Entretanto, em 2019 Flávio Bolsonaro deixou o cargo de deputado estadual para assumir a cadeira de senador da República, que, segundo o artigo 102, inciso I, alínea "b", da Constituição Federal tem seus crimes comuns processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal.

Até 1999 vigorava no Brasil o entendimento de que se o crime tivesse sido praticado durante o exercício funcional, prevalecia a competência especial por prerrogativa de função mesmo que a investigação preliminar ou a ação penal tivesse início após a cessação daquele exercício (Távora e Alencar, 2020 [1]). Era isso o que determinavam, até então, a Súmula 394 do STF [2] e o artigo 84, §1º e §2º, do Código de Processo Penal.

Entretanto, já no início dos anos 2000 houve sensível mudança no entendimento do tema: a Súmula 394 foi revogada e o artigo 84, §1º e §2º, do Código de Processo Penal foi reconhecido como inconstitucional pelo STF [3]. Assim, passou-se a entender que, caso encerrado o exercício funcional, encerra-se também o foro por prerrogativa de função, devendo os autos serem encaminhados ao juízo de primeiro grau [4]. Em outras palavras, passou-se a entender que a competência em razão de foro privilegiado não tem a força de se estender no tempo quando já cessado definitivamente o mandato ou encerrado o exercício de cargo ou função pública.

Em seguida, o tema passou por mais uma alteração interpretativa. No julgamento da Ação Penal nº 937/RJ, em 2018, o STF passou a restringir ainda mais o alcance da competência por prerrogativa de função. Desde 2018 a Suprema Corte passou a ter forte entendimento de que, além do crime ter sido praticado durante o mandato, cargo ou função, é necessário que o crime tenha sido diretamente relacionado a este, ou seja, afastando-se a competência do foro especial para os crimes praticados em contextos que não fossem relacionados ao cargo especial.

Na ocasião, ficou decidido também que o foro por prerrogativa de função só se encerra com o término do mandato, cargo ou função, desde que este ocorra antes do fim da instrução e da intimação para apresentação das alegações finais na ação penal originária.

A decisão do Supremo na Ação Penal nº 937/RJ foi considerada um marco na jurisprudência sobre o tema, principalmente porque o STF, na ocasião, quis deixar claro que o foro por prerrogativa de função visa a garantir o livre exercício das funções públicas. Se encerrada a função pública exercida, não há motivo para a manutenção do foro por prerrogativa de função.

Entretanto, a nova decisão proferida pela 2ª Turma do STF vai no caminho oposto ao que ficou decido no julgamento da AP nº 937/RJ, o que representa um perigoso retrocesso à já revogada Súmula nº 394 e ao inconstitucional artigo 84, parágrafos 1º e 2º, além de trazer novamente grande insegurança jurídica para o assunto.

Deixou-se de lado os requisitos de atualidade do cargo e da necessidade de o crime ter sido praticado durante e em função do cargo eletivo exercido. Como resultado, o TJ-RJ julgará pessoa que não mais exerce o cargo de deputado estadual, algo que o próprio STF proibia há poucos dias.

Assim, entende-se que, além de equivocada a decisão proferida pela 2ª Turma do STF, uma vez que deveria prevalecer o entendimento exarado pelo Pleno na AP nº 937/RJ (o que resultaria na consequente remessa dos autos para o juízo de primeiro grau, visto que encerrado o mandato eletivo de deputado estadual), a recente decisão do STF traz novamente insegurança jurídica ao processo penal brasileiro.

 


[1] TÁVORA, Nestor e ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal -15 ed. Salvador. Ed. JusPodivm, 2020, p. 4454/460

[2] Súmula 394 do STF: "Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício".

[3] Vide ADI nº 2.797-2 e ADI nº 2.860-0, de 15/09/2005.

[4] STF  Primeira Turma  Inq. 4619 AgR-segundo/DF  relator ministro Luiz Fux – j. 19/02/2019;

Autores

  • é advogado criminalista com atuação especializada nos ramos do Direito Penal Empresarial e Direito Penal Clássico, pós-graduando em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM, membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB - Subseção Santana, membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e sócio do escritório Prado e Callegari Advogados.

  • é advogado, especialista em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), pós-graduando em Direito Processual Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, vinculado à Universidade de Coimbra e sócio do escritório Prado e Callegari Advogados.

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