Opinião

Sobre a prisão após condenação em segunda instância

Autor

  • Carlos Eduardo Ferreira dos Santos

    é mestrando em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) mestre em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha) integra o grupo “Estado Instituciones y Desarrollo” da Asociación Latinoamericana de Ciencia Política e o comitê de pesquisa “Systèmes judiciaires compares” da Association Internationale de Science Politique.

30 de agosto de 2021, 20h35

No dia 7 de novembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela impossibilidade de início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, por força do princípio da não culpabilidade (ADCs nºs 43, 44 e 54).

Em que pese a decisão ser oriunda da Corte Suprema, o tema é polêmico e já sofreu reação legislativa, a exemplo da proposta de emenda à Constituição nº 199/2019, que tramita na Câmara dos Deputados. De acordo com um dos parlamentares, "o Supremo Tribunal Federal já modificou quatro vezes esse entendimento. Atualmente, a pessoa pode postergar as suas condenações até o trânsito em julgado na quarta instância" [1].

O texto constitucional objeto da discussão consta no artigo 5º, inciso LVII, da Carta Magna, que contém os seguintes termos: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Considerando a notória relevância, observações devem ser feitas no que tange à abrangência da norma em apreço.

"1º. O princípio da presunção de inocência, por si só, não impede a prisão de ninguém". O aludido postulado proíbe que o réu seja declarado culpado antes do trânsito em julgado da ação penal à qual responde. Todavia, não há óbice que o investigado no inquérito policial ou o réu no decorrer da ação penal seja submetido à prisão.

Relativamente a esse tema, o próprio texto constitucional é claro, dispondo que: "Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei" (artigo 5º, LXI, CF/1988). Desse modo, expressamente a Constituição admite a validade da prisão em flagrante, da prisão temporária e da prisão preventiva, bastando que se observem os pressupostos legais. A "prisão em fragrante" consta nos artigos 301 a 310 do Código de Processo Penal. Igualmente, a "prisão preventiva" é disciplinada pelos artigos 311 a 316 do Código de Processo Penal. Por sua vez, a "prisão temporária" é regulada pela Lei nº 7.960/1989.

Todas essas modalidades de prisão ocorrem antes da condenação, ou seja, em momento anterior à decisão por parte do magistrado isoladamente considerado ou pelo órgão colegiado do tribunal competente. Assim, mesmo sendo presumida a inocência, o investigado ou o réu poderá ser preso em flagrante, preso temporariamente ou preso preventivamente, desde que cumpridos os requisitos legais.

"2º. A Constituição não proíbe a prisão após condenação em segunda instância". De fato, a Carta Magna contempla um amplo catálogo de direitos e garantias fundamentais, entre os quais o de que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (artigo 5º, LIV). Todavia, o texto constitucional — no bojo dos seus mais de 250 artigos — não contém disposição impeditiva referente à decretação de prisão do réu após a pena ser confirmada por órgão colegiado, sendo a vedação fruto de interpretação criada pelo intérprete que reputa pelo seu incabimento. Em outras palavras, a lei fundamental, em si mesma, não contempla em seu texto tal hipótese obstativa.

"3º. Não cabe ao intérprete criar distinções inexistentes na lei (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus)". A interpretação dos textos legais exige a observância da hermenêutica. Conforme o saudoso professor Carlos Maximiliano, "a Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito" [2]. Entre as várias regras aplicáveis, sobressai o princípio de que "onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir" [3]. Assim, não cabe aos intérpretes da Constituição distinguir a prisão proveniente da primeira, segunda ou terceira instância condenatória; tampouco restringir a decretação de prisão em decorrência da execução provisória da pena, pois lhes são vedados erigir regras inexistentes, proibições destituídas de fundamento constitucional, isto é, sem fundamento de validade.

Nos termos da Carta Magna, a decretação de prisão requer situação de flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, de modo que a Constituição não distingue se a determinação de prisão se dá no trâmite de ação penal ou em razão de condenação confirmada por órgão colegiado de segunda instância (artigo 5º, LXI, CF/1988).

"4º. 'Quem pode o mais pode o menos' (in eo quod plus est semper inest et minus)". Tal preceito significa que "àquele a quem se permite o mais, não deve-se negar o menos". "No âmbito do mais sempre se compreende também o menos" [4]. Ora, se ao juiz singular é facultado decretar a prisão do investigado ou acusado durante o inquérito policial ou no trâmite da ação penal, o órgão colegiado também pode decretar a prisão após condenação em segunda instância, porquanto se trata de decisão fundamentada, emanada de órgão jurisdicional competente, após a devida instrução probatória e com observância do contraditório e da ampla defesa.

Nesse caso, o acórdão tão somente confirma a sentença prolatada pelo juiz de primeiro grau. Essa decisão detém maior peso, visto que é proferida depois da conclusão da etapa processual na primeira e segunda instância, ou seja, após a reanálise da sentença condenatória. Além disso, mesmo após a expedição do decreto de prisão em decorrência da condenação em segunda instância, o réu poderá recorrer ao próprio órgão jurisdicional (a exemplo da revisão criminal), bem como aos tribunais superiores (STJ e STF), de modo que é mantido incólume o direito de impugnar a decisão à qual se insurge.

Portanto, a despeito do último entendimento do Pretório Excelso, o princípio da presunção de inocência não obsta que a prisão seja decretada pelo Poder Judiciário após a condenação do réu em segunda instância, sendo constitucional a medida.

 


[1] CÂMARA FEDERAL. Prisão após condenação em segunda instância ainda divide opiniões na Câmara. Data:13/01/2021. Fonte: Agência Câmara de Notícias. Acesso em 28-08-2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/719650-prisao-apos-condenacao-em-segunda-instancia-ainda-divide-opinioes-na-camara/

[2] MAXIMILIANO. Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 1.

[3] MAXIMILIANO. Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 246.

[4] MAXIMILIANO. Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 245.

Autores

  • é mestrando em Política Criminal pela Universidad de Salamanca (Espanha), integra o grupo "Estado, Instituciones y Desarrollo", da Asociación Latinoamericana de Ciencia Política, e o comitê de pesquisa "Systèmes judiciaires compares", da Association Internationale de Science Politique.

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