Opinião

O 'marco temporal' do projeto de nova colonização

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25 de agosto de 2021, 19h13

Diferentemente do que afirmam aqueles que falam em preponderância do direito ao fato, não é possível separá-los. Ao menos não sob a premissa de busca do que é justo. Não cabe ao Supremo inovar e criar normas para restringir um direito reconhecido pela Constituição Federal, que lhe cabe proteger. Tampouco cabe ao legislativo editar projetos de normas que visem a interesses particulares e o desrespeito aos direitos humanos.

É um fato (inclusive público e notório) que os povos originários (indígenas) foram e seguem sendo expulsos de seu território brasileiro. Seguem sendo alijados, expulsos e mortos. Quem não troca por um espelho e sai por bem, sai por mal ou pela lei (vide PL 191/2021 e o próprio PL 490/2007). Quando a pauta for povos originários, não se trata de "dar" um direito, e, sim, de reconhecer um fato. Se admitimos no nosso ordenamento jurídico o direito de herança e transmissão da posse entre gerações, não há como negar que os povos originários têm direito ao território de seus ancestrais.

Importar conceitos jurídicos norte-americanos ou europeus para negar o fato de que o Brasil foi descoberto pelos povos indígenas, e não por Portugal, é promover uma nova colonização. O comom law só tem sentido se originário de fato do costume, das relações fáticas existentes. Só tem sentido com a oitiva prévia, livre e (bem) informada que o PDL 177/2021 visa também a minar. É preciso democratizar o Direito em uma perspectiva de análise decolonial, e não de mera maioria ocasional e representatividade indireta.

Como bem ensina Anibal Quijano, a "primeira identidade geocultural moderna e mundial foi a América" [1], a Europa se construiu como sede do controle das rotas atlânticas e dominante sob o preço da escravidão de povos indígenas, negros e mestiços na América. E não, isso não é "passado" como querem fazer crer. Os projetos de lei da nova colonização deixam isso bastante claro. O projeto de exploração do território brasileiro segue a todo vapor, e o suposto "desenvolvimento nacional" não chega no prato do brasileiro comum.

Utilizar conceitos baseados na teoria do direito estrangeiro como fundamento para negar o direito dos povos originários é mais uma vez legitimar a colonização não só do saber, mas do viver. É matar, explorar e colonizar.

Não mas se pode admitir, em um Estado democrático de Direito(s), que constitucionalmente prevê que somos uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social" (preâmbulo da CRFB/88), a manutenção da conclusão tida pelos europeus quando da colonização antiga, que destaca Quijano, ao dizer que os colonizadores "concluíram que eram naturalmente (isto é, racialmente) superiores a todos os demais, já que tinham conquistado a todos e lhes tinham imposto seu domínio" [2]. A manutenção desse pensamento antidemocrático e inconstitucional pode ser verificado no recente pronunciamento do presidente da República ao afirmar que: "Não demarcamos nenhum, você estimula o índio a produzir. Isso acaba com o conflito do indígena com o produtor rural. Essas medidas todas diminuem a temperatura, diminuem a pressão e nós partimos para a normalidade, de modo que convive-se hoje, cada vez mais, com essas populações que vão se integrando a nós" [3].

Nesse sentido, concordamos com Quijano quando diz que: "Não obstante, a estrutura de poder foi e ainda segue estando organizada sobre e ao redor do eixo colonial. A construção da nação e sobretudo do Estado-nação foram conceitualizadas e trabalhadas contra a maioria da população, neste caso representada pelos índios, negros e mestiços. A colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina, contra a democracia, a cidadania, a nação e o Estado-nação moderno" [4].

Impondo mais uma vez o domínio e ignorando que, ainda que determinada comunidade indígena tenha conseguido comprovar sua posse coletiva sobre um território somente após 1988, isso se deu, se não justamente pela burocracia colonizadora de seus costumes para legitimação da posse, pela própria exploração e expulsão que sofreram em outro território. Se migraram foi para sobreviver. Mas querem que saiam… E, cada vez mais expulsos do seu território brasileiro, acabarão como nossos vizinhos, e, mesmo sendo os donos da casa, precisarão pedir abrigo como refugiados em outra, e/ou aceitarem serem escravizados na sociedade do cansaço [5] pelos colonizadores (novos ou antigos).

