Opinião

A extensão da imunidade tributária aos livros eletrônicos e similares

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2 de dezembro de 2021, 13h42

As imunidades tributárias são um grupo de disposições constitucionais expressas que limitam a competência das pessoas políticas em sua atividade tributária, no que tange à instituição de tributos propriamente dita. Nas palavras do professor Paulo de Barros Carvalho [1]:

"A classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, que estabelecem de modo expresso a incompetência das pessoas políticas de direito interno, para expedir regras instituidores de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas".

Destarte, é possível concluir que as imunidades tributárias são fenômenos jurídicos exclusivamente constitucionais, os quais impedem o produto da competência tributária dos entes políticos, ou seja, instituir e cobrar tributos, motivados por questões que transcendem a arrecadação em si, e residem na ideia de um incentivo e/ou proteção "eternos" à determinadas situações/fatos tributários.

Entre as várias modalidades conhecidas, temos a imunidade dos livros, disposta no artigo 150, inciso VI, alínea "d", da Lei Maior:

"Sem prejuízo de outras garantias ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (…) instituir imposto sobre (…) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão".

Portanto, o que se nota aqui é que a teleologia dessa modalidade de imunidade se opera em um caráter significativamente político e social, além de sua substância que se reflete na ordem econômica. Outrossim, vale destacar que o referido instituto é também conhecido como "imunidade cultural", ou ainda "imunidade de imprensa", vez que, entre suas diversas ferramentas de garantia aos preceitos constitucionais, está a garantia da liberdade de expressão e pensamento.

Tal garantia é ponto máximo para eficácia na proteção à democracia, na medida em que, sendo a difusão incentivada, assegura-se o debate, a formação de opinião e todos os demais desdobramentos que a democracia carrega.

Contudo, embora o texto constitucional não expresse de modo literal a extensão dos efeitos a essa regra imunizante, condicionando-a aos papeis, surgiu-se o debate acerca da extensão destes efeitos às plataformas atuais de difusão de conteúdo (livros eletrônicos), uma vez que, nos avançados dias de hoje, houve a informatização de todo conteúdo difundido.

Por obviedade, o entendimento do Fisco residia na ideia de que, por ser expressa a palavra "papel" no texto constitucional, a imunidade em tela não se aplicaria aos chamados "livros eletrônicos".

É nesse exato momento que surge a questão retórica que fundamenta o presente artigo: se a imunidade dos livros e periódicos visa, sobremaneira, a garantir a liberdade cultural, em atenção às garantias do artigo 5º do texto constitucional, por que não estariam abarcadas pela regra imunizante todas as plataformas de difusão de conteúdo e, principalmente, como se vê nos dias de hoje, as eletrônicas, ainda que não explicitadas na Constituição Federal?

Para respondermos isso é necessário observar que, de acordo a norma constitucional, a imunidade descrita recai, primeiramente, nos livros, jornais e periódicos, para que depois o texto faça a previsão ao papel destinado à sua impressão, como "substrato necessário". Nesse sentido, entende-se que o legislador constituinte buscou, primeiramente, garantir a liberdade de pensamento, expressão, ideias e opiniões, em prol da evolução da sociedade, independente da exoneração à matéria-prima mais recorrente na época  em 1988, o papel.

Em outros dizeres, a imunidade atinge inicialmente a proposta do livro em si, como fonte de cultura, liberdade de expressão e pensamento, para depois alcançar o papel a que se destina sua impressão.

Nas palavras do professor Roque Antônio Carraza [2]:

"Nada impede que uma regra imunizante receba uma interpretação ampla, sintonizada com os objetivos maiores da Carta Constitucional. É justamente isto que estamos procurando aqui fazer, até porque, do contrário, uma interpretação restritiva da alínea 'd', ora em exame, acabará esvaziando sua razão de ser. Melhor dizendo, quando já não houver livros, jornais e periódicos, em sua forma tradicional, a referida alínea transformar-se-á em letra morta, o que, por óbvio, nos parece inadmissível, já que a Constituição, mais do que proteger objetos (livros, jornais, periódicos, papel de imprensa), quer salvaguardar valores (cultura, educação, divulgação de idéias, etc.)".

Nesse contexto, seria totalmente incoerente e paradoxal com a proposta e próprio caráter da regra constitucional imunizante, barrá-la diante do progresso tecnológico da sociedade, de modo a se pensar que o Direito não acompanhasse a evolução e desenvolvimento da sociedade brasileira.

Por esse motivo, o entendimento jurisprudencial veio caminhando em sentido favorável ao contribuinte, conforme se observa dos arrestos abaixo, advindos de tribunais estaduais e federais:

"CONSTITUCIONAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. ARTIGO 150, INCISO VI, LETRA 'D'. DESEMBARAÇO ADUANEIRO. LIVROS EM FORMATO DE CD-ROM. LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA FISCAL.
 (…)
7. DE 1988 PARA CÁ, PASSAMOS POR UMA EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA SIGNIFICATIVA, DE TAL SORTE QUE, HOJE, EXISTEM VÁRIOS LIVROS EDITADOS EM "CD-ROM" E QUE, POR ÓBVIO, NÃO UTILIZAM PAPEL PARA SUA IMPRESSÃO. POR ESSA RAZÃO NÃO PODERIAM DEIXAR DE SER IMUNES AOS IMPOSTOS, SÓ PELO FATO DE A CONSTITUIÇÃO MENCIONAR APENAS 'OS LIVROS… E O PAPEL DESTINADO À SUA IMPRESSÃO', POIS, DO CONTRÁRIO, FRENTE A EVOLUÇÃO E A CADA INOVAÇÃO TECNOLÓGICA, HAVERIA QUE SE MUDAR O TEXTO CONSTITUCIONAL.
8. ESSA É A TÍPICA HIPÓTESE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL, OPERADA VIA INTERPRETATIVA, NO SENTIDO DE TAMBÉM SEREM CONSIDERADOS COMO IMUNES AOS IMPOSTOS OS LIVROS EDITADOS EM “CD-ROM”, POSTO QUE, SE A INTENÇÃO DA NORMA É FACILITAR A DISSEMINAÇÃO DA CULTURA, EDUCAÇÃO, ENTRE OUTRAS, OS LIVROS EDITADOS EM “CDROM” SE PRESTAM A TAL PAPEL, TANTO QUANTO OS LIVROS CONVENCIONAIS… [3] 
ICMS LIVROS ELETRÔNICOS IMUNIDADE CONSTANTE DO ARTIGO 150, INCISO VI, LETRA 'D', DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ADMISSIBILIDADE NORMA CONSTITUCIONAL QUE GARANTE AO CIDADÃO O ACESSO ÀS INFORMAÇÕES, NÃO IMPORTANDO SE OS LIVROS, JORNAIS OU PERIÓDICOS SEJAM CONFECCIONADOS EM PAPEL OU QUALQUER OUTRO MEIO PRECEDENTES DESTA C. CÂMARA E DESTA E. CORTE RECURSO IMPROVIDO" [4].

Mais adiante, os aparelhos criados para leitura dos livros eletrônicos, os chamados e-readers, também foram sendo abarcados pela imunidade tributária no entendimento da jurisprudência, como ilustra o caso abaixo relacionado ao mais famoso deles, o Kindle, criado pela empresa norte-americana Amazon, em decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região [5]:

"TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. IMPOSTOS. IMPORTAÇÃO DE EQUIPAMENTO. LEITOR DE LIVRO DIGITAL, DENOMONADO 'KINDLE'. CF/88. ARTIGO 150, VI, ALÍNEA 'D'.
PORTANTO, CONSIDERANDO QUE O EQUIPAMENTO EM QUESTÃO, LEITOR DE LIVROS DIGITAIS, DENOMINADO 'KINDLE', TEM A FUNÇÃO ESPECÍFICA DE, COM VÊNIA DA REDUNDÂNCIA, PERMITIR A LEITURA DOS LIVROS DIGITAIS, ESTE EQUIPAMENTO EQUIPARA-SE A 'MATERIAIS ASSIMILARES' AO PAPEL, PARA O FIM DA CONCESSÃO DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA (CF/88, 150, VI, D), A TEOR DA JURISPRUDÊNCIA DO STF".

A fim de encerrar o debate, o Plenário do Supremo Tribunal Federal aprovou, ainda em 2020, em sessão virtual, uma proposta de súmula vinculante, formulada pela Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), para fixar que a imunidade tributária dada pela Constituição Federal a papel, jornais, livros e periódicos se aplica também a livros digitais e seus componentes importados.

A redação aprovada para a Súmula Vinculante 57, nos termos do voto do relator, ministro Dias Toffoli, à época presidente do STF, foi a seguinte:

"A imunidade tributária constante do artigo 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias". 

Portanto, fixou-se a ideia de que sendo as imunidades tributárias reafirmações de garantias constitucionais essenciais para manutenção do Estado democrático de Direito, estas devem sempre ser interpretadas de maneira ampliada, através de uma hermenêutica teleológica, ou seja, no verdadeiro espírito da norma constitucional imunizante.

Nas brilhantes palavras do professor Hugo de Brito Machado, que sintetizam por completo todo exposto [6]:

"A melhor interpretação das normas da Constituição é aquela capaz de lhes garantir a máxima efetividade. Toda imunidade tem por fim a realização de um princípio que o constituinte considerou importante para a Nação. A imunidade dos livros, jornais e periódicos tem por fim assegurar a liberdade de expressão do pensamento e a disseminação da cultura. Como é inegável que os meios magnéticos, produtos da moderna tecnologia, são hoje de fundamental importância para a realização desse mesmo objetivo, a resposta afirmativa se impõe. O entendimento contrário, por mais respeitáveis que sejam, e são, os seus defensores, leva a norma imunizante a uma forma de esclerose precoce, inteiramente incompatível com a doutrina do moderno constitucionalismo, especialmente no que concerne à interpretação especificamente constitucional".

Trata-se de uma enorme vitória do contribuinte e verdadeiro progresso social, que traz esperança às futuras intepretações das cortes brasileiras acerca de institutos que transcendem a regra comum e evoluem com o passar do tempo.

 


[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário, 26ª edição. Saraiva, 2014. p. 218. Vital Book file.

[2] CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário, 30ª edição. Malheiros, 2014. p. 952

[3] Apelação nº 0020336-05.2001.4.03.6100. relator senador CARLOS MUTA. DJ 18.09.2007.

[4] Apelação nº 0002600-78.2013.8.26.0053. relator senador RENATO DELBIANCO. DJ 30.06.2015

[5] Apelação/Reexame Necessário nº 5014246-64.2010.404.7000/ PR  relatora: LUCIANE AMARAL CORRÊA MÜNCH – DJ. 13.07.2011

[6] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 32ª edição. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 293.

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