Embora não se adequem no conceito de "refugiados" quando expulsos de seu território, por permanecerem, em tese, aceitos no país, questiona-se se esse "país" abarca o conceito de nação, ou se não seriam também refugiados quando são expulsos de seu território e modos de vida, merecendo especial proteção.

As instituições protetoras de direitos humanos devem estar legitimadas para agir nesse sentido, inclusive mediante os mecanismos de Direito Internacional, a fim de buscar a responsabilização do Estado brasileiro quando se verificar um caso de expulsão de povos tradicionais de seu território.

Aqui, questiona-se: qual é o fundamento para se estabelecer como "marco temporal" a Constituição de 1988? Por ser o dispositivo 231 da CRFB/88 [6] que prevê o instituto jurídico da "demarcação"? Não é o direito que antecede o fato, mas o contrário! O fato de serem herdeiros das terras brasileiras é prévio à Constituição e ao próprio Direito brasileiro. A Constituição de 1988 somente impôs limites e formas para o seu reconhecimento.

Na verdade, a Constituição Federal de 1988 não "concedeu" um direito. O direito já lhes era inerente e originário, como seus antepassados. Na verdade, a Constituição restringiu um direito, que, se não fosse o "roubo" [7] que sofreram e sofrem em suas terras, teriam de forma ainda mais ampla, não só em termos de metragem de território, mas em disponibilidade sobre o próprio bem imóvel.

A Constituição da República, ao prever a inalienabilidade de suas terras, retira-lhes um direito (o de vendê-las), sob o único pretexto de proteção: para que não mais as troquem por um espelho ou par de botas, como conta a história, ou sejam violentados e expulsos para que a terra seja explorada por grileiros. Não se pode, com fundamento em uma norma constitucional protetiva, impor novos requisitos limitadores para desprotegê-los.

Assim, ao considerar o fato (público e notório) de que são os povos indígenas os legítimos donos do território brasileiro, não cabe a imposição de um "marco temporal" para o reconhecimento disso. Não há instituto jurídico que legitime a usurpação da coisa alheia pelo agente que a subtrai. Caso se reconheça tal possibilidade, é necessário revogar o delito de receptação, e absolver o réu a que se imputa crime de subtração de coisa alheia, após dado "marco temporal" em que o agente que a subtraiu já esteja em posse mansa da coisa. Ou o Direito brasileiro legitima a subtração mediante violência, seja de bens móveis (crimes contra o patrimônio), seja de imóveis (terras de povos tradicionais), ou a reprime. O que não pode é a seletividade. A violência sofrida pelos povos originários não pode ser esquecida, nem apagada pelo tempo.

Vale lembrar que o título em favor da União foi concedido pelo artigo 231 da CRFB/88 para que os proteja (e não o contrário), sob pena de grave retrocesso em direitos fundamentais. Ou o "espírito das leis", importado do Francês Montesquieu vai ser esquecido aqui, em demonstração de seletividade na importação de conceitos tradicionais estrangeiros?

Podemos fazer inclusive uma analogia com o direito de propriedade e a usucapião, embora saibamos que a "União" se apropriou dessas terras, e que não são alienáveis nem passíveis de usucapião. Não fossem as restrições estabelecidas, teriam direito à usucapião de suas próprias terras, considerando que ultrapassam os prazos exigidos para tal.

A "União" somente tem legitimidade para exercer o domínio sobre as terras indígenas quando o intento for de protegê-los de alguma violação. Qualquer interpretação diversa altera o sentido constitucionalmente atribuído e nos remete à "União" em um sentido colonizador, centralizador, etnocêntrico e homogeneizador, como quer o presidente ao afirmar que assim os povos indígenas "vão se integrando a nós".

Se não fosse a colonização, teriam direito ao domínio pleno (propriedade, como nós resolvemos chamar), decorrente de seus ancestrais (que chamamos de herança), e não somente à demarcação. Mas se a "União", seja na figura do Estado-juiz (STF-marco temporal), no Legislativo (Pls 490/2007, 2633/2020, 191/2021, PDL 177/2021, entre outros) ou no Executivo (que nessa gestão não demarcou nenhuma terra indígena), não quer reconhecer o direito de propriedade (artigo 231 da CRF/88), que ao menos reconheça o fato de que seu direito humano de viver conforme seus costumes em seu território é prévio à própria existência do Direito brasileiro formalmente constituído, e às teorias do Direito que resolveram importar. O direito à demarcação não foi criado pela Constituição de 1988, mas reconhecido por ela, com base em fato e direito preexistente.

Caso permaneçam em seu território ou tenham saído por violência ou grave ameaça (tendo em vista que a posse injusta não é passível de usucapião, nem deveria ser legitimada por títulos concedidos pelo Estado — embora assim se pretenda — vide artigo 3º do PL 2633/2020 [8]), devem ter seu direito reconhecido pela demarcação.

Não há de se falar em vinculação ao precedente, em especial o não vinculante, como princípio importado superior aos direitos fundamentais.

Não é compreensível que seja mantida por mais de 500 anos uma perspectiva de "distorcida relocalização temporal de todas essas diferenças, de modo que tudo aquilo que é não-europeu é percebido como passado. Todas estas operações intelectuais são claramente interdependentes. E não teriam podido ser cultivadas e desenvolvidas sem a colonialidade do poder" [9].

Em um Estado democrático, espera-se que a instituição escolhida constitucionalmente para a defesa interna em último grau dos direitos fundamentais não inviabilize todo um passado como fazem os que permitem que se aterre e construa por cima de resto mortais indígenas. Podem até conseguir enterrar, aterrar e inviabilizar corpos, mas a História não será mais inviabilizada. A Constituição de 1988 não iniciou a História do Brasil, nem o direito dos povos indígenas sobre suas terras, não fez previsão alguma de marco temporal, mas iniciou marco institucional importante. E as instituições importantes desse marco não podem ficar caladas.

 


[1] QUIJANO, Aníbal. "Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina", p. 127. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf
Acesso em 25/08/2021 — 1h.

[2] Ibidem.

[4] QUIJANO, Aníbal. "Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina", p. 135.
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf. Acesso em 25/8/2021 — 1h.

[5] Expressão utilizada por Byung-Chul Han em sua ao que leva este nome.

[6] "Artigo 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§3º. O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§4º. As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§5º. É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§6º. São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.
§7º. Não se aplica às terras indígenas o disposto no artigo 174, §3º, e §4º".

[7] Não, atualmente, no sentido literal normativo, pois lhe falta a violência ou grave ameaça para capitulação — será?! Além de só ser tipificada como crime a subtração da coisa alheia móvel e não imóvel.

[8] "Artigo 3º – A Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, passa a vigorar com as seguintes alterações: Artigo 17 … § 2º  II — as cooperativas de agricultura familiar que tenham inscrição ativa no Cadastro de Nacional Agricultura Familiar, e/ou Declaração de Aptidão-DAP, assim como a pessoa natural que, nos termos de lei, regulamento ou ato normativo do órgão competente, haja implementado os requisitos mínimos de cultura, ocupação mansa e pacífica e exploração direta sobre área rural, observado o limite de que trata o § 1º do artigo 6º da Lei no 11.952, de 25 de junho de 2009. Vale ressaltar que o artigo 17 da Lei 8.666/93 que buscam alterar trata de doações de bens públicos sem licitação: § 2o A Administração também poderá conceder título de propriedade ou de direito real de uso de imóveis, dispensada licitação, quando o uso destinar-se: … (buscam incluir as hipóteses acima)".

[9] QUIJANO, Aníbal. "Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina", p. 127. http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf. Acesso em 25/08/2021 — 1h

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